EDITORIAL
O
populismo no Capitólio
A
América até pode voltar a ser tão grande como o novo Presidente
deseja, mas o custo vai ser alto.
21 de Janeiro de
2017, 0:23
Donald Trump não
quer estado de graça. Entrou ao ataque e fez um primeiro discurso
sem tons de cinzento, mostrando que o mundo até é fácil de
entender desde que as vistas sejam curtas e não se olhe para lá das
fronteiras.
Populista,
nacionalista e a agitar o fantasma do racismo, o líder da América
ainda começou por dar a entender uma aproximação à união da
América, mas não resistiu ao discurso divisivo de quem não sabe
ganhar. Elencou promessas que prometem restaurar a grandeza económica
e garantiu que vai erradicar o terrorismo islâmico, para gáudio das
multidões que encheram o Capitólio.
Com a mão na bíblia
e a cabeça no Twitter, o novo Presidente fez um discurso em que
misturou tiradas de livros de auto-ajuda, invocações de poderes
divinos e apelos ao ódio. Tudo embrulhado numa densidade discursiva
digna apenas de uma campanha eleitoral. Frases curtas, que se esgotam
em si mesmas, seguidas de outras no mesmo tom, com a cadência dada
pelas palmas nas pausas para respirar.
O efeito é o mesmo
do conseguido em campanha: moralizar o povo para ganhar força na
luta contra a elite e o poder instalado de que ele, paradoxalmente, é
o máximo representante. Trump sabe que ganhou com este discurso e
sabe que é ele que o pode suster nas próximas lutas. Não vão ser
quatro anos fáceis: O Presidente vai lutar contra o Congresso
republicano, contra a justiça, a imprensa e os próprios serviços
de inteligência. E em todos os embates vai usar a lógica do “nós
contra eles” – receita infalível, dogmática e fácil de
apreender pela turba ululante que compra os bonés de basebol.
Com isto, os
americanos abandonaram a lógica bipartidária. Não basta dizer
muitas vezes América para fazer um conservador, não chega repetir a
crença no povo para defender a democracia. O conservadorismo sai de
cena, não pelo extremismo do Tea Party mas pelo populismo com tiques
autoritários de Donald Trump. Nesse sentido, os Estados Unidos são
mais uma peça no dominó populista que tem varrido as democracias
ocidentais e que pode ter os próximos desenvolvimentos na Holanda e
em França.
A partir de hoje, os
EUA escolheram estar contra a globalização e a favor de um mundo
com fronteiras. Um mundo contra a diferença, contra o clima, contra
o comércio livre e contra a estabilidade. A América até pode
voltar a ser tão grande como o novo Presidente deseja, mas o custo
vai ser alto.
OPINIÃO
O
principiante
Carlos Gaspar
20 de Janeiro de
2017, 21:00
O tweet era
previsível e corria o risco de ser como foi, banal: “It all begins
today.” O mandato do novo Presidente é, bem entendido, o princípio
de todas as coisas. Mas o dia 20 de Janeiro foi, de facto, o
princípio da carreira pública de Donald Trump, o primeiro
Presidente dos Estados Unidos que chega ao cimo da hierarquia
institucional da República norte-americana sem nunca ter ocupado
quaisquer cargos políticos, nem exercido nenhumas funções
públicas.
A fórmula do
juramento está na Constituição e, no momento inicial, o Presidente
George Washington acrescentou-lhe quatro palavras necessárias —
“So help me God” — que quase todos os seus quarenta e quatro
sucessores têm repetido desde 1789. O primeiro Presidente também
quis fazer o seu juramento sobre a Bíblia: Trump mantém essa
tradição e, tal como Barack Obama, escolheu para a cerimónia a
Bíblia de Abraham Lincoln.
O discurso inaugural
do novo Presidente dos Estados Unidos é o mais importante na
carreira de um político americano. Os discursos de tomada de posse
dos grandes presidentes, como Lincoln ou Franklin Roosevelt, têm um
estatuto mítico na política americana; outros, demasiado longos,
excessivamente retóricos ou surpreendentemente breves, não ficaram
para a História. Mas todos podem ser avaliados por quatro critérios:
primeiro, o novo Presidente tem de unir os seus concidadãos, que se
dividiram na eleição democrática; segundo, tem de realçar a
herança dos valores comuns que definem a comunidade nacional;
terceiro, tem de dizer ao que vem, quais são as suas prioridades
políticas internas e externas; e quarto, tem de demonstrar a sua
vinculação aos termos constitucionais que definem o exercício e os
limites dos poderes do Presidente norte-americano.
O discurso de Trump
tem má nota em todos os quatro critérios. Desde logo, o novo
Presidente preferiu falar só para os seus eleitores e falou na
linguagem dos seus eleitores, excluindo a outra metade da comunidade
política. Por outro lado, trocou as referências aos valores comuns
que definem a democracia americana, como a liberdade, o pluralismo e
o primado do direito pela repetição ad nauseam da palavra-de-ordem
da sua campanha — “America First” —, a palavra-de-ordem dos
isolacionistas que, nos anos trinta, conseguiram adiar a intervenção
dos Estados Unidos na guerra contra o nazismo até à declaração de
guerra da Alemanha.
No mesmo sentido,
entendeu não ser necessário detalhar as suas políticas, para lá
de reiterar os princípios do nacionalismo e do proteccionismo
económico e de sublinhar a prioridade no combate contra o
“terrorismo islâmico radical”. Omitiu qualquer referência aos
tratados internacionais que vinculam os Estados Unidos, assim como à
NATO, crucial para a preponderância norte-americana. Por último,
nunca quis referir nem a Constituição, nem as instituições
políticas e judiciais, que definem a democracia americana e as
condições do exercício do mandato do Presidente dos Estados Unidos
num regime único de separação dos poderes. Pelo contrário,
referiu-se aos políticos num registo depreciativo, ao mesmo tempo
que associava o seu mandato não à candidatura do Partido
Republicano, mas a um “movimento histórico” sem precedentes que
mobilizou “dezenas de milhões”.
A tradição
jacksoniana explica, em parte, a catilinária anti-política,
anti-elitista e anti-globalização que é o fio condutor do novo
“politicamente correcto”. A descrição da “carnificina
americana”, com uma classe média arruinada pelos vícios do
internacionalismo e a corrupção das elites, é uma caricatura do
balanço do mandato do seu predecessor, que restaurou a economia
americana depois da pior crise financeira desde a Grande Depressão.
O novo Presidente mobiliza o ressentimento dos americanos,
propõe-lhes a “reconstrução” de uma América que não
reconhece limites ao seu poder e afirma que o seu mandato vai
“determinar o curso da América e do mundo por muitos e muitos
anos”. Os antigos sabiam que a demagogia é uma forma de corrupção
política.
O discurso inaugural
do novo Presidente preferiu celebrar a vitória da sua facção como
uma ruptura política, em vez de comemorar as virtudes da República
e a continuidade da democracia americana. Falta saber se o discurso
do Presidente Trump é um momento passageiro da nostalgia
reaccionária — uma tentativa fútil de resistir ao fim da história
hegeliana — ou se anuncia o inicio de um novo ciclo de ressurgência
dos nacionalismos.
Instituto Português
de Relações Internacionais (IPRI-UNL)
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