David Miranda, à chegada ao Brasil, e Glenn Greenwald
|
Parlamento britânico quer explicações sobre detenção do companheiro do jornalista que escreveu sobre programa de vigilância secreto dos EUA
Governo de Londres sob pressão para explicar porque David Miranda foi sujeito
à lei anti-terrorismo
O presidente do comité de Assuntos Internos do parlamento britânico, Keith
Vaz, anunciou a abertura de um inquérito parlamentar para apurar as razões que
levaram à detenção de David Miranda, um cidadão brasileiro que vive em união de
facto com jornalista norte-americano Glenn Greenwald, que assinou diversas
notícias sobre o programa secreto de vigilância electrónica conduzido pela
Agência de Segurança dos Estados Unidos no diário The Guardian.
O parlamentar quer saber os motivos que levaram as
autoridades a invocar a lei de anti-terrorismo, que autoriza a polícia a
efectuar a detenção sem mandato judicial de indivíduos suspeitos de representar
uma ameaça à segurança nacional. Pedidos idênticos foram entretanto apresentados
pela ministra do Interior do Governo sombra, Yvette Cooper, e pelo Revisor
Independente da Legislação Anti-Terrorismo, David Anderson.
“A mais pequena sugestão de abuso dos poderes extraordinários no âmbito do
terrorismo deve ser investigada e clarificada imediatamente”, sublinhou a
dirigente trabalhista.Em concreto, Vaz intimou a Scotland Yard esclarecer oficialmente quem tomou a decisão de deter David Miranda no aeroporto de Heathrow, quais os motivos que justificaram a sua retenção e interrogatório durante nove horas e ainda que autoridades nacionais e internacionais estiveram envolvidas nesse processo.
Numa carta enviada ao comissário da Polícia Metropolitana de Londres, Bernard Hogan-Howe, o deputado pede para ser informado se David Miranda teve os seus pertences confiscados e se lhe foi concedido o direito a representação legal.
Além de Keith Vaz, a polícia londrina e o Governo britânico estão a ser pressionados pelo Governo do Brasil, pelo sindicato dos jornalistas e por organizações como a Amnistia Internacional a esclarecer cabalmente o episódio que envolve o companheiro de Greenwald. O jornalista já disse que a “acção intimidatória” contra o seu parceiro não o coibirá de publicar mais artigos sobre os programas de segurança nacional dos Estados Unidos e Grã-Bretanha.
O Governo brasileiro classificou como “injustificável” a detenção de David Miranda, que foi chamado ao Senado em Brasília para relatar o “incidente” em que se viu envolvido quando cumpria escala em trânsito de Berlim para o Rio de Janeiro. O brasileiro já anunciou a sua intenção de “procurar as autoridades americanas” para pedir um esclarecimento sobre a sua eventual colaboração com os serviços do Reino Unido.
Numa nota oficial divulgada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Brasil manifestou a sua “grave preocupação” com a actuação das autoridades britânicas e especialmente com a invocação de legislação anti-terrorismo como razão para a detenção. “Trata-se de uma medida injustificável por envolver um indivíduo contra quem não pesam quaisquer acusações que possam legitimar o uso da referida legislação”, nota o Governo brasileiro.
A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, informou pelo Twitter que o Itamaraty entregou “um protesto imediato diante da retenção arbitrária de um brasileiro em Londres”. David Miranda, de 28 anos, foi retido e interrogado pela polícia britânica durante nove horas, e viu confiscado todo o material electrónico que carregava – até ser libertado sem qualquer acusação.
Um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico escusou-se a prestar esclarecimentos sobre o caso alegando tratar-se de “matéria policial”. No entanto, informou que o executivo tenciona rever as provisões da Lei Anti-Terrorismo para “atender a algumas preocupações” relativas à sua aplicação.
Para a Amnistia Internacional, “a detenção de David Miranda é ilegal e indesculpável. Ele foi detido ao abrigo de uma lei que viola qualquer princípio de equidade e a sua prisão mostra como se pode abusar dessa legislação por razões mesquinhas e vingativas”, considerou a directora de Legislação e Política daquela organização, Widney Brown.
“É altamente improvável que David Miranda, em trânsito num aeroporto do Reino Unido, tenha sido detido de forma aleatória, dado o papel que o seu companheiro teve na revelação da verdade sobre a natureza ilícita do programa de vigilância da Agência Nacional de Segurança”, referiu a Amnistia Internacional.
