Donald
Trump inaugura a era da “América primeiro”
Mais do que orientações
políticas concretas, o que se tentava encontrar no primeiro discurso
do novo Presidente era a sua interpretação do seu papel e de como
pretende desempenhá-lo. Foi radical, polarizador, provocador.
Rita Siza
RITA SIZA 21 de Janeiro de
2017, 0:55
Está desfeito o mistério: o
Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, será como foi o
candidato presidencial Donald Trump, um homem agressivo, radical,
polarizador e provocador, que não tem medo de usar palavras
carregadas de simbolismo – como patriotismo, força, orgulho e
destino – para proclamar que “de hoje em diante vai ser sempre a
América primeiro”.
Num dos discursos de tomada de
posse com o tom mais autoritários e isolacionista de que há
memória, o novo ocupante da Casa Branca enunciou a “nova visão
que vai governar o país” e atravessar as relações
internacionais, “a partir de agora”, e que é a da “América
primeiro” e acima de tudo o resto; a América que “brilha como um
exemplo a ser seguido por todos”, que nada teme porque está
“protegida por Deus” e cuja grandeza a torna “totalmente
imparável”.
Depois de uma campanha
eleitoral virulenta, que abriu uma profunda fractura no país,
esperavam-se de Donald Trump palavras conciliatórias, que servissem
para aproximar, sossegar e inspirar os norte-americanos. Em 2009, um
optimista Obama proclamara “o fim das queixas, falsas promessas,
recriminações e dogmas desgastados que durante tanto tempo
estrangularam a política” para superar as divisões e unir o país.
Trump manteve-se fiel ao seu guião de dividir para reinar.
No seu discurso inaugural, o
Presidente dos Estados Unidos falou exclusivamente para os seus
apoiantes: “os esquecidos” que ninguém ouvia e que foram até
Washington em grande número para assistir à sua tomada de posse (e
os restantes que seguiram a cerimónia pela televisão”. “Agora
toda a gente vos ouve. Este é o vosso dia e esta é a vossa
celebração. E este, os Estados Unidos da América, é o vosso
país”, declarou, apontando a multidão predominantemente branca,
mantida afastada por barreiras policiais de uma outra multidão,
notoriamente mais diversa, de manifestantes.
O 45.º Presidente dos EUA fez
questão de se anunciar como o primogénito de uma nova era política,
onde o poder já não está concentrado nas instituições de
Washington mas distribuído e pulverizado pelo país. “A cerimónia
de hoje tem um significado muito especial, não porque estamos apenas
a transferir o poder de uma Administração para outra, ou de um
partido para outro, mas porque estamos a transferir o poder de
Washington e a devolvê-lo ao povo”, observou.
Mais do que orientações
políticas concretas, o que se tentava descortinar no discurso de
Donald Trump era a sua interpretação do papel do Presidente e como
pretende desempenhá-lo. Desde a confirmação dos resultados
eleitorais de 8 de Novembro que se esperava uma “mudança” em
Trump, que deixaria de ser o candidato que instigava a tensão e
divisão para se transformar no Presidente de todos os
norte-americanos, representante e símbolo maior de uma das
democracias mais consolidadas e comandante do Exército mais poderoso
do mundo. Trump desmentiu essas expectativas do princípio ao fim do
seu discurso – parte do qual foi uma repetição dos slogans
populistas e nacionalistas da sua campanha – remetendo
sucessivamente para o seu manifesto político, e escusando-se a
estender o tradicional ramo de oliveira aos seus adversários
políticos e aos milhões de eleitores que não votaram nele.
Aliás, recusou sequer
reconhecer a presença na cerimónia da sua rival eleitoral, Hillary
Clinton, que recebeu cerca de três milhões de votos mais do que ele
próprio (e se apresentou vestida de branco, em homenagem à luta do
movimento sufragista que conquistou o direito ao voto para as
mulheres norte-americanas). Iludiu ainda as razões que justificaram
o boicote de dezenas de membros eleitos do Partido Democrata que
recusaram comparecer no Capitólio por causa do racismo do Presidente
– e também dos milhares que protestaram pelas ruas da capital, em
defesa dos direitos das mulheres ou das minorias de muçulmanos,
hispânicos, LGBT, ecologistas, artistas e até jornalistas.
Não foi só a oposição
democrata que o Presidente desafiou. Empossado com a mais baixa taxa
de aprovação da História, Donald Trump não se esforçou por
lançar as bases de uma colaboração mais estreita com os
legisladores do Congresso, incluindo a maioria do partido que o
elegeu, o republicano. O seu discurso nada teve de conservador: foi
revolucionário na denúncia do sistema que “soube proteger-se a si
em vez de proteger os cidadãos”, e dos políticos que prosperaram
e “recolheram as recompensas do governo enquanto o povo pagou os
custos”. “Nunca mais aceitaremos políticos que passam o tempo a
queixar-se mas nunca fazem nada. Acabou o tempo da conversa fiada,
chegou a hora da acção”, advertiu, prometendo atender “às
exigências justas e razoáveis do público honesto e honrado”.
