O fabuloso circo de horrores de umas eleições autárquicas
Duplicou o número de candidaturas independentes, mas a maioria pouco tem a ver com um ilusório despertar da sociedade civil
As eleições autárquicas deste ano podiam ser muito
interessantes pelas melhores razões. A lei da renovação de mandatos deveria
impedir umas largas dezenas de "dinossauros" de concorrerem e isso parecia
constituir uma excelente oportunidade para o aparecimento de novos líderes
locais, para um saudável processo de renovação e refrescamento. Infelizmente
estão a ser interessantes pelas piores razões, e não apenas pela balbúrdia
instalada em torno da interpretação da lei.
O que está a acontecer é um triste retrato do nosso sistema político e do
nosso sistema judicial. É inacreditável como a Assembleia da República não só
fez uma lei equívoca como descartou a possibilidade de a clarificar. Há nisso
responsabilidade de todos os partidos e uma responsabilidade especial da
presidente do Parlamento, Assunção Esteves, que não actuou como devia. É triste
ver como tantos presidentes de câmara e tantos presidentes de juntas de
freguesia tentam continuar as suas carreiras noutros municípios, muitas vezes
caindo neles literalmente de pára-quedas. Mas também é triste ver como um
partido que não tem qualquer tradição autárquica, o Bloco de Esquerda, se
pendurou na confusão para promover uma luta de guerrilha nos tribunais que nada
tem a ver com o que tem a propor - ou sobretudo com o que não tem a propor -
para os diferentes municípios. A disparidade das sentenças judiciais, se confirma a falta de clareza do texto legal, também é um bom indicador, por via da forma como algumas das sentenças foram sustentadas, de um certo activismo judicial. Esse activismo judicial, ainda mais evidente noutras sentenças recentes, é, a meu ver, um dos sinais de doença da nossa democracia, um tema a que voltarei em breve.
Apenas uma nota sobre o conteúdo da lei de renovação de mandatos. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que o princípio republicano de que os eleitos não devem eternizar-se nos seus postos - um princípio que vem da República romana - é um bom e salutar princípio. Estou com Paulo Rangel quando ele recorda "a célebre lei de bronze das oligarquias": "Aqueles que exercem um cargo executivo "directamente" eleito ao longo de 12 anos têm obviamente uma posição de controlo e de domínio que os coloca em vantagem sobre todos os demais". Mas já não estou quando ele prolonga o princípio da inelegibilidade aos concelhos onde esses cargos executivos não foram exercidos e onde, por isso mesmo, a decorrente posição de controlo e domínio não existe. Não me parece que um autarca que muda de concelho - independentemente de ser reprovável que o faça - goze de uma vantagem desproporcionada, ou sequer superior a, por exemplo, uma figura mediática que se candidate no mesmo concelho. Ora não passa pela cabeça de ninguém considerar que a vantagem que uma figura mediática deva implicar a sua não elegibilidade. A forma claríssima como Rangel formula o argumento republicano anula toda a sua posterior e muito rebuscada argumentação sobre a "transterritorialidade".
Mesmo estando o foco das eleições autárquicas - sobretudo o foco mediático - obsessivamente centrado nas questões judiciais, a verdade é que estas eleições podem ser muito interessantes noutras frentes. Vou referir três: as candidaturas independentes; a luta entre o PS e o PSD; e o peso das freguesias.
Aparentemente houve uma inflação de candidaturas independentes, pois o seu número duplicou. Trata-se porém de uma ilusão, pois não existem assim tantas candidaturas saídas da sociedade civil. Na maior parte dos casos estamos perante candidaturas que ou emanam dos órgãos autárquicos - como a lista de Isaltino-sem-Isaltino em Oeiras, a lista de Valentim-sem-Valentim em Gondomar ou a lista do número dois de Fernando Seara, Marco Almeida, em Sintra -, ou permitem a candidatura de figuras que poderiam ter sido candidatos pelos partidos mas acabaram por ser preteridas - como Guilherme Aguiar em Gaia ou Rui Moreira no Porto. Não tenho dúvidas que algumas destas candidaturas têm uma transversalidade e uma genuinidade que ultrapassa a fronteira dos partidos, mas duvido que estejam realmente a revelar um pulsar da sociedade exterior a esses mesmos partidos. Isto é, duvido que se esteja a alargar o espaço de intervenção política, atraindo ao serviço público cidadãos desencantados com os actuais limites do sistema partidário. Não está a acontecer, contra a expectativa de muitos, nenhuma "revolta dos independentes". Diz-se muito mal dos partidos, sobretudo dos partidos do "bloco central", mas há poucos sinais de que a sua esmagadora hegemonia venha a ser, para já, posta em causa. Por movimentos de cidadãos ou pela emergência de novas forças partidárias.
Se o impacto real das listas de independentes só poderá ser verificado na noite eleitoral, é bem possível que em alguns concelhos imponham humilhações aos grandes partidos, ou pelo menos a um deles. Mesmo assim o mais provável é que PS e PSD continuem a ficar com a parte de leão das presidências de câmara. Isto apesar das rocambolescas opções que esses dois partidos fizeram em muitos municípios, incluindo nalguns dos mais importantes do país. As guerras e as lógicas dos aparelhos parece terem-se sobreposto, demasiadas vezes, a critérios de boa gestão local ou mesmo de boa aposta eleitoral.
O mais surpreendente é o que pode vir a passar-se com o PS. Em condições normais, quer por via dos efeitos da política de austeridade, quer por este ano acabar o ciclo de três mandatos iniciado nas eleições de 2001 - as que levaram à inopinada demissão de António Guterres -, os socialistas deviam estar a preparar-se para um passeio triunfal. Isso pode não vir a acontecer. O PS pode perder municípios emblemáticos (Braga, Guarda, Matosinhos) e não conseguir ganhar onde tinha todas as condições para isso (Sintra, Gaia, Porto). Ao mesmo tempo que Seguro tenta baixar as expectativas, Passos Coelho sobe-as: no Pontal disse querer ganhar as autárquicas mantendo o maior número de presidências de câmara, quando se esperaria que estivesse já a tentar minimizar a derrota. O que se está a passar? Como foi possível, por exemplo, que o PS tenha escolhido para o Porto um candidato que se arrisca a ficar em terceiro lugar? Foi só por ser o presidente da concelhia do partido?
Há quem defenda que Seguro fez bem ao dar poder às bases do partido e ao não impor as suas escolhas e os seus candidatos. Eu sou um pouco mais cínico, pois recordo que a maior parte das escolhas foi feita numa altura em que Seguro precisava de ter o aparelho do seu lado para garantir que António Costa não o destronava no Congresso. Por outras palavras: Seguro terá preferido segurar o partido e o seu lugar de secretário-geral, mesmo quando isso representava sacrificar as hipóteses de vitória em muitas autarquias.
As deambulações que Agosto sempre propicia têm a vantagem de nos revelarem a galeria de horrores que são, de um modo geral, os cartazes eleitorais. Cartazes que este ano parecem ter trazido uma novidade: a proliferação da propaganda relativa aos candidatos às juntas de freguesia. Não sei se foi por efeito da fusão de muitas destas unidades territoriais, se por os candidatos às câmaras sentirem que precisam de surgir ao lado de figuras mais conhecidas e mais próximas das populações. A verdade é que a quantidade de caras que nos surgem penduradas em postes e árvores por todo esse país desafia a imaginação. Duvido é que estimule muito a participação eleitoral: afinal de contas, as eleições para os representantes políticos que estão mais perto dos eleitores sempre registaram em Portugal taxas de abstenção mais elevadas do que as eleições nacionais. Coisas da nossa democracia.
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