JOSÉ SOEIRO
Tavares
e o patrão-padeiro
27.01.2017 às 15h24
Primeiro, falou o
patrão da Padaria Portuguesa, para quem o aumento do salário mínimo
“só interessa aos políticos” (ou seja, não diz nada às cerca
de 700 mil pessoas em Portugal que o recebem). No dia seguinte, João
Miguel Tavares veio fazer no Público mais uma das suas revelações
bombásticas: afinal, o salário mínimo tinha aumentado para 877
euros. No mesmo dia, o empreendedor das Padarias dá ao Expresso uma
entrevista onde repete os números de Tavares (“este salário
mínimo tem um peso de 877 euros”) e ilumina-nos sobre o que querem
verdadeiramente os trabalhadores: não, não é que haja aumento de
salários, mas é “poderem ter contratos de 60 horas por semana”
(ou seja, 12 horas por dia). O país, estremecido por tão
estrondosos segredos, pode agora despertar da ignorância em que
vivia na era pré-Tavares e pré-pasteleiro. Só há um pequenino
problema: são duas intrujices descaradas.
OS MAIS DE 1000
MILHÕES DADOS ÀS EMPRESAS NÃO CONTAM?
João Miguel Tavares
acha que pagar férias e segurança social é uma extravagância
dispensável e uma maçada para as empresas. Mas antes de irmos às
contas de Tavares, há um numero de que o cronista não fala: as
centenas de milhões de euros de dinheiro público dado às empresas
em “apoios à contratação”. Como lembrou João Ramos de
Almeida, em cinco anos as empresas receberam mais de 1270 milhões de
euros dos contribuintes para contratarem de forma precária (770
milhões de euros de estágios-emprego, 137 milhões de euros para
“contratos emprego-inserção”, 366,9 milhões para apoios à
contratação). Querem mesmo falar em subsidiodependência? Nas
contas de Tavares, seletivo nos factos, esses números não entram.
877 EUROS? AS CONTAS
DE TAVARES NÃO BATEM CERTO
Mas vamos ao cálculo
sobre os salários. Tavares diz que as suas contas “são fáceis de
fazer”. Primeiro, soma-se aos 557 euros o valor das contribuições
para a segurança social a cargo dos empregadores (23,75%). Depois
multiplica-se por 14 (12 meses mais o subsídio de férias e de
Natal), o que dá 9650 euros por ano e depois divide-se por... 11
meses (porque num ano há 22 dias de férias). Percebeu o salto? De
uma penada, Tavares eliminou o direito a férias pagas como parte da
relação laboral (um direito reconhecido há 80 anos) e separou do
salário o que não pode ser separado: o que vai para a segurança
social.
Mas a conta fica
mais confusa com a explicação do patrão-padeiro: “Este salário
mínimo de 557 euros tem um peso de 877 euros por mês para as
empresas, são 300 que o Estado leva”. O Estado leva 300 euros do
seu salário? Como assim, o sacana? De impostos? Não. Os tais 300
euros são os dias de férias que estão na lei e a parte do salário
que vai para a segurança social, que é o seguro do trabalhador para
cobrir a eventualidade de doença, a proteção no desemprego ou que
lhe dá o direito a reforma. Se ouvisse um patrão dizer “queremos
acabar com as férias e queremos que não tenha direito a uma pensão
quando se reformar”, o que pensaria? Que ele era um monstro,
provavelmente. E se lhe dissessem o mesmo mas lhe chamassem “o
Estado”? Pois. Esses “300 euros” que, segundo o patrão da
Padaria, “o Estado leva”, não é o Estado que leva: esses 300
euros que o padeiro acha que “estão a mais” são o seu subsídio
de férias, de natal, as suas férias e a sua reforma. Ou seja, o
argumento é só um truque para incautos.
O PARAÍSO DO
PATRÃO-PADEIRO: TRABALHAR 12 HORAS POR DIA SEM PROTEÇÃO SOCIAL NEM
RECEBER HORAS EXTRA
A entrevista de Nuno
Carvalho ao Expresso é um tratado. Ficamos a conhecer o seu sonho e
o seu projeto. Precarizar totalmente os contratos de trabalho (em
nunocarvalhês: “flexibilizar a legislação laboral” por via de
“ciclos profissionais e motivacionais mais curtos”), acabar com a
definição de funções no contrato, se possível abolir o salário
mínimo (“a definição ideal de um salário num mercado livre
seria a relação entre a oferta e a procura”), eternizar o período
experimental (em nunocarvalhês: deve “haver oportunidade de, com
maior longevidade, o funcionário e o empregador se conhecerem”),
acabar com o direito à folga semanal e ao fim de semana (em
nunocarvalhês: os “colaboradores” querem sobrepor “horário do
negócio” ao “horário definido por lei no descanso semanal”)
e, claro, acabar com as 40 horas semanais, definidas pela primeira
vez em Portugal em 1891. “As pessoas têm capacidade para trabalhar
mais de 40 horas semanais”, diz o patrão, que explica que os seus
“colaboradores” gostariam de trabalhar “num registo de 60
horas”.
Qualquer uma destas
ideias é tudo menos original. Aliás, já foram postas em prática.
No século XIX. Trabalhava-se 12 horas, e às vezes mais, não havia
salário mínimo nem descanso semanal nem limites aos despedimentos
nem segurança social. A luta pelas 40 horas semanais (em cada dia, 8
horas de trabalho, 8 horas de descanso, 8 horas para o resto) deu
origem ao 1º de maio, lembrando os mártires de Chicago de 1886.
Depois veio o Direito do Trabalho, a Segurança Social e essas
extravagâncias que, pelo patrão da padaria, acabavam todas.
Tudo isto é
apresentado como se fosse um ato de generosidade new age: segundo o
empreendedor das padarias são os “colaboradores” que suplicam
por esse futuro radioso. Está-se mesmo a ver, não está?
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