Donald Trump deixou ainda para
trás, na escadaria do Capitólio, a habitual cordialidade que une os
membros do restrito clube dos antigos presidentes dos Estados Unidos
e se manifesta em todos os momentos de solenidade institucional.
Perante o seu antecessor Barack Obama, e também George W. Bush, Bill
Clinton e Jimmy Carter, pintou um retrato devastador do país que
herdou, referindo-se às vítimas de uma “carnificina” americana:
a pobreza que aprisiona mães e crianças, o crime e a droga que
roubam vidas, as fábricas transformadas em túmulos na paisagem.
O primeiro acto do Presidente
Trump: criou o dia nacional do patriotismo
O discurso de Trump na
íntegra: “De hoje em diante, uma nova visão vai governar a nossa
terra”
“Isso é o passado, a partir
de agora só olhamos para o futuro”, sublinhou, anunciando “como
um decreto” a sua visão de um país que que será outra vez
grandioso. “A América vai voltar a ganhar outra vez, a ganhar como
nunca ganhou antes. Vamos ter de volta os nossos postos de trabalho,
as nossas fronteiras, a nossa riqueza e os nossos sonhos”, prometeu
– insistindo que todas as suas decisões servirão para beneficiar
“os trabalhadores americanos e as famílias americanas”.
Quando ainda estava a escrever
o rascunho do discurso, Trump confessou que estava a inspirar-se em
John Kennedy, mas essa influência acabou por perder-se no texto. O
Presidente não perdeu muito tempo a olhar para o resto do mundo, mas
prometeu aplicar o mesmo princípio – de que os interesses dos EUA
estão à frente de tudo – nas relações internacionais. A sua
convicção é de que cabe naturalmente à América um papel de
liderança, mas desviando-se da linha de Roosevelt ou Reagan,
explicou que só pretende assumir esse exercício para “erradicar
completamente o terrorismo islâmico da face da Terra”. De resto,
disse que os EUA procurarão “a amizade e boa vontade das nações
do mundo". "Sem precisar de impor o nosso modo de vida, que
brilhará como um exemplo para os outros seguirem”.
Europa
deve preparar-se para “uma caminhada violenta”
Vice-chanceler
alemão ouviu a Trump “um tom altamente nacionalista”.
Sofia Lorena
SOFIA LORENA 20 de
Janeiro de 2017, 21:42
Houve poucas
reacções internacionais ao discurso de tomada de posse de Donald
Trump que fossem para lá das felicitações da praxe. A principal
excepção chegou de Berlim, onde o vice de Angela Merkel e líder
dos sociais-democratas alemães ficou preocupado com o “tom
altamente nacionalista” da intervenção do novo Presidente dos
Estados Unidos e ficou preocupado com as promessas proteccionistas do
líder que repete “América primeiro”.
“Penso que temos
de nos preparara para uma caminhada violenta”, disse Sigmar
Gabriel, horas depois da cerimónia no Capitólio. Questionado pelo
jornalista da televisão ZDF sobre a possibilidade de Trump deixar
cair algumas suas promessas, como a imposição de impostos muito
altos a carros importados do México, Gabriel disse acreditar que
“ele está a falar extremamente a sério”.
As intenções
proteccionistas de Trump assustam por várias vias, incluindo a
possibilidade de abrir uma guerra comercial com a China que possa
prejudicar a economia global. “Se os EUA entrassem em guerra
comercial com a China e com toda a Ásia, então nós, enquanto
europeus e alemães, seremos parceiros justos”, afirmou. “A
Europa e a Alemanha precisam de uma estratégia definida em relação
à Ásia e à China e teremos novas oportunidades”, defende
Gabriel. A conclusão do político alemão é que “os europeus
devem unir-se na defesa dos seus interesses”.
Da Ásia apenas uma
reacção, vinda de Taiwan, um território que a China não reconhece
como autónomo – e a propósito do qual Trump já alimentou uma
polémica, ao atender um telefonema de felicitações da sua líder
depois de ter sido eleito. “A democracia é o que une Taiwan e os
EUA. Estou impaciente para reforçar a nossa amizade e parceria”,
afirmou a Presidente taiwanesa, Tsai Ing-wen.
O vizinho em cuja
fronteira Trump planeia construir um muro para travar a imigração
foi outros dos que não ficaram calados no dia da tomada de posse.
Depois de lhe dar os parabéns pelo juramento, Enrique Peña Nieto
disse a Trump que gostaria de o ver fortalecer os laços entre os
dois países, numa "responsabilidade partilhada" mas
avisou-o que "a soberania, os interesses nacionais do México e
a protecção dos mexicanos" é que são fundamentais para si.
Do Vaticano veio a
promessa do Papa de que rezará pelo novo líder americano e vai orar
para que “as suas decisões sejam guiadas pelos ricos valores
espirituais e éticos ricos que fazem a história do povo americano”,
pedindo a Trump que lidere um país “preocupado em cuidar dos
pobres, dos excluídos e dos necessitados que, como Lázaro, se detêm
à nossa porta”, numa formulação que Francisco parece ter
escolhido para incluir os refugiados a quem Trump quer fechar a
fronteira.
Sem comentários:
Enviar um comentário