Mensagem "a todos os jornalistas"
“Ao atingir Miranda e Greenwald, o Governo [britânico] enviou uma mensagem a todos os jornalistas, de que se eles insistirem em mostrar-se independentes ou escrever de forma crítica sobre o governo, também poderão ser atingidos”, denunciou. Para a organização, “os estados não podem passar legislação anti-terrorismo sob a desculpa de que é necessária para a protecção do país e depois recorrer à lei para retaliar contra alguém que simplesmente exerceu os seus direitos”.
Vários jornalistas no Brasil, Reino Unido e Estados Unidos denunciaram a detenção de David Miranda como “um abuso de poder”, um “acto intimidatório” e “um escândalo”.
Escrevendo na revista The Atlantic, Conor Friedersdorf disse que o recurso a uma provisão da lei anti-terrorismo para a detenção de “um homem que ninguém pensa que é um terrorista” mostra que os governos não se coíbem de usar os “poderes extraordinários” que lhes foram concedidos em nome da guerra ao terrorismo para “agir contra quem entenderem, mesmo quando a possibilidade de estarem associados à Al-Qaeda ou a alguma das suas afiliadas seja zero”. E mostra ainda que “o jornalismo de investigação na área da segurança nacional foi equiparado a terrorismo”.
Citado pelo jornal O Globo, o jornalista Alberto Dines do Observatório da Imprensa brasileiro considerou todo o episódio com David Miranda como “uma estupidez e uma paranóia, que nem George Orwell poderia prever”. “Glenn Greenwald não poderia ser alvo de retaliação porque cumpriu o seu papel de jornalista. E o que é que o brasileiro tem a ver com a história?”, questionou.
David Miranda: 'They said I would be put in jail if I didn't cooperate'
Partner of Guardian journalist Glenn Greenwald gives his
first interview on nine-hour interrogation at Heathrow airport
Jonathan Watts in Rio de Janeiro
The Guardian, Monday 19 August 2013 / http://www.theguardian.com/world/2013/aug/19/david-miranda-interview-detention-heathrow
David Miranda, the partner of the Guardian journalist who
broke stories of mass surveillance by the US National Security Agency, has
accused Britain of a "total abuse of power" for interrogating him for
almost nine hours at Heathrow under the Terrorism Act.
In his first interview since returning to his home in Rio de
Janeiro early on Monday, Miranda said the authorities in the UK had pandered to
the US in trying to intimidate him and force him to reveal the passwords to his
computer and mobile phone.
"They were threatening me all the time and saying I
would be put in jail if I didn't co-operate," said Miranda. "They
treated me like I was a criminal or someone about to attack the UK … It was
exhausting and frustrating, but I knew I wasn't doing anything wrong."
Miranda – a Brazilian national who lives with Greenwald in
Rio – was held for the maximum time permitted under schedule seven of the
Terrorism Act 2000 which allows officers to stop, search and question
individuals at airports, ports and border areas.
During that time, he said, he was not allowed to call his
partner, who is a qualified lawyer in the US, nor was he given an interpreter,
despite being promised one because he felt uncomfortable speaking in a second
language.
"I was in a different country with different laws, in a
room with seven agents coming and going who kept asking me questions. I thought
anything could happen. I thought I might be detained for a very long
time," he said.
He was on his way back from Berlin, where he was ferrying
materials between Greenwald and Laura Poitras, the US film-maker who has also
been working on stories related to the NSA files released by US whistle-blower
Edward Snowden.
Miranda was seized almost as soon as his British Airways
flight touched down on Sunday morning. "There was an announcement on the
plane that everyone had to show their passports. The minute I stepped out of
the plane they took me away to a small room with four chairs and a machine for
taking fingerprints," he recalled.
His carry-on bags were searched and, he says, police
confiscated a computer, two pen drives, an external hard drive and several
other electronic items, including a games console, as well two newly bought
watches and phones that were packaged and boxed in his stowed luggage.
"They got me to tell them the passwords for my computer
and mobile phone," Miranda said. "They said I was obliged to answer
all their questions and used the words 'prison' and 'station' all the
time."
"It is clear why those took me. It's because I'm
Glenn's partner. Because I went to Berlin. Because Laura lives there. So they
think I have a big connection," he said. "But I don't have a role. I
don't look at documents. I don't even know if it was documents that I was
carrying. It could have been for the movie that Laura is working on."
Miranda was told he was being detained under the Terrorism
Act. He was never accused of being a terrorist or being associated with
terrorists, but he was told that if – after nine hours – his interrogators did
not think he was being co-operative, then he could be taken to a police station
and put in jail.
"This law shouldn't be given to police officers. They
use it to get access to documents or people that they cannot get the legal way
through courts or judges," said Miranda. "It's a total abuse of
power."
