Trump,
o rei dos tempos modernos
Não
é um democrata, não é um liberal, não é um conservador, nem um
fascista, nem um nacionalista, é um demagogo revolucionário,
egocêntrico e autoritário, que só ouve a voz do seu próprio
sucesso.
28 de Janeiro de
2017, 7:41
Imaginem uma mistura
de um comentador anónimo cheio de fúria com todos que não são ele
próprio com um troll da Internet e alguém que vive entre “gostos”
e conflitos nas redes sociais, um participante num reality show, um
espectador obsessivo de televisão do crime, do sangue, dos
escândalos, dobrado de um dos banqueiros que nos fez chegar à crise
de 2008, um dos empresários que faz parte da lista das imparidades
da Caixa, do BES, de tudo quanto é banco e continua a viver como se
nada fosse, um menino mimado, um bully que se sente impune para
ameaçar quem quiser e tem alguns meios para ser temido nessas
ameaças. Ao fazer isto tudo, ou algumas destas coisas, ao ter alguns
destes vícios e obsessões, fica-se a pensar e a actuar de uma
determinada maneira? Claro que fica. E não é boa.
Pois deitem salvas e
foguetes, uma personagem destas chegou a Presidente dos EUA. É um
populista e um demagogo clássico? Também é, mas é mais moderno do
que clássico, mais novo do que antigo. Esqueçam a senhora Le Pen
(não, não esqueçam), um produto reciclado da extrema-direita
francesa, uma das que têm maior história na Europa, porque Trump é
outra coisa, com outra história, outros know-how, outros riscos
enormes para a democracia e a paz do mundo. Trump é um populista e
um demagogo, mas também é um revolucionário, quer realmente mudar
as coisas, nem que para isso tenha de levar tudo à frente. Para onde
as quer levar sabemos pelos slogans e as intenções, mas eu
aconselhava toda a gente a tomá-los à letra, mesmo quando
contraditórios. Quer fazer da América “grande”; quer “dar
voz” aos danados da terra do rust belt; quer dar aos empresários
tudo o que precisam para deixarem de se preocupar com impostos, com a
regulação, com tudo o que lhes dificulte ganhar mais dinheiro e
fazer mais fábricas, mais empresas, mais automóveis, mais pontes e
estradas; quer expulsar os “outros”, milhões de estrangeiros
ilegais, que diz estarem nos EUA, quer-se dar bem com Putin, que acha
que é como ele, esperto, audaz, sem regras, e não está disposto a
ter de pagar a defesa dos europeus, nem dos japoneses, nem dos
coreanos, nem de ninguém que não seja americano.
Mais do que querer
controlar como nós pensamos, quer forçar-nos a pensar como ele
pensa. Se não vão a bem, vão a mal. No seu mundo, a sua opinião
sobre as coisas é equivalente à verdade, uma atitude muito comum
nas redes sociais e usa todos os meios para que, se não conseguir
que só a sua “opinião-verdade” circule, pelo menos que circule
com o mesmo estatuto dos factos. Há vários exemplos típicos de
como se perde qualquer conteúdo neste tido de comunicação.
Comunica-se apenas a força, mais nada. Depois de ter feito
declarações ofensivas para as mulheres várias vezes, quando
confrontado, repete à saciedade que “ninguém mais do que [ele]
respeita as mulheres”. Repare-se: “ninguém mais…” Fez o
mesmo com os serviços de inteligência. Depois de lhes ter chamado
“nazis”, foi à CIA dizer que “ninguém mais do que [ele] preza
os serviços de informação”- Repare-se, de novo: “ninguém
mais…” Tudo se torna opinião – insisto, como nas redes sociais
– e num mundo em que a opinião, a impressão, o “achar”
substituem os factos pela força do número e a amplitude do vozear.
A racionalidade é expulsa. Domina apenas o pathos.
A relativização do
espaço público torna-se total e isso faz depender o que cada um
pensa apenas da força de quem tem mais força. O bullying na
informação é um factor fundamental da “experiência Trump”
para varrer o espaço público dos factos incómodos e mostrar que
apenas uma voz tem força – a sua. É um dos sinais mais
preocupantes da tendência para o autoritarismo em Trump.
