domingo, 4 de agosto de 2013

Berlusconi: cai o pano.



Berlusconi: cai o pano



1. A extraordinária saga política de Silvio Berlusconi terminou na quinta-feira com a sua condenação definitiva pelo Supremo Tribunal italiano. Falta, no entanto, conhecer o epílogo: o modo como sairá do palco. Pode aceitar a sentença, sob protesto mas como "generoso sacrifício", ou lançar-se numa aventura que leve ao caos institucional, o que não lhe trará grande benefício. Deixa a direita sem líder, mas com a consolação de ter também retirado à esquerda o tema unificador que disfarça a sua pobreza: o antiberlusconismo.
Berlusconi "morreu" duas ou três vezes, mas regressou sempre. O berlusconismo esvaziou-se desde 2006 ou 2008, mas o ex-Cavaliere sobreviveu-lhe, pois a direita não tinha alternativa à sua liderança. A derradeira obra-prima foi o modo como transformou a derrota eleitoral de Fevereiro - menos 6 milhões de votos do que nas eleições de 2008 - numa vitória pós-eleitoral, ficando como árbitro da estabilidade governamental. Deve-o à generosidade do Partido Democrático (centro-esquerda), que acumulou os erros.
Desta vez, é diferente. A sentença fecha-lhe todos os caminhos. Fica inibido de se candidatar durante seis anos. A decisão final sobre a interdição de cargos políticos chegará em Outubro. Mas a condenação desde já produz efeito. Perdeu, inclusive, o título de Cavaliere.

2. Há muitas teses sobre o que foi o berlusconismo. O termo remonta ao fim dos anos 1980, quando Berlusconi representava o papel de empresário dinâmico e moderno - e sem escrúpulos. Tornou-se, a partir de 1994, um "conceito" político, consagrado nas enciclopédias.
De início, todos tendemos a colocar a comunicação no cerne da sua natureza - a "telecracia". A dúvida começou a surgir nas eleições de 1996, em que, apesar da máquina mediática, Berlusconi foi derrotado. Para voltar em glória, em 2001, como líder indiscutido do centro-direita.
O politólogo Ilvo Diamanti faz hoje outra análise. "Berlusconi interpretou o mito do empreendedor do Norte que se fez por si mesmo. A promessa do sucesso tornava-se possível para todos. Narrada pelos media e pela "sua" televisão. Era o sonho italiano nos anos de crescimento e bem-estar."
O tempo mudou. "Ele interpretou e personificou uma fase "próspera" da sociedade italiana, a quem impôs, com o amplificador dos media, a própria biografia e a própria imagem como referência e modelo. (...) Essa época está acabada. A crise cortou os laços entre a imagem e a realidade. A imagem deixou de ser credível. O mundo rutilante e amoral expresso por Berlusconi tornou-se demasiado longínquo do homem comum."
Na realidade, os anos áureos da sua governação foram anos de estagnação económica. Em nome da mudança praticou o mais rigoroso imobilismo. A gestão do seu derradeiro Governo (2006-2008) foi uma catástrofe que deixou a Itália "à beira do abismo". Perante a crise, Berlusconificou sem discurso, o que o perdeu.
O historiador Giovanni Orsina (autor de Il Berlusconismo nella Storia d"Italia, 2013) chama a atenção para a combinação que Berlusconi faz entre populismo e liberalismo. Mas foca outro ângulo: "O berlusconismo é um fenómeno muito complexo. Durou muito e mudou no tempo. Usou vários registos ideológicos e de comunicação. Em particular era evidente o carácter populista da liderança berlusconiana: a "santificação" do povo italiano." A frase-chave da sua mensagem em 1994 era: "A Itália é o país que eu amo", tradução de "amo a Itália como ela é". Acrescenta: "Desde o Risorgimento até hoje, nenhum líder político de primeiro plano, capaz de vencer eleições e ascender à chefia do Governo, jamais ousara dizer de maneira tão aberta, explícita, descarada e impudente que os italianos estão belissimamente tal como são."
Berlusconi enviou sempre mensagens de optimismo. Reconciliou os italianos com os seus vícios. Quem melhor do que ele compreende a cultura de clientelismo e impunidade que marca uma boa parte da Itália? Pergunta o economista Luigi Zingales: "Porque prevalece em Itália a cultura da fraude sobre a da honestidade? Não existe confiança sem cultura da legalidade. E esta falta, sobretudo, porque em Itália o delito compensa."
É preciso perceber que todo o comportamento político de Berlusconi foi estudado e bem estudado, desde as palhaçadas à técnica do repetitivo "discurso de disco rachado". O seu trunfo consistiu em impor aos adversários a sua agenda. Eles combatiam-na, mas jogando no seu terreno ficavam em desvantagem.
Orsina faz-lhe uma homenagem. "As suas qualidades e defeitos são as duas faces da mesma moeda. A qualidade: Berlusconi é um fora de série absoluto, uma personagem extraordinária e irrepetível. O defeito: exactamente porque é um fora de série, os outros só têm espaço na sua dependência. No meu livro sustentei que, após 2006, houve um Berlusconi sem berlusconismo. O que me parece impossível é que possa haver um berlusconismo sem Berlusconi."

3. A imprensa ango-saxónica, com destaque para o semanário The Economist, merece uma referência pela sua incansável denúncia da erosão do Estado democrático italiano: a inconcebível acumulação do poder político com um império mediático e o desígnio de domesticar a justiça. "Berlusconi é o mais perigoso fenómeno político na Europa. Representa a mais séria ameaça para democracia na Europa Ocidental desde 1945", escreveu no Guardian, com manifesto exagero, o sinólogo Jacques Martin.
O Cavaliere gostava destas guerras. Passou a designar a revista britânica por "The Ecommunist".

4. Entrou na política para neutralizar a justiça, sai da política pela mão da justiça. Na Itália, as relações entre política e justiça estão particularmente inquinadas. Foi a magistratura que decapitou a velha classe política em 1992-93, na campanha das "Mãos Limpas". Para Berlusconi foi uma ameaça e uma oportunidade. Ficou na mira da magistratura. Mas a "depuração" atingiu sobretudo os partidos do sistema, centro e direita, o que lhe abriu o espaço para entrar na política.
Em Outubro de 1993, a imunidade parlamentar foi anulada, ou melhor, drasticamente reduzida. A magistratura ficou com as mãos livres para processar e julgar parlamentares e ministros sem necessidade de o Parlamento levantar a sua imunidade. A responsabilidade foi da velha classe política que usou e abusou da imunidade.
O actual regime tornou-se doentio. Está em causa separação dos poderes. Mas nenhuma reforma pode ser feita com Berlusconi no activo. Ele e a sua exibição da impunidade são o maior argumento para os superjuízes. Ironicamente, será a sua saída de cena que abrirá caminho ao reequilíbrio dos poderes.

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