A
segunda vaga dos puxões de orelhas
A
Europa promete ser cada vez mais um espaço a preto e branco, onde o
tom pardo, difuso e condescendente da actual governação
dificilmente terá cabimento.
Manuel Carvalho
25 de Janeiro de
2017, 6:54
O primeiro-ministro
holandês não é conhecido por ser meigo como o aroma das tulipas
nem suave como a harmonia dos polders. É um falcão que a cada passo
ataca presas como as que ficaram expostas pela crise da TSU, pela
renúncia de Passos ao “que se lixem as eleições”, pelo artigo
de Francisco Assis no PÚBLICO ou pela primeira entrevista do
Presidente. Na semana passada, em Davos, Mark Rutte voltou a atacar,
com um valente raspanete aos países do Sul da Europa. A Espanha, diz
ele, “está a fazer grandes coisas” e no ano passado conseguiu
uma admirável taxa de crescimento de 3,2%. Mas por não terem feito
as reformas que o diktat europeu impõe, Portugal, a Itália ou a
Grécia hão-de ter “um impacte destrutivo na integração
europeia” e deixarão os bons da fita, como a Holanda, sem “a
certeza de que a Europa e o euro se vão cumprir”. O que é que
isto tem a ver com a crise da TSU, com Francisco Assis ou com o
Presidente? Tudo.
Por partes: a
imputação de responsabilidades ao Sul da Europa feita por Governos
do Norte da Europa não é de agora. Mas agora deve soar de forma
diferente. Já não está apenas em causa a coacção e a punição
do ajustamento e da troika a países que acreditaram que se pode
viver eternamente a crédito, como, infelizmente, foi o caso de
Portugal. O que agora está em causa são os preliminares de uma
discussão que determinará a sobrevivência da Europa e o lugar que
o país poderá ocupar na Europa – ou se vai ocupar lugar algum.
Depois do “Brexit” e das eleições holandesas ou francesas, é
tão provável que a União se mobilize e aprofunde como é
admissível que se desfaça ou se refunde num bloco situado a norte.
O que Mark Rutte diz é que ou o Sul faz reformas e entra na linha ou
então será responsável pelo fim da Europa como a conhecemos. Terá
culpa e quem tem culpa merece castigo.
A questão invocada
por Rutte é simples: ou Portugal fica quietinho, obedece, cumpre o
Pacto de Estabilidade e o programa liberalizante que lhe está
associado e mantém a ligação ao bloco que manda, ou se
sobressalta, recusa limitações à sua soberania, repulsa a
ingerência externa e se deixa ficar orgulhosamente só no extremo
ocidental da Europa. Os que, como José Pacheco Pereira, dizem que há
sempre uma alternativa, terão, mais cedo do que tarde, oportunidade
de o confirmar. A alternativa à ortodoxia económica e à coacção
política da Europa é deixar a Europa. Ponto. A Europa acossada pela
viragem do mundo vai acentuar o instinto de sobrevivência que a
levará à impaciência com os que não cumprem ou não conseguem
cumprir. Tudo o que se disser e discutir no futuro próximo ou tem
este desafio como baliza, ou não passará de um devaneio
inconsequente.
Ora, o desafio seria
simples se a solução política de que o país dispõe fosse
igualmente simples. Mas não é. O que nós temos, por muitos
embrulhos que lhe coloquem, é um Governo europeísta a viver paredes
meias com parceiros que têm campanhas na rua em favor da saída
euro. Das nove ao meio-dia o Governo empenha-se em ser o que é, e
das duas às seis a fazer o que os parceiros do Bloco e do PCP
querem. A hora do almoço é para as zangas controladas, e a do
jantar para juras de amor. Durante um ano, a coisa funcionou, mas
quando ouvimos Mark Rutte lembramo-nos de que no futuro estamos
condenados a caminhar sobre brasas. Sem muito mais para redistribuir,
a governação actual arrisca-se a perder sentido. E é por perceber
essa fragilidade que Passos Coelho nega boa parte do discurso
cauteloso, quase filial, que dedica à UE e renuncia à concertação,
valor inestimável na Europa democrática. É por fazer essa
constatação que Francisco Assis lembra os limites da arte de
dissimular e pergunta como pode um Governo governar com metade da sua
alma, cedendo a outra metade a partidos com ideias que não só
recusa, mas também combate. No meio da barafunda, Marcelo tenta
salvar a pele apostando num caminho que, se lhe é confortável,
também o é para Bruxelas e para os parceiros europeus: o caminho da
estabilidade. Cada dia a mais que possa viver no estatuto de
Presidente-Rei, é uma dádiva da Providência e Marcelo fará tudo
para que as águas não se agitem.
Mesmo que António
Costa tenha sido capaz de vencer todos os braços-de-ferro com o
radicalismo da extrema-esquerda, mesmo que o seu zelo em relação ao
défice tenha sido notável, mesmo que para o país a sua solução
tenha sido a única a garantir estes meses de estabilidade, a verdade
é que ele é um primeiro-ministro limitado pela aliança espúria
que decidiu assinar. O seu empenho na Europa é sincero, mas está
limitado. A sua obediência às regras de Bruxelas é nítida, mas
circunscrita ao que o deixam fazer.
Com as tensões que
ameaçam a Europa a crescer, a solução das “duas maiorias”, que
ora martela no cravo, ora na ferradura, tem um prazo de validade. Se
até agora o Governo contou com a condescendência de uma Europa
preocupada com outros males, no futuro próximo não deixará de ser
pressionado pela ausência de medidas que adiam o problema e impedem
que a economia dispare. A Espanha será usada, como exemplo de
coragem, contra Portugal, que se contenta a viver um dia de cada vez,
sem ambição nem futuro. Se até agora nos irritávamos com a falta
de compreensão do Norte para os sofrimentos do Sul, preparemo-nos: a
coisa vai piorar. A Europa vai ser cada vez mais um espaço a preto e
branco onde o tom pardo, difuso e contemporizador da actual
governação dificilmente terá cabimento.
2- A Sociedade
Portuguesa de Garantia Mútua nasceu no Porto e desde a fundação
foi gerida por um homem do Porto, João Paulo Figueiredo (que,
pessoalmente, não conheço). Com este Governo que se arvora (com
alguma justiça, reconheça-se) em campeão da descentralização, a
SPGM vai deixar de ser gerida por um homem do Porto para passar para
o comando de Ana Beatriz Freitas e uma equipa todinha de Lisboa. Qual
é o mal disto? Nenhum. Excepto o da memória.
Não há problema
algum quando um homem ou uma mulher do Porto vão gerir um organismo
público com sede em Lisboa e o mesmo acontece quando se verifica o
contrário. O problema é que, de forma persistente, a nomeação de
cargos no Porto não é acompanhada pela mudança de residência para
o Porto – uma cidade longínqua das redes de capital social que
mandam no país, que horror… E vale uma aposta, singelo contra
dobrado, que assim vai ser outra vez?
Nas primeiras
semanas, as novas caras da SPGM ainda hão-de ver-se pelo Norte;
depois, começam a despachar de Lisboa; mais tarde, desviam-se todos
os serviços para a capital e os empresários que se metam na ponte
aérea para alimentar o mais centralizado e macrocéfalo estado da
Europa actual. Lembram-se da velha API, com Basílio Horta?
Lembram-se do IAPMEI e de tantos outros organismos da Economia?
Lembrar, lembram, mas nem um ministro com passado em Braga, nem
autarcas, nem a comissão de coordenação e ainda menos as
associações empresariais do Norte fazem questão de dizer em
público o que balbuciam em privado. Têm, pois, o que merecem.
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