domingo, 4 de agosto de 2013

A progressiva exigência de Transparência e Verdade por parte da Opinião Pública. A crescente Deslegitimação da Política.

Elogio da mentira

Editorial/Público
Quando o discurso político está reduzido às meias verdades, a legitimação do poder é impossível
Numa mesma semana, os tribunais italianos condenam pela primeira vez, de forma definitiva, Silvio Berlusconi, antigo primeiro-ministro. Em Espanha, Mariano Rajoy enreda-se cada vez mais num novelo de contradições relativas aos pagamentos extraordinários a dirigentes do PP efectuados pelo ex-tesoureiro do partido, Luís Barcenas. Entre nós, um Governo ainda mal recuperado do susto provocado por um ministro cuja demissão era irrevogável e acabou em vice-primeiro-ministro, afunda-se no pântano dos swaps. E quando a ministra das Finanças parecia ter conseguido restaurar alguma da sua credibilidade (não toda), descobre-se que um dos seus secretários de Estado é suspeito de ter vendido contratos swap ao Governo Sócrates, mas não se lembra se esteve ou não numa reunião.
Todos estes casos são diferentes e a gravidade de uns e de outros não é comparável. Mas há um traço comum preocupante: é o momento em que o discurso político passa a ser construído por mentiras, meias verdades, omissões. E transfere-se para uma realidade paralela, um mundo virtual cuja pedra angular é a negação pura e simples da realidade. E isso não augura nada de bom quanto ao presente e ao futuro das democracias.
Condenado por fraude fiscal, Berlusconi é transformado em mártir pelos seus correligionários. A tese de que Berlusconi é perseguido pelos juízes é uma mentira refutada pela condenação. Mas o crime de fraude fiscal é simplesmente apagado, como se fosse possível desligar a realidade.
Mariano Rajoy disse há meses que nunca recebera dinheiro sujo, sugerindo nas entrelinhas do que não disse que não recebera nenhum dos famosos sobresueldos de Barcénas, personagem com quem deixou de ter contactos, garantiu. Mas soube-se depois que continuara a falar com o ex-tesoureiro. Faltara à verdade. E mais tarde admitiu que os sobresueldos eram pagos, mas que ele pagara sempre impostos. Uma meia-palavra deixou tudo no vazio e na incerteza. Mas nada ficou clarificado.
Em política, a exigência de verdade e de transparência absolutas é virginal e irrealista. Mas deve existir precisamente como exigência. A tendência do discurso político é para envolver a realidade em omissões, negações, contradições e esquecimentos que tudo tornam relativo.
A mentira é francamente preferível a estas teias semânticas em que o irreal se torna real.
O poder precisa de construir uma narrativa para existir; e que essa narrativa assenta também em ilusões. Mas o poder contemporâneo tornou-se incapaz sequer de construir essa legitimação pela ilusão - a verdadeira crise, no fundo, é essa. O poder deixou de ser capaz de manter a aparência, só consegue apresentar-se sob a forma de uma irrealidade sem pudor. Sem se aperceber do enorme risco que representa essa corrosão da legitimidade política.

Ou o secretário de Estado do Tesouro é um arrependido ou tem de sair
Por Eduardo Oliveira Silva
publicado em 3 Ago 2013 in (jornal) i online
Quanto ao caso Rui Machete, evolui como previsto, mas não deve afectá-lo mais
Depois de Maria Luís Albuquerque, foi a vez do secretário de Estado Joaquim Pais Jorge de cair nas malhas dos swaps. Como este jornal tinha referido desde logo, Pais Jorge tinha vendido aqueles produtos, mas, soube-se agora pela “Visão”, a sua intervenção tinha o alegado intuito de maquilhar o défice do Estado, através de operações que não foram, porém, concretizadas. Apesar disso o assunto é melindroso. E das duas uma: ou o secretário de Estado está no governo ao jeito dos arrependidos das séries americanas e colabora com a identificação e a denúncia de todas as operações feitas com esses produtos, ou então tem mesmo de sair do governo de que foram exonerados dois secretários de Estado, Juvenal Peneda e Braga Lino, por terem comprado esses produtos quando eram gestores públicos.

Ora é óbvio que em termos éticos tanto é condenável quem compra como quem vende algo que pode ter efeitos negativos para o Estado. Além disso, as falhas de memória que Pais Jorge manifestou quando disse não se lembrar de ter estado no gabinete do primeiro-ministro José Sócrates são estranhas. Por muitas reuniões em que tenha participado, não se recordar dessa em concreto é insólito. Assim como também é alegar que apenas tinha um papel de relação com clientes e não a função de concepção das operações. Aceita-se esse argumento de alguém que está atrás de um balcão a vender mercadorias, mas não é possível no caso dos swaps.

