O primeiro hambúrguer de carne in vitro foi ontem cozinhado e comido. |
A produção mundial de aves cresceu 700% em 40 anos |
Será preciso aumentar em 70% a produção de carne para alimentar o mundo em 2050
Os humanos sempre consumiram carne, mas nunca na
quantidade e à velocidade com que o fazem hoje. Com a população mundial a
aumentar e o consumo de carne a crescer, a máquina de produção global foi-se
transformando para dar resposta a uma procura crescente. Isto significa que
grande parte da produção de cereais que utiliza as terras férteis do planeta
destina-se a alimentar animais para que os humanos possam comê-los. Quanto aos
animais, são, na sua grande maioria, criados em regime intensivo e alimentados
com rações. Este sistema permite (ainda) colocar nos talhos e supermercados
muita carne barata, sobretudo suína ou de aves. Mas este é, alertam os
especialistas em alimentação, um sistema profundamente ineficaz e insustentável
num futuro já relativamente próximo.
As previsões das Nações Unidas apontam para que em 2050 a população mundial
seja de 9000 milhões de pessoas. Prevê-se, a par disso, que o consumo de carne
continue a aumentar (a organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação/FAO calcula um aumento de 73% a nível mundial), sobretudo em países
em fase de crescimento económico como é o caso da China. Aliás, nas últimas décadas, a China ultrapassou os Estados Unidos e transformou-se já no maior consumidor de carne a nível mundial, embora se trate aqui sobretudo de carne de porco (o consumo de carne bovina também tem aumentado na China, mas a um ritmo mais lento).
Mas os dados mostram um mundo ainda muito desigual no que diz respeito ao consumo de carne per capita. Números da FAO indicam que, em 2009, na Índia, o consumo não chegava aos 5 quilos por pessoa (o que se explica em grande parte por razões culturais), enquanto na China era já de 58 quilos, nos Estados Unidos ultrapassava os 120 quilos e em Portugal rondava os 93,5. Juntamente com o Brasil e a Índia, a China é um dos países em que a produção de aves está a crescer mais rapidamente. Entre 1967 a 2007, essa produção aumentou, a nível mundial, mais de 700%, enquanto a de suínos cresceu 294% e a de bovinos 180%.
Tudo isto tem custos ambientais enormes - basta saber que para se ter um quilo de carne de vaca são necessários 15.400 litros de água. O Environmental Working Group, organização norte-americana que criou o Meat Eater"s Guide to Climate Change+Health, calculou as emissões de gases com efeito de estufa provocados pela produção de carne e concluiu que a carne de vaca produz 27 quilos de gases por cada quilo de carne consumida, um valor que é o dobro da de porco, quatro vezes mais do que a de galinha e 13 vezes superior às emissões produzidas por proteínas vegetais como o feijão ou as lentilhas. O queijo também tem um peso considerável: são 13,5 quilos de gases por cada quilo consumido. Isto faz com que a produção de gado seja responsável por 18% das emissões de gases com efeito de estufa, o que representa uma percentagem superior à que é provocada pelos transportes.
É neste cenário de um mundo cada vez mais carnívoro que surge o projecto de Mark Post para criar carne artificial - esta, afirma o investigador holandês, poderá reduzir em 60% a pegada ambiental causada pelo actual sistema de produção de carne.
A preocupação com esta pegada ambiental tem, aliás, vindo a aumentar. Um relatório elaborado há cerca de dois meses por deputados britânicos apela à população do Reino Unido para que consuma menos carne para ajudar a reduzir as crises de alimentos no mundo.
O enorme consumo de carne a que assistimos hoje no mundo desenvolvido contribui para o aumento do preço dos cereais (usados na alimentação dos animais), para a desflorestação e o esgotamento das terras férteis, além de agravar a epidemia da obesidade. Bastaria que as pessoas nos países mais ricos deixassem de comer carne um ou dois dias por semana para se registar um impacto positivo global, defende o relatório.
Não é a primeira vez que surgem apelos neste sentido - a campanha internacional Meatless Monday promove precisamente essa ideia. O hambúrguer desenvolvido por Mark Post e ontem apresentado seria, para os carnívoros mais irredutíveis, uma alternativa a essa opção.
A insustentável geopolítica dos bifes
Editorial/PúblicoHambúrguer de laboratório reabre o debate sobre os custos morais e ambientais do consumo de carne
Não será nesta geração nem provavelmente na próxima
que hambúrgueres produzidos em laboratório como os que ontem foram
experimentados em Londres entrarão nas rotinas alimentares. Mas não se pode
deixar de considerar o evento e a data como um momento crucial que prenuncia uma
nova página na evolução da ciência e a alteração de um princípio até agora
permanente da história da nutrição humana - a sua dependência directa ou
indirecta do crescimento das plantas e de animais. Porque o que está em causa
com esta descoberta não é um devaneio de cientistas: o que está em causa é uma
resposta possível à impossibilidade de se manter o actual ritmo de crescimento
de produção de carne bovina. Há pelo menos 30 anos que se sabe que a produção de
bifes é insustentável a prazo. Essa constatação reforçou-se com a procura de
carne nos países emergentes, com destaque para a China. Para satisfazer as
necessidades da procura de consumidores dos países ricos, a criação de gado
ocupa hoje quase 70% das terras aráveis do planeta. Quase três quartos da
produção de cereais e oleaginosas são destinados à engorda de animais. Nesta
cadeia, nove décimos das proteínas vegetais são desperdiçados. Como a procura
nos países mais afluentes cresce, parte substancial das terras aráveis dos
países pobres é dedicada a pastagens. Enquanto no hemisfério norte o consumo de
carne fomenta epidemias de obesidade e multiplica doenças cardiovasculares, nos
países do Sul destrói-se a floresta para criar pastagens. O futuro antecipado
ontem em Londres pode não ser o mais apetitoso. Pode até ser uma impossibilidade
real nas próximas décadas. Tem, no entanto, o mérito de nos fazer reflectir
sobre um padrão de consumo alimentar que torna os habitantes dos países ricos em
sugadores dos recursos básicos dos países pobres. Travar essa tendência não é
apenas um imperativo ambiental: é também uma urgência moral.
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