Veja-se a utilização
do Twitter. Trump usa o Twitter para dar notícias, para emitir
opiniões e para fazer uma espécie de decretos presidenciais. Nada
do que ele faz é novo, tudo são formas clássicas de comunicação.
Se, em vez de dizer no Twitter “Amanhã haverá novidades sobre
segurança nacional”, os seus serviços de imprensa fizessem uma
nota dizendo “O presidente Trump anunciará amanhã numa visita à
sede de CIA novas iniciativas sobre segurança nacional”, o
conteúdo seria exactamente o mesmo. Se fizesse uma declaração à
imprensa à saída ou à entrada de uma reunião, como é habitual
acontecer em Portugal, dizendo que é um escândalo a CNN manipular o
número de pessoas na tomada de posse, é o mesmo que no Twitter
dizer as mesmas palavras, sem tirar nem pôr. O uso do Twitter para
anunciar uma decisão é o mesmo que emitir uma “ordem executiva”
que depois assina em papel numa pasta de couro emoldurada a ouro.
Nada disto é novo,
só teve um upgrade tecnológico que lhe dá uma dimensão nova e
essa dimensão tem sérias consequências sociais, culturais e
políticas. Ao escolher um sistema de mensagens que tem o limite de
140 caracteres, Trump está a fazer uma declaração, um grito, uma
ordem, mas prescinde de qualquer explicação racional para o que
está a dizer, porque não cabe na mensagem, nem ele o quer fazer.
Mas está também a falar do local do poder, a tornar puramente
pessoal a comunicação e a pretender fazê-lo sem mediação. Aqui
está outra coisa em que ele é moderno: para ele não importa, nem
ele deseja, que haja qualquer mediação que “inquine” a sua voz.
É ele e o “povo”. O Twitter substitui a comunicação social.
Todas as suas
declarações e medidas são quase sem excepção inaceitáveis numa
sociedade democrática, e não adianta dizer que tudo foi sufragado
pelo “povo” em eleições. Uma democracia, vale a pena estar
sempre a repeti-lo, não é apenas o voto – é também os
procedimentos e o primado da lei. O modo como fala de deportar os
ilegais só pode ser feito com um enorme reforço policial e campos
de concentração. E depois onde é que os deixam? Na fronteira com o
México? Atiram-nos ao mar para eles regressarem à Síria ou ao
Brasil? Deportar dois milhões de pessoas não tem precedente desde a
Segunda Guerra e não pode ser feito em tempo de paz sem uma mudança
estrutural do Estado, tornando-o um Estado policial. O modo como fala
da tortura viola várias convenções sobre a guerra e as declarações
de direitos humanos que os EUA assinaram, para além de que qualquer
militar lhe dirá que isso expõe os soldados americanos ao mesmo
tipo de práticas. As guerras não são só com o ISIS, que não
conhece qualquer regra, mas com outros inimigos, que estarão agora à
vontade para aplicar aos americanos os mesmos métodos. A
Administração Trump ficará igual aos torcionários argentinos e
brasileiros.
A imediata ameaça e
chantagem às empresas que trabalham fora dos EUA, às cidades que se
recusam a entregar informação sobre emigrantes ilegais que nelas
habitam, como Nova Iorque, ou que se recusam a aceitar as políticas
de discriminação religiosa contra os muçulmanos, a todos os
sectores da administração ligados a políticas de natalidade, de
controlo dos nascimentos, de igualdade de género são também mais
típicas de uma governação autoritária do que democrática.
Trump quer fazer o
que quer sem qualquer entrave. Não é um democrata, não é um
liberal, não é um conservador, nem um fascista, nem um
nacionalista, é um demagogo revolucionário, egocêntrico e
autoritário, que só ouve a voz do seu próprio sucesso. E, como
sucesso não lhe falta, essa voz soa-lhe bem alto. Milhões de
americanos já entenderam que com Trump a resistência tem de ser
imediata e constante e não pode ser complacente ou adiada. Como
Trump tem com ele também muitos milhões, o ambiente político nos
EUA é de cortar à faca e vai-se agravar todas as vezes que ele
abrir a boca, e vai abri-la todos os dias, porque precisa de um
contínuo fluxo para alimentar o seu estilo revolucionário.
Menosprezem-no e pagarão um preço bem alto.
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