A
concentração agendada para amanhã e que está a ser divulgada através do Facebook
descreve-se como uma iniciativa “cívica e apartidária de cidadãos que amam o
cinema” e que ”reivindicam o não encerramento da Cinemateca Portuguesa”, que
associam a um “importante serviço público de difusão e preservação da arte
cinematográfica e, em especial, do cinema português”.
Os organizadores da concentração frisam a importância da “manutenção do Museu
do Cinema, do seu serviço educativo através da Cinemateca Júnior, da sua
biblioteca especializada e do ANIM - Arquivo Nacional de Imagens em Movimento,
entidade que é única no trabalho de conservação e restauro do património
cinematográfico nacional”.
A Secretaria de Estado da Cultura
mantém
em comunicado que “a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e o ANIM não vão
fechar. Independentemente de quaisquer circunstâncias, as medidas para garantir
o funcionamento da Cinemateca estão a ser asseguradas”, sem adiantar esta
quinta-feira mais pormenores.
Os
problemas financeiros que a Cinemateca ultrapassa são do conhecimento da
tutela desde Abril, segundo Maria João Seixas, tendo sido accionadas “dotações
extraordinárias” do Fundo de Fomento Cultural em Junho e Julho (400 mil euros no
total) para solucionar esses problemas. Mas em Agosto não surgiram verbas para
compensar os problemas administrativos e financeiros da instituição, causados
pelas quebras nas receitas publicitárias das televisões – os anunciantes são
obrigados por lei a pagar uma taxa de 4% sobre a publicidade exibida nos canais
de televisão e 20% do total dessa taxa destina-se ao financiamento da Cinemateca
e do ANIM – mas também à perda de autonomia financeira e de gestão das
instituições.
Além da concentração agendada para
sexta-feira, na véspera do final do mês e com a programação de Setembro
delineada na instituição, existe ainda uma petição online
em defesa
da Cinemateca que tem também como objectivo que o tema seja discutido na
Assembleia da República e que já ultrapassou as 4000 assinaturas – o número
necessário para cumprir os requisitos para ser debatida no Parlamento.
Cinemateca, património e criação
A paralisia iminente da Cinemateca, agora revelada
mas há muito conhecida, é um problema comum às áreas artísticas como resultado
da aplicação de uma política apenas de cortes e orçamental que, na cultura, tem
sido e é destrutiva. Há outras formas de fazer política cultural, uma nova
fiscalidade específica, um novo mecenato, uma clara definição do que é o serviço
público e suas articulações programáticas com as entidades de criação sem fins
lucrativos, um programa vasto de reforma do sector público que não apenas a de
um falso controlo da despesa - sempre que na gestão destas coisas inventam a
pólvora concentrando administrações, gastam mais com medidas que só complicam
(despesismo) o que funcionava simples e coerente.
Não existe política cultural porque não existe ministério. Essa inexistência
é, em si, a política - o mais ridículo é não existir secretaria de Estado,
havendo um secretário de Estado junto ao primeiro-ministro (sem acesso ao
Conselho), sinal que se exibe como uma distinção operativa mas que não é mais
que um adorno. Assim como se criou o ministério, e chegou mesmo a existir porque
tinha um programa, assim se destruiu, transformando-se o que foi identificado
como áreas de responsabilidade, programa, em gestão diária e casuística do que
emerge como problemático: um dia o comendador Berardo, outro dia a Cinemateca,
num outro, o Museu dos Coches, todos os dias o património em estado de abandono,
anualmente as capitais europeias a descapitalizarem no dia seguinte ao do prazo
oficial de vida, e de modo mais invisível, a vida cultural e artística dos
interiores: as pequenas estruturas de criação, teatros e museus, festivais e
programações regulares não-comerciais que transformavam o pouco que recebiam no
muito que davam a conhecer e fruir, criando vida onde o Estado só desertifica,
sufocam.O projecto deste Governo começou pela subalternização das disciplinas culturais e artísticas enquanto componentes estruturantes da democracia - uma invenção saída das cinzas no pós-guerra - na medida em que a inexistência do ministério significa não só o desprezo pela cultura como qualificação da democracia, mas também pelo seu papel económico - contra as evidências estatísticas recentes que, aliás, são apenas enfeite de situações mundano-políticas. Considera-se que as actividades artísticas, numa leitura mecânica, são antimercado, isto é, despesa não-lucrativa, a famosa subsidiodependência - é o que chamam ao Teatro Aberto, à Cornucópia, à Paula Rego e à sua Casa das Histórias (Fundação), ao projecto violentado de Maria João Pires em Belgais (o problema já era este e por isso refiro-o), e a tudo o que não seja lucro imediato (de cortar a torto e a direito) ou especulação financeira potencial (o jogo viciante dos capitais de risco ou os negócios na esfera público-privada), à excepção, não comprovada por uma política consequente mas com estatuto no discurso "responsável", do património que, aliás, há que valorizar - que tombo sem a Torre do Tombo, e que seria se a outra torre, em Belém, fosse a discoteca ou o restaurante falados, assim à Berlusconi, esse farol quase lusitano?
