quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

A segunda vaga dos puxões de orelhas


A segunda vaga dos puxões de orelhas
A Europa promete ser cada vez mais um espaço a preto e branco, onde o tom pardo, difuso e condescendente da actual governação dificilmente terá cabimento.

Manuel Carvalho
25 de Janeiro de 2017, 6:54

O primeiro-ministro holandês não é conhecido por ser meigo como o aroma das tulipas nem suave como a harmonia dos polders. É um falcão que a cada passo ataca presas como as que ficaram expostas pela crise da TSU, pela renúncia de Passos ao “que se lixem as eleições”, pelo artigo de Francisco Assis no PÚBLICO ou pela primeira entrevista do Presidente. Na semana passada, em Davos, Mark Rutte voltou a atacar, com um valente raspanete aos países do Sul da Europa. A Espanha, diz ele, “está a fazer grandes coisas” e no ano passado conseguiu uma admirável taxa de crescimento de 3,2%. Mas por não terem feito as reformas que o diktat europeu impõe, Portugal, a Itália ou a Grécia hão-de ter “um impacte destrutivo na integração europeia” e deixarão os bons da fita, como a Holanda, sem “a certeza de que a Europa e o euro se vão cumprir”. O que é que isto tem a ver com a crise da TSU, com Francisco Assis ou com o Presidente? Tudo.

Por partes: a imputação de responsabilidades ao Sul da Europa feita por Governos do Norte da Europa não é de agora. Mas agora deve soar de forma diferente. Já não está apenas em causa a coacção e a punição do ajustamento e da troika a países que acreditaram que se pode viver eternamente a crédito, como, infelizmente, foi o caso de Portugal. O que agora está em causa são os preliminares de uma discussão que determinará a sobrevivência da Europa e o lugar que o país poderá ocupar na Europa – ou se vai ocupar lugar algum. Depois do “Brexit” e das eleições holandesas ou francesas, é tão provável que a União se mobilize e aprofunde como é admissível que se desfaça ou se refunde num bloco situado a norte. O que Mark Rutte diz é que ou o Sul faz reformas e entra na linha ou então será responsável pelo fim da Europa como a conhecemos. Terá culpa e quem tem culpa merece castigo.

A questão invocada por Rutte é simples: ou Portugal fica quietinho, obedece, cumpre o Pacto de Estabilidade e o programa liberalizante que lhe está associado e mantém a ligação ao bloco que manda, ou se sobressalta, recusa limitações à sua soberania, repulsa a ingerência externa e se deixa ficar orgulhosamente só no extremo ocidental da Europa. Os que, como José Pacheco Pereira, dizem que há sempre uma alternativa, terão, mais cedo do que tarde, oportunidade de o confirmar. A alternativa à ortodoxia económica e à coacção política da Europa é deixar a Europa. Ponto. A Europa acossada pela viragem do mundo vai acentuar o instinto de sobrevivência que a levará à impaciência com os que não cumprem ou não conseguem cumprir. Tudo o que se disser e discutir no futuro próximo ou tem este desafio como baliza, ou não passará de um devaneio inconsequente.

Ora, o desafio seria simples se a solução política de que o país dispõe fosse igualmente simples. Mas não é. O que nós temos, por muitos embrulhos que lhe coloquem, é um Governo europeísta a viver paredes meias com parceiros que têm campanhas na rua em favor da saída euro. Das nove ao meio-dia o Governo empenha-se em ser o que é, e das duas às seis a fazer o que os parceiros do Bloco e do PCP querem. A hora do almoço é para as zangas controladas, e a do jantar para juras de amor. Durante um ano, a coisa funcionou, mas quando ouvimos Mark Rutte lembramo-nos de que no futuro estamos condenados a caminhar sobre brasas. Sem muito mais para redistribuir, a governação actual arrisca-se a perder sentido. E é por perceber essa fragilidade que Passos Coelho nega boa parte do discurso cauteloso, quase filial, que dedica à UE e renuncia à concertação, valor inestimável na Europa democrática. É por fazer essa constatação que Francisco Assis lembra os limites da arte de dissimular e pergunta como pode um Governo governar com metade da sua alma, cedendo a outra metade a partidos com ideias que não só recusa, mas também combate. No meio da barafunda, Marcelo tenta salvar a pele apostando num caminho que, se lhe é confortável, também o é para Bruxelas e para os parceiros europeus: o caminho da estabilidade. Cada dia a mais que possa viver no estatuto de Presidente-Rei, é uma dádiva da Providência e Marcelo fará tudo para que as águas não se agitem.

Mesmo que António Costa tenha sido capaz de vencer todos os braços-de-ferro com o radicalismo da extrema-esquerda, mesmo que o seu zelo em relação ao défice tenha sido notável, mesmo que para o país a sua solução tenha sido a única a garantir estes meses de estabilidade, a verdade é que ele é um primeiro-ministro limitado pela aliança espúria que decidiu assinar. O seu empenho na Europa é sincero, mas está limitado. A sua obediência às regras de Bruxelas é nítida, mas circunscrita ao que o deixam fazer.

Com as tensões que ameaçam a Europa a crescer, a solução das “duas maiorias”, que ora martela no cravo, ora na ferradura, tem um prazo de validade. Se até agora o Governo contou com a condescendência de uma Europa preocupada com outros males, no futuro próximo não deixará de ser pressionado pela ausência de medidas que adiam o problema e impedem que a economia dispare. A Espanha será usada, como exemplo de coragem, contra Portugal, que se contenta a viver um dia de cada vez, sem ambição nem futuro. Se até agora nos irritávamos com a falta de compreensão do Norte para os sofrimentos do Sul, preparemo-nos: a coisa vai piorar. A Europa vai ser cada vez mais um espaço a preto e branco onde o tom pardo, difuso e contemporizador da actual governação dificilmente terá cabimento.

2- A Sociedade Portuguesa de Garantia Mútua nasceu no Porto e desde a fundação foi gerida por um homem do Porto, João Paulo Figueiredo (que, pessoalmente, não conheço). Com este Governo que se arvora (com alguma justiça, reconheça-se) em campeão da descentralização, a SPGM vai deixar de ser gerida por um homem do Porto para passar para o comando de Ana Beatriz Freitas e uma equipa todinha de Lisboa. Qual é o mal disto? Nenhum. Excepto o da memória.

Não há problema algum quando um homem ou uma mulher do Porto vão gerir um organismo público com sede em Lisboa e o mesmo acontece quando se verifica o contrário. O problema é que, de forma persistente, a nomeação de cargos no Porto não é acompanhada pela mudança de residência para o Porto – uma cidade longínqua das redes de capital social que mandam no país, que horror… E vale uma aposta, singelo contra dobrado, que assim vai ser outra vez?

Nas primeiras semanas, as novas caras da SPGM ainda hão-de ver-se pelo Norte; depois, começam a despachar de Lisboa; mais tarde, desviam-se todos os serviços para a capital e os empresários que se metam na ponte aérea para alimentar o mais centralizado e macrocéfalo estado da Europa actual. Lembram-se da velha API, com Basílio Horta? Lembram-se do IAPMEI e de tantos outros organismos da Economia? Lembrar, lembram, mas nem um ministro com passado em Braga, nem autarcas, nem a comissão de coordenação e ainda menos as associações empresariais do Norte fazem questão de dizer em público o que balbuciam em privado. Têm, pois, o que merecem.




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