sábado, 21 de janeiro de 2017

O populismo no Capitólio / O principiante


EDITORIAL
O populismo no Capitólio
A América até pode voltar a ser tão grande como o novo Presidente deseja, mas o custo vai ser alto.

21 de Janeiro de 2017, 0:23

Donald Trump não quer estado de graça. Entrou ao ataque e fez um primeiro discurso sem tons de cinzento, mostrando que o mundo até é fácil de entender desde que as vistas sejam curtas e não se olhe para lá das fronteiras.

Populista, nacionalista e a agitar o fantasma do racismo, o líder da América ainda começou por dar a entender uma aproximação à união da América, mas não resistiu ao discurso divisivo de quem não sabe ganhar. Elencou promessas que prometem restaurar a grandeza económica e garantiu que vai erradicar o terrorismo islâmico, para gáudio das multidões que encheram o Capitólio.

Com a mão na bíblia e a cabeça no Twitter, o novo Presidente fez um discurso em que misturou tiradas de livros de auto-ajuda, invocações de poderes divinos e apelos ao ódio. Tudo embrulhado numa densidade discursiva digna apenas de uma campanha eleitoral. Frases curtas, que se esgotam em si mesmas, seguidas de outras no mesmo tom, com a cadência dada pelas palmas nas pausas para respirar.

O efeito é o mesmo do conseguido em campanha: moralizar o povo para ganhar força na luta contra a elite e o poder instalado de que ele, paradoxalmente, é o máximo representante. Trump sabe que ganhou com este discurso e sabe que é ele que o pode suster nas próximas lutas. Não vão ser quatro anos fáceis: O Presidente vai lutar contra o Congresso republicano, contra a justiça, a imprensa e os próprios serviços de inteligência. E em todos os embates vai usar a lógica do “nós contra eles” – receita infalível, dogmática e fácil de apreender pela turba ululante que compra os bonés de basebol.

Com isto, os americanos abandonaram a lógica bipartidária. Não basta dizer muitas vezes América para fazer um conservador, não chega repetir a crença no povo para defender a democracia. O conservadorismo sai de cena, não pelo extremismo do Tea Party mas pelo populismo com tiques autoritários de Donald Trump. Nesse sentido, os Estados Unidos são mais uma peça no dominó populista que tem varrido as democracias ocidentais e que pode ter os próximos desenvolvimentos na Holanda e em França.

A partir de hoje, os EUA escolheram estar contra a globalização e a favor de um mundo com fronteiras. Um mundo contra a diferença, contra o clima, contra o comércio livre e contra a estabilidade. A América até pode voltar a ser tão grande como o novo Presidente deseja, mas o custo vai ser alto.

OPINIÃO
O principiante
Carlos Gaspar
20 de Janeiro de 2017, 21:00

O tweet era previsível e corria o risco de ser como foi, banal: “It all begins today.” O mandato do novo Presidente é, bem entendido, o princípio de todas as coisas. Mas o dia 20 de Janeiro foi, de facto, o princípio da carreira pública de Donald Trump, o primeiro Presidente dos Estados Unidos que chega ao cimo da hierarquia institucional da República norte-americana sem nunca ter ocupado quaisquer cargos políticos, nem exercido nenhumas funções públicas.

A fórmula do juramento está na Constituição e, no momento inicial, o Presidente George Washington acrescentou-lhe quatro palavras necessárias — “So help me God” — que quase todos os seus quarenta e quatro sucessores têm repetido desde 1789. O primeiro Presidente também quis fazer o seu juramento sobre a Bíblia: Trump mantém essa tradição e, tal como Barack Obama, escolheu para a cerimónia a Bíblia de Abraham Lincoln.

O discurso inaugural do novo Presidente dos Estados Unidos é o mais importante na carreira de um político americano. Os discursos de tomada de posse dos grandes presidentes, como Lincoln ou Franklin Roosevelt, têm um estatuto mítico na política americana; outros, demasiado longos, excessivamente retóricos ou surpreendentemente breves, não ficaram para a História. Mas todos podem ser avaliados por quatro critérios: primeiro, o novo Presidente tem de unir os seus concidadãos, que se dividiram na eleição democrática; segundo, tem de realçar a herança dos valores comuns que definem a comunidade nacional; terceiro, tem de dizer ao que vem, quais são as suas prioridades políticas internas e externas; e quarto, tem de demonstrar a sua vinculação aos termos constitucionais que definem o exercício e os limites dos poderes do Presidente norte-americano.

O discurso de Trump tem má nota em todos os quatro critérios. Desde logo, o novo Presidente preferiu falar só para os seus eleitores e falou na linguagem dos seus eleitores, excluindo a outra metade da comunidade política. Por outro lado, trocou as referências aos valores comuns que definem a democracia americana, como a liberdade, o pluralismo e o primado do direito pela repetição ad nauseam da palavra-de-ordem da sua campanha — “America First” —, a palavra-de-ordem dos isolacionistas que, nos anos trinta, conseguiram adiar a intervenção dos Estados Unidos na guerra contra o nazismo até à declaração de guerra da Alemanha.

No mesmo sentido, entendeu não ser necessário detalhar as suas políticas, para lá de reiterar os princípios do nacionalismo e do proteccionismo económico e de sublinhar a prioridade no combate contra o “terrorismo islâmico radical”. Omitiu qualquer referência aos tratados internacionais que vinculam os Estados Unidos, assim como à NATO, crucial para a preponderância norte-americana. Por último, nunca quis referir nem a Constituição, nem as instituições políticas e judiciais, que definem a democracia americana e as condições do exercício do mandato do Presidente dos Estados Unidos num regime único de separação dos poderes. Pelo contrário, referiu-se aos políticos num registo depreciativo, ao mesmo tempo que associava o seu mandato não à candidatura do Partido Republicano, mas a um “movimento histórico” sem precedentes que mobilizou “dezenas de milhões”.

A tradição jacksoniana explica, em parte, a catilinária anti-política, anti-elitista e anti-globalização que é o fio condutor do novo “politicamente correcto”. A descrição da “carnificina americana”, com uma classe média arruinada pelos vícios do internacionalismo e a corrupção das elites, é uma caricatura do balanço do mandato do seu predecessor, que restaurou a economia americana depois da pior crise financeira desde a Grande Depressão. O novo Presidente mobiliza o ressentimento dos americanos, propõe-lhes a “reconstrução” de uma América que não reconhece limites ao seu poder e afirma que o seu mandato vai “determinar o curso da América e do mundo por muitos e muitos anos”. Os antigos sabiam que a demagogia é uma forma de corrupção política.

O discurso inaugural do novo Presidente preferiu celebrar a vitória da sua facção como uma ruptura política, em vez de comemorar as virtudes da República e a continuidade da democracia americana. Falta saber se o discurso do Presidente Trump é um momento passageiro da nostalgia reaccionária — uma tentativa fútil de resistir ao fim da história hegeliana — ou se anuncia o inicio de um novo ciclo de ressurgência dos nacionalismos.


Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)


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