FARTOS DE SERMOS
TRATADOS COMO ESTÚPIDOS
RICARDO J RODRIGUES
Foi hoje escolhida a
palavra do ano. Durante semanas, as redações receberam comunicados
de uma votação online promovida por um grupo editorial e, esta
manhã, os resultados foram anunciados numa conferência de imprensa.
Vários meios deslocaram jornalistas, fotógrafos e repórteres de
imagem para o evento. À hora de almoço, as televisões reuniram
comentadores em estúdio para debater o assunto. Aquela podia ser uma
notícia, sim, mas no máximo uma breve. Para a maioria dos cidadãos,
a escolha de ‘geringonça’ para palavra do ano tem pouco
interesse. Se calhar não tem mesmo interesse nenhum. Mas este é um
exemplo que mostra tudo o que se passa de mal com o jornalismo de
hoje.
‘Geringonça’,
recorde-se, foi a expressão utilizada pelo cronista Vasco Pulido
Valente para definir o acordo parlamentar da esquerda. É uma palavra
com uma conotação negativa e, se um cronista podia utilizá-la, os
jornalistas nunca poderiam fazê-lo. O trabalho dos jornalistas é
fornecer aos cidadãos a informação rigorosa de que estes precisam
– para poderem formar, esclarecidamente, a sua própria opinião.
No entanto, os informadores passaram a utilizá-la despudoradamente,
condicionando assim os leitores. E não podemos deixar de pensar
nisto quando vemos que as pessoas que deixaram de confiar na
imprensa, que não encontram hoje utilidade no que leem, que pensam
que os jornalistas deixaram de ser os representantes dos cidadãos e
passaram a ser representantes do sistema. Com esta ‘geringonça’,
lhes damos razão.
Há sinais claros
nas nossas sociedades de que as pessoas estão a deixar de confiar no
sistema. Elegem ditadores e votam no impensável porque já não se
sentem protegidas pelos atores do costume, nem esperam que eles os
defendam. Isto inclui políticos, economistas, advogados. E inclui
jornalistas. Tenho vários amigos – pessoas inteligentes, por quem
tenho apreço – a queixar-se do mesmo. Que os jornais vivem na
bolha distante onde também se movimentam políticos, economistas e
advogados. E que esse diálogo é fechado, acontece entre uns e
outros, e completamente à margem dos cidadãos. Não é que os
assuntos da política, da economia e do direito não tenham
importância para as pessoas. Têm, são até bastante relevantes.
Mas raras vezes são tratadas pela perspetiva dos cidadãos.
Na próxima semana,
os jornalistas portugueses vão reunir-se pela quarta vez em
congresso na história da democracia. Há 19 anos que uma reunião
destas não acontecia. E, no topo das preocupações, tem de estar
esta: os jornais não podem perder os cidadãos. Não podem deixar de
ser os representantes da sociedade, a voz que testemunha, denuncia e
controla os poderes. É que, sem jornalismo, não há democracia. E
os tempos que vivemos estão a mostrar-nos que há riscos reais para
a liberdade de expressão. Que nos temos de ocupar do que realmente
importa. A única forma de inverter o caminho é convocar os cidadãos
para o lado da imprensa. Mas, para isso acontecer, a imprensa tem de
se colocar do lado dos cidadãos.
É bastante
importante que se deixe de tratar as pessoas como estúpidas. Esta
‘geringonça’ é, aliás, uma estupidez dupla. Em primeiro lugar,
porque foi utilizada despudoradamente pela imprensa, apesar de estar
impregnada de simbologia política. Mas volta a mostrar todo o seu
esplendor de imbecilidade quando vemos a comunicação social
mobilizar meios humanos, materiais e gastar tempo para fazer a
cobertura disto: uma conferência de imprensa de um grupo editorial
que quer anunciar os resultados de uma votação online para palavra
do ano. Qual é a relevância disto, na verdade? Zero. Deste governo
não tenho nada a dizer. Desta palavra, digo isto: está a matar,
todos os dias, a mais bela profissão do mundo.
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