Querida,
arrendei a casa a turistas (e a cidade nunca mais será a mesma)
João Pedro Pincha
/05 Agosto 2015 / OBSERVADOR
Os
'hostels' e apartamentos para turistas estão a mudar a face de
Lisboa. Há negócios a abrir e mais gente nos bairros históricos,
mas os moradores de antigamente sentem-se abandonados.
Não foi há muitos
anos que o toque das Avé-Marias mudou. O novo pároco chegou à
Igreja de Santo Estêvão e, talvez para mostrar que as coisas iam
mudar, trocou o característico “A 13 de Maio” por “A Virgem do
Rosário”, melodia que agora se ouve nos sinos da igreja e ressoa
até nos mais recônditos becos de Alfama, em Lisboa. Provavelmente,
a longa sinfonia soa estranha a um visitante ocasional do bairro, mas
para Alcinda não tem segredos, nem podia ter. Dos 67 anos que já
tem, 67 foram passados aqui. “Eu nasci na freguesia de Santo
Estêvão e fui batizada na paróquia de Santo Estêvão. Sou mesmo
alfamista, com muito gosto e muito prazer”.
O mesmo não pode
Alcinda dizer dos vizinhos que há uns anos tem no prédio onde
sempre viveu, na esquina entre os becos da Lapa e dos Ramos.
Raramente param por ali mais do que uma semana, raramente falam
português e frequentemente dão dores de cabeça a quem ali mora há
já tanto tempo. Alfama é um dos bairros lisboetas onde nos últimos
tempos disparou o número de camas para turistas, tanto em hostels
como em apartamentos particulares, publicitados através de sites
como o AirBnB, o Booking e o HomeAway, entre outros. Esta realidade,
que já existia clandestinamente, foi regulada no ano passado através
de um decreto-lei que veio tornar mais fácil o acesso às atividades
de alojamento local e que, conjuntamente com a nova lei das rendas,
mudou a face das cidades.
Em Alfama, uma das
equações mais frequentes é relativamente simples: depois de
décadas na mesma casa, o inquilino morre, o senhorio faz obras e,
pouco depois, começa a arrendar a casa a turistas, que vêm em busca
do mais typical que há na capital e não aparece nos guias. Prédios
que muitas vezes estavam a cair aos bocados ganham uma nova cara,
gente jovem invade o bairro e as lojas de artesanato e souvenirs
multiplicam-se. “Nós é que levamos com a merda toda em cima.” A
frase de Alcinda talvez não seja a mais eloquente, mas resume o
sentimento de muitos moradores dos bairros históricos de Lisboa, que
se sentem quase como peças de mobília para inglês ver. No edifício
desta alfamista, “é de manhã à noite”, queixa-se: os moradores
temporários passam o tempo “a bater com os pés na janela e no
chão”, que ainda é de madeira e deixa passar até o mais leve
som.
Apesar das muitas
caras novas e pouco bronzeadas que se veem por aqui, nestes becos
onde não passa um carro ainda vai havendo uma vivência bairrista.
Por isso, enquanto fala sentada a uma mesa de fórmica onde uma
embalagem de maionese ficou esquecida do almoço, Alcinda vê chegar
vizinhos que se juntam à discussão. Um deles, emigrante em França,
tem outra visão. “Eu se fosse turista punha era a merda de Alfama
toda daqui para fora”, ri-se, argumentando que o aumento de
alojamento local veio dar uma nova vida ao bairro e contribuiu para a
reabilitação urbana. “Preferia aí ver os prédios todos a
cair?”, questiona.
Câmaras
municipais não fiscalizam
A noção de
“alojamento local” já tem estatuto legal desde 2008, mas só
desde o ano passado tem um regime jurídico próprio. Até aí, as
regras que se lhe aplicavam eram as dos empreendimentos turísticos,
que são bastante exigentes e não incentivavam os proprietários a
arrendar dentro da lei. Com o diploma em vigor desde novembro de
2014, quem queira arrendar a casa a turistas e/ou veraneantes só tem
de se registar junto da câmara municipal onde se situa o alojamento
e voilà, pode começar imediatamente a faturar. Segundo os dados do
Registo Nacional do Alojamento Local, já foram legalizados desde
então 18.019 alojamentos, entre apartamentos, moradias, quartos,
pensões e hostels. Dá uma média de 76 por dia.
O registo de um
alojamento local pode ser feito através do Balcão do Empreendedor,
uma plataforma virtual especificamente criada para o licenciamento de
atividades económicas. O registo é hoje tão fácil que há casos
insólitos: na ilha açoriana da Graciosa, por exemplo, há um
alojamento local propriedade de um tal “fdhgdfhgdfhg”, que
arrenda o apartamento “jghjfghjfg” na localidade “asdfsadf”.
Segundo a lei, a
câmara municipal é obrigada a fazer uma vistoria a cada novo
alojamento no prazo de 30 dias a contar da abertura do espaço. De
acordo com o artigo 8º decreto-lei n.º 128/2014, o objetivo é
perceber se o que o senhorio disse no registo se confirma no terreno.
Ou seja, se o número de quartos e camas está correto, se o edifício
tem condições para alojar turistas e, entre outras coisas, se o
nome de quem arrenda está conforme. O Observador questionou a
autarquia de Santa Cruz da Graciosa sobre este apartamento, mas até
ao momento não obteve resposta.
Sem comentários:
Enviar um comentário