OPINIÃO
A
delação premiada
JOÃO MIGUEL TAVARES
06/08/2015 - PÚBLICO
Há aqui uma ironia
adicional: foi Dilma quem assinou a mais recente lei de delação
premiada.
A tão admirada
operação Lava Jato só está a ser possível devido à instituição
do mecanismo da “delação premiada”, que permite à justiça
brasileira negociar com colaboradores a denúncia de outros crimes e
criminosos, em troca de uma redução de pena até dois terços, do
seu cumprimento em liberdade, ou até mesmo do perdão judicial.
O Brasil não está
sozinho nisso: a delação premiada está instituída em países como
os Estados Unidos, onde é utilizada em larga escala, ou a Itália,
onde foi absolutamente fundamental no combate à corrupção, em
particular na famosa Operação Mãos Limpas.
A adopção de uma
lei semelhante em Portugal deveria estar a ser debatida. É verdade
que o nosso enquadramento jurídico inclui a figura do “direito
premial”, que valoriza vagamente a colaboração dos arguidos e
permite a atenuação das penas nos casos de corrupção e
branqueamento de capitais. Mas todas estas possibilidades estão
dissolvidas na costumeira abstracção jurídica nacional, sem que
nunca tenha sido desenvolvida uma definição clara do estatuto do
arrependido. Aliás, o próprio conceito do “arrependido” é
esclarecedor quanto à postura da lei nacional, que parece mais
interessada em salvar almas criminosas do que na eficácia da
aplicação da lei: o delator à brasileira não tem de estar
arrependido de coisa alguma, admite-se perfeitamente que ele esteja
apenas interessado em salvar a pele. É uma perspectiva utilitarista
da lei, que o enquadramento jurídico português valoriza pouco.
O resultado deste
puritanismo jurídico, que de certa forma entende que uma justiça
digna não deve negociar com criminosos, é aquele que se vê: um
país com altos níveis de corrupção e inúmeras investigações,
mas sem corruptos presos. Basta pegar no popular caso Sócrates e ver
o modo como a investigação parece andar aos círculos. As
justificações de Sócrates para tamanha ostentação de riqueza são
totalmente implausíveis, mas não é por acaso que a sua defesa
afirma obsessivamente que não sabe de que crime está o seu cliente
acusado – nos casos de corrupção, os indícios podem ser
gritantes, mas prová-los é uma tarefa hercúlea, dada a
sofisticação e complexidade dos processos envolvidos.
Numa edição
recente da revista Época, um dos mais destacados procuradores da
Operação Lava Jato – Deltan Dallagnoi – assinou um óptimo e
cristalino artigo em defesa do mecanismo da delação premiada,
sobretudo após Dilma Rousseff ter declarado publicamente que “não
respeita delator”. “Estive presa na ditadura e sei o que é.
Tentaram-me transformar em uma delatora”, afirmou. Comparar a
actuação de uma ditadura assassina com a de um Estado de direito é,
só por si, uma obscenidade, mas há aqui uma ironia adicional: foi
Dilma quem assinou a mais recente lei de delação premiada.
No seu texto,
Dallagnoi dá o exemplo de uma anotação ilegível encontrada num
documento apreendido: “Pgto to Gr@ + Gr! Dedznd partGr@KA +
127,000”. Só com a colaboração de um investigado foi possível
compreender o seu significado (valores de subornos e respectiva
divisão), mas, sobretudo, ir atrás das provas que comprovassem
materialmente o pagamento de tais subornos. De facto, o principal
objectivo da delação premiada não é a condenação por
depoimento, mas sim orientar a investigação na direcção certa e
alertá-la para crimes e criminosos que ela própria desconhecia.
Tendo em conta a evolução e a complexificação do crime
organizado, é um instrumento que faz todo o sentido a justiça ter
ao seu dispor.
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