Como se esperava, o caso Rui Machete vai entretanto conhecendo os seus desenvolvimentos, pondo-se agora a questão da compra a um euro e da venda a dois euros e meio de acções do BPN. O assunto não é novo e lembra exactamente o de Cavaco Silva e da sua filha trazido à estampa há uns anos. Mas pode haver uma diferença relevante, uma vez que o Presidente da República tinha entregado a gestão dos seus dinheiros a um corretor que actuava autonomamente, enquanto no caso do actual MNE não está esclarecido se as circunstâncias eram as mesmas.


Por outro lado, a verdade é que as acções do banco não estavam cotadas em bolsa e portanto não é lícito insinuar que tenha havido algum tipo de benefício em qualquer dos casos, pois não há valor de referência na altura. E assim sendo o assunto nesse aspecto concreto não deve ter seguimento.


“Mesmo que as generalizações sejam sempre injustas, de cada vez que se levanta uma pedra do BPN sai de lá alguém do PSD”
 "É glorioso enriquecer". Começava o endeusamento dos mercados, como fonte de todas as virtudes económicas.
“A elite cavaquista não abandonou as convicções sociais-conservadoras mas não rejeitou a ideia de que seria "glorioso" enriquecer. Na prática, a virtude do enriquecimento levou alguns a envolverem-se nos negócios (o BPN é a face mais negra desta realidade), tirando partido da sua influência política de ex-governantes. (No PS, as coisas não foram muito diferentes).”
Teresa de Sousa.

Era glorioso enriquecer

Mesmo que as generalizações sejam sempre injustas, de cada vez que se levanta uma pedra do BPN sai de lá alguém do PSD
1. Quando Pedro Passos Coelho foi eleito líder do PSD, devo confessar que fui sensível a algumas das coisas novas que ele representava. Não em termos ideológicos, mesmo que algum vento liberal num país demasiado dependente do Estado não fizesse mal a ninguém, mas sobretudo em termos geracionais. O actual primeiro-ministro distanciava-se da velha guarda dos barões sociais-democratas, consagrados pela era cavaquista. Olhava-os com alguma sobranceria, considerando-os demasiado bem instalados na vida, em comparação com a herança que deixavam ao país e que Passos não valorizava assim tanto.
Dois anos depois, não se pode dizer que o líder do PSD tenha conseguido marcar a diferença que, porventura, a sua geração ambicionava. Os jovens turcos das academias e das empresas, convencidos de que tinham a missão histórica de resgatar um país culturalmente dominado pela esquerda e por uma direita demasiado estatista, não conseguiram transmitir uma mensagem positiva. É o mínimo que se pode dizer. A receita que aplicaram não era muito mais do que as velhas ideias neoliberais que nos conduziram à crise financeira mundial e à Grande Recessão. Desvalorização dos salários (compensada, antes da crise, pelo crédito fácil), redução do Estado social, destruição da velha economia. O problema foi que a sua receita tinha de ser aplicada em pleno vendaval da crise. Continuava certa nos livros, mas a realidade era outra. Chegaram tarde de mais. Olharam para o programa da troika como a irresistível oportunidade de porem em prática a sua visão da sociedade e da economia. Não previram a catástrofe económica e social que causaram, com o seu espírito de missão. Dividiram profundamente a sociedade. Abraçaram a estratégia de punição de Berlim. Quiseram que a responsabilidade da crise fosse toda nossa, ou seja, dos políticos que os precederam e dos portugueses que queriam viver "acima das suas posses". Viram no empobrecimento o caminho para a regeneração, que teima em não vir.

2. Vem isto a propósito de Rui Machete, o político da velha guarda que Passos foi buscar para dar alguma respeitabilidade ao novo Governo. Rui Machete faz parte da geração do PSD que batalhou pela democracia e pela Europa e que viveu os seus momentos de glória com os governos de Cavaco Silva. Quando esta geração se afastou da política activa (à qual parte dela chegou já com um percurso profissional), tinha à sua espera lugares muito confortáveis (em muitos casos merecidos mas, mesmo assim, confortáveis) no Banco de Portugal, na banca privada, nos conselhos de administração das grandes empresas, nas fundações. Nunca perdoaram a Passos Coelho a apropriação indevida do PSD. Muitos transformaram-se nos seus piores críticos. Têm, também eles, uma história.

