Turistas
na nossa própria cidade
JOSÉ FERRÃO AFONSO
04/08/2015 -PÚBLICO
A Livraria Lello
começou a cobrar entradas: três euros por pessoa. Presume-se que
apenas para os turistas, não para os seus “naturais”
frequentadores, ou seja, os apreciadores e compradores de livros.
Entre o final da adolescência e dos meus 20 anos, contei-me entre
estes últimos: era, não apenas um frequentador assíduo, mas também
um leitor compulsivo. De tal modo que, confesso, não prestava grande
atenção ao ambiente neogótico da arquitectura, que via como um
invólucro razoavelmente atraente para aquilo que na verdade me
interessava.
A cobrança de
entradas veio, portanto, oficializar algo que corresponde a uma
completa inversão da funcionalidade primeira da livraria: a
arquitectura tornou-se o maior motivo de atracção, enquanto os
livros sobram como um simples adereço que, arrisco-me a dizer, bem
poderiam ser substituídos por souvenirs da torre dos Clérigos ou
camisolas do Ronaldo.
O microcosmos da
Lello não é muito diverso do macrocosmos da cidade actual,
sobretudo do seu centro histórico. A enorme afluência do turismo
introduziu profundas cisões numa paisagem antiga, cujos problemas já
se faziam sentir há décadas. Composta, não apenas pela sucessão
das gerações que aí viveram, trabalharam, descansaram ou
brincaram, e pelo cenário material que criaram enquanto o faziam,
essas debilidades antigas tornaram-na particularmente exposta à
“Barcelonização” em curso.
O afluxo crescente
do turismo impôs uma nova economia, novas formas de sociabilização
e novos modelos culturais transportados pelos recém-chegados. A
consequência para os residentes é, a longo prazo, a expulsão ou
uma difícil reconversão.
Restará, portanto,
o cenário: as tascas e casas de pasto transformadas em retiros de
francesinhas especiais, lojas de produtos gourmet ou cafés new age,
as pensões mais ou menos manhosas em hostels, o comércio a retalho
na invariável loja de recordações. Em alternativa, os moradores
que pretenderem ficar poderão sempre aprender a cuspir labaredas de
fogo, fazer bolas de sabão gigantes ou girar, barulhentos como DJ’s,
mostrando a sua animação.
Tudo isso se
reflecte no aumento generalizado dos preços, das rendas e, de uma
maneira geral, do custo de vida. Os poucos que por enquanto não
foram atingidos pela febre inflacionista e mantêm a qualidade da sua
produção — engraxadores, barbeiros e afins — fazem-no porque o
turismo os olha, até ver, com um receio que a curiosidade ainda não
venceu e, portanto, não recorre aos seus serviços. Desconheço se,
com os vendedores de substâncias proibidas, ou as conservadoras de
S. Lázaro, ocorre o mesmo…
Fica, portanto, o
gótico (neo) e desaparecem os livros. Ou antes, eles estão lá, mas
reduzidos a encadernações. No fundo, não faltará muito para que
sejamos turistas na nossa própria cidade.
Docente da Escola
das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto
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