A recolocação da colecção Berardo como problema mostra a predilecção pelo elefante branco (desde o princípio que deveria ter tido sede própria e autonomia, reconhecido o interesse do Estado no mérito público da colecção) e só vem comprovar que tudo o que se faz se desfaz e que o fazer do que levou anos a construir (estruturante da democracia), não tem, para este poder, nenhum valor: a sua democracia coincide com o desaparecimento do Estado democrático, a sua redução a funções repressivas e a facilitação do exercício de um poder absoluto pelos mercados sem controlo legal (a ideia do Estado-empresa é isso mesmo). Como disse um ministro há pouco, o Estado quer desamparar a loja. A loja é toda para o homem de novo tipo, o empreendedor, o empresário de visão, o investidor, o criador de produtos transaccionáveis... Para o Estado fica a actividade não-lucrativa, assim se controla a dívida, aliás o Estado não necessita de redistribuir a riqueza comum, os privados, é sabido, fazem isso melhor...
Ao longo dos anos, o Estado, mal governado pelos então já poderosos gestores (o dr. Cavaco é o exemplo acabado, o "país de doutores" foi-se com o papel selado), parece vocacionado para possuir uma infindável colecção de elefantes brancos (não estão em vias de extinção) e de cada vez que faz uma obra (CCB, Museu dos Coches agora, e tantos exemplos no interior do país) não acautela que à obra corresponda um programa - em Portugal, a decisão começa na obra, depois inventa-se o programa, o que faz com que grandes logísticas iniciem a sua "morte física" (morrem do que são) no dia seguinte às inaugurações, na medida em que não há modos úteis de as habitar, vida própria como programa. Os exemplos abundam e a dança dos edifícios não é muito distinta da que gerou auto-estradas (de programa fácil e falhado) em que viajamos solitariamente, ou da dos estádios de futebol... - imaginam a Igreja a multiplicar Santuários de Fátima?
O que resta da administração pública da cultura tem como função tirar o Estado das suas responsabilidades culturais democráticas, sejam patrimoniais, sejam nos domínios da criação - uma das invenções do pós-guerra foi a inclusão da cultura e dos patrimónios nas funções programáticas do Estado democrático como resposta à barbárie nazi. A memória de um país, seja a pedra, sejam imagens, pintura, escultura ou cinema, teatro e as criações artísticas contemporâneas, não é uma questão do Estado se o Governo não concebe a cultura como um programa político na medida das consignas constitucionais do acesso à criação e fruição culturais. Mas não o fazer é, desde logo, desqualificar a democracia, impedindo as maiorias (e minorias) de aceder a formas de liberdade pública que as linguagens das artes são enquanto conteúdos da liberdade artística e da própria liberdade, o que só poderá acontecer com o reconhecimento íntegro da cidadania artística. A desqualificação da democracia e o seu empobrecimento são o desígnio de uma política que destrói o fenómeno cultural, identificada tão-só com a redução da despesa pública. Para as "elites novo-ricas" e para os velhos ricos de sempre, trata-se de garantirem a operacionalidade do sistema que estrutura a desigualdade, agora mais funda, protegendo os seus interesses contra o interesse de todos e os direitos universais. O orçamento, um qualquer, é estruturante da economia, a economia será, ou não, estruturante da democracia. Democracia é uma palavra prostituída, tão usada é pelos seus inimigos. Ao que parece economia, por via de um culto que a celebra como um totem verbal, não. É o tabu que faz o totem pela repetição - "é a economia, estúpido", diz-se e a realidade submete-se-lhe, como se a economia fosse um projecto inevitavelmente antidemocrático: é o caso da austeridade, esse modo de concentração da riqueza nos especuladores e da redistribuição da miséria, no lugar da riqueza, através do desaparecimento das funções democráticas do Estado, pela maioria da população.
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