3. Durante os primeiros anos do cavaquismo, a direita europeia começava a render-se à revolução neoliberal nascida em Londres e em Washington, e que Deng Xiaoping haveria de exprimir em 1979 melhor do que ninguém: "É glorioso enriquecer". Começava o endeusamento dos mercados, como fonte de todas as virtudes económicas. Em Portugal, cada um lidou com o novo credo com as armas de que dispunha. O PS abraçou a "terceira via". A elite cavaquista não abandonou as convicções sociais-conservadoras mas não rejeitou a ideia de que seria "glorioso" enriquecer. Na prática, a virtude do enriquecimento levou alguns a envolverem-se nos negócios (o BPN é a face mais negra desta realidade), tirando partido da sua influência política de ex-governantes. (No PS, as coisas não foram muito diferentes).
Mesmo que as generalizações sejam sempre injustas, de cada vez que se levanta uma pedra do BPN sai de lá alguém do PSD. Hoje, os comentadores chamam-lhe um "lixo tóxico": quem lhe tocou está irremediavelmente contaminado. Mas, apesar de tudo, não afecta toda a gente da mesma maneira. Uns, como o Presidente da República, limitaram-se a encontrar uma forma fácil e rápida de ganhar dinheiro. Outros ocuparam lugares bem pagos e sem grandes responsabilidades, genuinamente convencidos que um "banco do PSD" seria uma instituição normal. Foi assim com Rui Machete ou até com Miguel Cadilhe, que chegou a presidir ao BPN em 2008, para o tirar de aflições (quando fracassou, foi bem recompensado). Quando o escândalo rebentou, com a crise mundial, e o banco foi nacionalizado, a direita conseguiu um feito verdadeiramente extraordinário: desviou todas as atenções das burlas cometidas pelos responsáveis do banco para um único e verdadeiro "culpado": o governador do Banco de Portugal. Foi uma manobra de branqueamento notável, mas que não alterou a realidade. Falhou a supervisão do banco central? Falhou. Como falhou a supervisão da FED ou de muitos outros bancos centrais, que não viram a crise chegar e que aceitavam de boa-fé a "sabedoria" dos mercados e as virtudes da "desregulação" que então estavam na moda. Pode dizer-se que o BPN era um "caso de polícia" e não apenas o resultado dos excessos do sistema financeiro. Naquela altura, imagina-se o que muitos diriam se Vítor Constâncio tivesse estado mais atento ao que se passava no BPN. O então governador é hoje o vice-presidente do BCE (cujos critérios são um bocadinho mais exigentes do que a chicana política caseira). Os contribuintes portugueses estão a pagar os desmandos cometidos no BPN. O julgamento dos responsáveis prolonga-se. A lama salpica para todos os lados.

4. A nova geração do PSD que hoje governa o país teve outra origem. As coisas não lhes foram dadas de bandeja, muito embora a JSD, que foi a escola que conheceram, os tenha ajudado a subir na vida sem grande esforço. Outros vêm das empresas e da banca privada. Falam uma estranha linguagem de MBA e de power point. Só vêem à frente a economia. Outros ainda vieram das academias com a missão (em si própria louvável) de quebrar de vez o domínio cultural da velha esquerda. Em geral, não gostam do Estado. Não têm a memória do que foram os anos de consolidação da democracia e da "europeização" do país. Estão um pouco desfasados da realidade mas têm profundas convicções sobre como se deve organizar uma sociedade. Adoram ser radicais. Continuam a desprezar a velha elite do PSD, mesmo quando precisam dela para lhes dar alguma credibilidade. Convivem há muito com os swaps e com as PPP, mais do lado da oferta do que da procura. Foram arrogantes e agora não sabem bem o que é preciso fazer.
O problema é que hoje a política portuguesa é feita de "casos". Machete tocou no "lixo tóxico". É, portanto, alguém a abater. A ministra das Finanças enredou-se nos swaps e tem um secretário de Estado que parece que os quis vender ao anterior Governo quando estava a trabalhar num grande banco privado. Não deve ter sido o único. Quando o debate político se limita à discussão dos "casos", não é possível perceber o contexto político em foram tomadas as decisões nem o que significam. Nem, muito menos, o que se passa realmente na sombra do poder. Com Sócrates já tinha sido assim. As comissões de inquérito no Parlamento não são para levar a sério. A degradação da política e dos políticos perante a opinião pública é o único resultado palpável.

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