He was offered a lawyer and a cup of water, but he refused
both because he did not trust the authorities. The questions, he said, were
relentless – about Greenwald, Snowden, Poitras and a host of other apparently
random subjects.
"They even asked me about the protests in Brazil, why
people were unhappy and who I knew in the government," said Miranda.
He got his first drink – from a Coke machine in the corridor
– after eight hours and was eventually released almost an hour later. Police
records show he had been held from 08.05 to 17.00.
Unable immediately to find a flight for him back to Rio,
Miranda says the Heathrow police then escorted him to passport control so he
could enter Britain and wait there.
"It was ridiculous," he said. "First they
treat me like a terrorist suspect. Then they are ready to release me in the
UK."
Although he believes the British authorities were doing the
bidding of the US, Miranda says his view of the UK has completely changed as a
result of the experience.
"I have friends in the UK and liked to visit, but you
can't go to a country where they have laws that allow the abuse of liberty for
nothing," he said.
The White House on Monday insisted that it was not involved
in the decision to detain Miranda, though a spokesman said US officials had
been given a "heads up" by British officials beforehand.
The Brazilian government has expressed grave concern about
the "unjustified" detention.
Speaking by phone from the couple's home in the Tijuca
forest, Miranda said it felt "awesome" to be back. "It's really
good to be here. I felt the weight lift off my shoulders as soon I got back.
Brazil feels very secure, very safe," he said. "I knew my country
would protect me, and I believe in my husband and knew that he would do
anything to help me."
Jornalista ansioso por escrever sobre morte de Julian Assange
Por
20/08/2013 in Público
Não é a primeira vez que uma mensagem no Twitter
causa polémica e não será a última. Mas o jornalista Michael Grunwald, da
revista Time, levou a discussão para outro nível, com uma frase que foi
entendida como um apelo à morte do fundador da WikiLeaks, Julian Assange.
"Mal posso esperar para escrever sobre a defesa de um ataque com um
drone que acabe com Julian Assange", escreveu Grunwald.
As críticas ao tweet do jornalista multiplicaram-se. Grunwald acabou
por apagar a mensagem e pedir desculpas, mas o argumento que utilizou só serviu
para inflamar ainda mais os ânimos. Em resposta a um tweet de outro
utilizador, Michael Grunwald admitiu que só apagou a mensagem porque o seu teor
dava aos defensores de Assange uma oportunidade para exacerbarem um alegado
complexo de perseguição.
A WikiLeaks pediu a sua demissão: "Escrevemos à revista Time a pedir a
demissão de Michael Grunwald. A Time precisa de mostrar que não é
aceitável que jornalistas apelem ao assassinato de outros jornalistas, ou de
quem quer que seja."
A mensagem que o jornalista publicou no Twitter suscita questões éticas, mas
não merece uma especial atenção do ponto de vista jurídico, de acordo com
Francisco Teixeira da Mota, advogado do PÚBLICO. "É uma opinião e ele tem
direito a ela, apesar de ser uma opinião lamentável. Como jornalista, é evidente
que põe em causa o trabalho dele e a imparcialidade, nomeadamente na cobertura
deste tema", considera.
Mas a ideia de uma passagem pelos tribunais "não tem consistência". "A
criminalização da palavra enquanto apelo à prática de crime tem de ter um mínimo
de viabilidade. O facto de se dizer que ele devia ser morto por drones
não vai levar os Estados Unidos a matá-lo. O que ele disse não tem qualquer
consequência - não faz aumentar o risco de morte com drones."
Outro problema - sempre do ponto de vista do comportamento de Grunwald
enquanto jornalista - é o apelo "à morte de um indivíduo que não é classificado
como um terrorista e se que limitou a usufruir da liberdade de expressão",
defende Francisco Teixeira da Mota.
"Não é tanto pelo incitamento, mas pela equiparação entre Assange e um chefe
terrorista, sendo certo que Assange não só não é um chefe terrorista, como é um
indivíduo que trabalha a divulgar informação - é quase como um colega -, e os
Estados Unidos nunca deduziram acusação contra ele."
Também ouvido pelo PÚBLICO, o presidente do Conselho Deontológico do
Sindicato dos Jornalistas, Orlando César, alinha pelo mesmo discurso. E não faz
qualquer separação entre o que se diz nas redes sociais e o que se escreve nos
jornais.
"Em termos de redes sociais, naturalmente que é um meio pessoal, mas os
jornalistas estão sempre associados ao facto de serem jornalistas, mesmo quando
não estão a trabalhar. Têm de ter uma responsabilidade diferente da de outras
pessoas", afirma.
Seja nos Estados Unidos ou em Portugal, "as consequências são sempre as
consequências morais", explica Orlando César. Para além de uma tomada de posição
sobre o caso, outras consequências só seriam possíveis se o jornalista em causa
fosse sindicalizado. "Teríamos sempre de ouvir a pessoa em causa e depois é que
poderíamos ter uma posição mais sustentada. Se foi uma atitude inconsciente,
momentânea, ou se foi uma posição reiterada de extremismo e de apelo à
violência. Se não fosse este o caso, provavelmente não poderíamos propor a sua
expulsão do Sindicato dos Jornalistas", conclui o presidente do Conselho
Deontológico. com Hugo Torres
Não é a primeira vez que uma mensagem no Twitter
causa polémica e não será a última. Mas o jornalista Michael Grunwald, da
revista Time, levou a discussão para outro nível, com uma frase que foi
entendida como um apelo à morte do fundador da WikiLeaks, Julian Assange.
"Mal posso esperar para escrever sobre a defesa de um ataque com um
drone que acabe com Julian Assange", escreveu Grunwald. As críticas ao tweet do jornalista multiplicaram-se. Grunwald acabou por apagar a mensagem e pedir desculpas, mas o argumento que utilizou só serviu para inflamar ainda mais os ânimos. Em resposta a um tweet de outro utilizador, Michael Grunwald admitiu que só apagou a mensagem porque o seu teor dava aos defensores de Assange uma oportunidade para exacerbarem um alegado complexo de perseguição.
A WikiLeaks pediu a sua demissão: "Escrevemos à revista Time a pedir a demissão de Michael Grunwald. A Time precisa de mostrar que não é aceitável que jornalistas apelem ao assassinato de outros jornalistas, ou de quem quer que seja."
A mensagem que o jornalista publicou no Twitter suscita questões éticas, mas não merece uma especial atenção do ponto de vista jurídico, de acordo com Francisco Teixeira da Mota, advogado do PÚBLICO. "É uma opinião e ele tem direito a ela, apesar de ser uma opinião lamentável. Como jornalista, é evidente que põe em causa o trabalho dele e a imparcialidade, nomeadamente na cobertura deste tema", considera.
Mas a ideia de uma passagem pelos tribunais "não tem consistência". "A criminalização da palavra enquanto apelo à prática de crime tem de ter um mínimo de viabilidade. O facto de se dizer que ele devia ser morto por drones não vai levar os Estados Unidos a matá-lo. O que ele disse não tem qualquer consequência - não faz aumentar o risco de morte com drones."
Outro problema - sempre do ponto de vista do comportamento de Grunwald enquanto jornalista - é o apelo "à morte de um indivíduo que não é classificado como um terrorista e se que limitou a usufruir da liberdade de expressão", defende Francisco Teixeira da Mota.
"Não é tanto pelo incitamento, mas pela equiparação entre Assange e um chefe terrorista, sendo certo que Assange não só não é um chefe terrorista, como é um indivíduo que trabalha a divulgar informação - é quase como um colega -, e os Estados Unidos nunca deduziram acusação contra ele."
Também ouvido pelo PÚBLICO, o presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, Orlando César, alinha pelo mesmo discurso. E não faz qualquer separação entre o que se diz nas redes sociais e o que se escreve nos jornais.
"Em termos de redes sociais, naturalmente que é um meio pessoal, mas os jornalistas estão sempre associados ao facto de serem jornalistas, mesmo quando não estão a trabalhar. Têm de ter uma responsabilidade diferente da de outras pessoas", afirma.
Seja nos Estados Unidos ou em Portugal, "as consequências são sempre as consequências morais", explica Orlando César. Para além de uma tomada de posição sobre o caso, outras consequências só seriam possíveis se o jornalista em causa fosse sindicalizado. "Teríamos sempre de ouvir a pessoa em causa e depois é que poderíamos ter uma posição mais sustentada. Se foi uma atitude inconsciente, momentânea, ou se foi uma posição reiterada de extremismo e de apelo à violência. Se não fosse este o caso, provavelmente não poderíamos propor a sua expulsão do Sindicato dos Jornalistas", conclui o presidente do Conselho Deontológico. com Hugo Torres
O legado Snowden às democracias
Historicamente, as questões de espionagem não eram vistas pela sociedade como afectando directamente a vida das pessoas. Com o caso de Edward Snowden essa percepção alterou-se. Visto em comparação com Assange há uma grande diferença na percepção da opinião pública: os temas já não são grandes potências diplomáticas (e a guerra) mas sim a vida das pessoas no seu dia-a-dia
Nas democracias, a espionagem era vista como algo que ocorria no plano dos
Estados, uns vigiando as instituições dos outros. Pelo contrário nas ditaduras –
de esquerda ou de direita – é que a questão da espionagem generalizada da
população era colocada.
Com a introdução das tecnologias da informação e da adopção generalizada
que fizemos no nosso dia-a-dia, todos nós somos potencialmente alvos. A ideia de
que são só os poderosos que se espiam uns aos outros cai assim por terra.
Recentemente o MNE britânico teria usado o argumento de que para quem não
tem nada a temer não há problema em ser vigiado. Este é um argumento típico de
estados totalitários que se auto arrogam o direito de não prestar contas a
ninguém e exercer vigilância sobre tudo e todos. Mas a questão não é apenas o
ser-se vigiado, é quem define o que deve ser vigiado e o que constitui esse algo
a temer.
Essa é que é a questão fundamental das nossas democracias: tem de haver
controlo não apenas sobre a vigilância, mas também sobre quem define o que é que
deve ser vigiado ou não, ou seja, quem define o que constitui um perigo para
todos.
Enquanto houver Estados e empresas que têm necessidade de exercer o poder e
fazer negócios vai sempre haver vigilância e escuta, porque as tecnologias estão
lá. O que pode (e deve) ser controlável é a associação entre a vigilância, o
exercício do poder e a liberdade – e quem vigia quem está a vigiar.
A Internet é um instrumento tanto de liberdade como de controlo. A única
coisa que nos garante que ele não é demasiadamente de controlo e muito pouco de
liberdade é a capacidade que nós temos de ter instituições que controlam as
outras instituições que podem exercer controlo sobre a sociedade. Se não
conseguirmos fazer isso, é muito fácil em vez de criar sociedades autónomas
estarmos a criar sociedades mais totalitárias.
Tudo seria, porventura, muito
diferente sem a adopção generalizada das redes sociais, pois através do seu uso
as pessoas ganharam a percepção de que o fazem fica registado sempre em algum
sítio e por alguém. Daí, a dupla dimensão destes eventos Snowden/Greenwald/Miranda
— se por um lado voltam a trazer ao nosso dia-a-dia a percepção de que os jogos
de poder continuam assentes na espionagem, por outro lado, para os cidadãos é
muito mais fácil perceber o que está em jogo: a sua liberdade de dizer o que
pensam sem o Estado os vigiar.
Os Estados e as grandes empresas das democracias vêem assim como muito mais
difícil fazer valer lógicas securitárias, esse é o legado do alerta de Snowden:
o controlo e a vigilância excessivos não ocorrem apenas nos estados
totalitários, mas também nas democracias e necessitam de ser corrigidos.
Gustavo Cardoso é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do
Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.
O nada razoável"caso Miranda"
Editorial / Público
São razoáveis os pedidos de explicação sobre uma medida muito pouco razoável
Alguns pensadores contemporâneos identificaram há
quase uma década as novas razões que levam os cidadãos, hoje, a terem pouca
estima pelos políticos. Certeiro, o espanhol Daniel Innerarity disse que a
clássica queixa do abuso do poder foi substituída por três novas críticas: "O
político que não pode, que não se explica e que repete um discurso convencional
com pobre encenação."
Não é preciso pensar muito para imaginar uma lista de exemplos desta
incapacidade de fazer, de explicar e de ser criativo em política. Ontem mesmo
caiu sobre o Governo de David Cameron mais uma avalancha de pedidos de
explicação. Pedidos razoáveis sobre uma medida muito pouco razoável. O que diz o
Governo britânico sobre por que é que deteve, ao abrigo do combate ao
terrorismo, para um interrogatório de nove horas, um cidadão brasileiro sem
antecedentes criminais nem ligações a terroristas, que viajava entre dois países
amigos, a Alemanha e o Brasil? Nada.O polémico Schedule 7 da Lei do Terrorismo permite à polícia deter qualquer pessoa. Não tem que existir uma suspeita mínima - muito menos razoável - de que é terrorista. Basta estar num porto ou num aeroporto. É por isso razoável concluir que David Miranda foi preso apenas por ser o namorado do jornalista que, no Guardian, revelou ao mundo Edward Snowden e os seus segredos. Não temos respostas para nenhuma pergunta simples - quem decidiu a prisão; à procura de quê; algum político aprovou; algum país participou ou pediu; imaginou a polícia que, por serem um casal gay, Miranda e Greenwald evitariam tornar o caso público, etc. As explicações dos políticos - porque este não é apenas um caso de polícia - são de facto urgentes e necessárias. No fim talvez percebamos um pouco melhor até onde as democracias são capazes de ir em nome da obsessão securitária
Sem comentários:
Enviar um comentário