Rua de São José: uma comunidade por trás dos holofotes da
Avenida da Liberdade
POR O CORVO
• 23 NOVEMBRO, 2017 •
O preço do
metro quadrado da Avenida da Liberdade disparou nos últimos dois anos, com
valores que vão dos 6 mil aos 10 mil euros. Uma realidade que se estende a toda
a freguesia de Santo António. A Rua de São José, paralela à principal artéria
da cidade, tem, por isso, perdido moradores e conhecido novos rostos, o que não
agrada a muitos que lá vivem e trabalham. No final deste mês, uma mercearia
fechará portas e os inquilinos temem pelo futuro do negócio onde trabalham
desde 1974. Outras lojas reinventaram-se, mas não estão optimistas quanto ao
rumo que a freguesia poderá tomar quando o boom turístico acabar. O presidente
da Junta de Freguesia de Santo António apoia a reabilitação dos imóveis, mas
queixa-se da inacção de quem regula o mercado imobiliário. Vasco Morgado
defende que as freguesias têm de viver das suas gentes e considera nada está a
ser feito para as proteger.
Texto: Sofia Cristino
“Hoje tenho bolo de
abóbora e amanhã tenho bolo de pêra. Isto nunca é igual”, informa Elisabete Lima, proprietária da mercearia
Festival dos Sabores do Lima, na Rua de São José, enquanto prepara as suas
iguarias caseiras. Trabalha desde os 11 anos e, após o falecimento dos pais,
assumiu as rédeas do negócio familiar sozinha. Para além de fruta e vegetais
frescos e dos artigos típicos de uma mercearia tradicional, vende bolos feitos
pela própria e sumos naturais, muito requisitados por moradores e trabalhadores
da rua.
Atenta às transformações do mercado
imobiliário, que traz novas caras para o centro histórico de Lisboa, tem vindo
a reinventar-se. Admite, no entanto, que os clientes mais antigos fazem falta.
“O que me custa mais é terem corrido com os velhotes todos. Há pessoas com 80 e
90 anos a saírem daqui, não faz sentido. E, daqui a uns anos, quando o turismo
acabar? Como vai ser?”, questiona. Os turistas vão comprando um pão ou um
queijo, mas é uma vez ou outra. “Vê? Eram quatro e só levaram uma carcaça. Vão
dividi-la pelas quatro, se calhar”, ironiza, referindo-se a quatro mulheres
francesas que acabaram de sair.
Elisabete
Lima nasceu na freguesia de Santo António, onde também casou e teve dois
filhos. Com 38 anos, já testemunhou muitas pessoas abandonarem o bairro onde
sempre viveu, mas nada como agora. Diz que já não vê ninguém familiar e não se
identifica com as imediações da rua onde cresceu. Os rostos que por ali passam
mudam todas as semanas, mas não páram. A Avenida da Liberdade, paralela à Rua
de São José, é ponto de visita obrigatório para quem visita Lisboa. No último
ano, tem sido palco de alguns dos maiores investimentos do sector imobiliário.
E há uma explicação. Em 2015, depois da
empresa imobiliária Avenue ter comprado e requalificado grande parte da
principal artéria da cidade de Lisboa, o preço por metro quadrado disparou, com
valores que vão dos 6 mil aos 10 mil euros por metro quadrado. A icónica sede
da redacção do Diário de Notícias foi vendida por 20 milhões de euros para ser
convertida em 32 apartamentos. Os poucos prédios e andares abandonados, que
ainda ali existiam, começaram a ser recuperados. Muitos para dar lugar a
escritórios e novas lojas, outros para serem transformados em habitação de
luxo.
Maria José, de 71 anos, é das poucas clientes
habituais da mercearia Festival dos Sabores do Lima. Viu Elisabete nascer e
crescer. Natural de Mirandela, veio para Lisboa há 54 anos, e lembra-se muito
bem da cidade quando chegou. “A Avenida da Liberdade tinha prédios muito
bonitos, não era nada disto. Agora, é a avenida dos ricos, qualquer dia não nos
deixam passar lá. Estamos entregues à bicharada. A vida é barata para os
estrangeiros, mas fica mais cara para nós”, comenta, enquanto paga as compras,
fruta e vegetais.
Enquanto confecciona bolos e alguns salgados
para o dia seguinte, Elisabete Lima diz que não se opõe ao turismo, mas que o
que está a acontecer na freguesia mais cara do centro de Lisboa não faz sentido.
“Hoje, a Avenida da Liberdade é glamour e lojas finas com rendas de aluguer de
30 mil euros. Não é para nós. Alugam as lojas e o dinheiro não fica aqui. A
nossa rua e a Avenida são duas realidades muito diferentes”, considera. “Não
tenho nada contra os turistas, mas se, além deles, ainda viessem aqui os
velhinhos comprar fruta e legumes, como antigamente, era melhor para o
negócio”, explica.
Lina, de 42 anos, também faz parte dos
clientes fiéis da mercearia e sempre viveu na Rua de São José. Os andares acima
do seu já foram convertidos em alojamento local. O dela será o próximo,
informou-a a senhoria no mês passado. “Mais dia, menos dia, vamos sair todos
daqui”, afirma. Maria José concorda. “Isto é a morte dos idosos. Não paramos de
perder pessoas. Querem que eles morram para construírem hotéis e não pagarem às
finanças”, diz.
A freguesia de Santo António é, neste momento,
a freguesia mais cara do centro de Lisboa, afastando moradores antigos para as
periferias. A subida de preço por metro quadrado, registada nos últimos dois
anos de forma mais acentuada, não agrada a quem viveu e trabalhou uma vida
inteira mesmo ali ao lado. Como é o caso de Caciano Garcia. Com 90 anos, o dono
da sapataria Caciano já assistiu às principais mudanças da cidade de Lisboa em
meados do século XX e princípios do século XXI.
Lembra-se de quando ainda haviam lojas
portuguesas na Avenida da Liberdade, marcas que já não existem hoje, e das
marés de gente que rumavam a espectáculos no Teatro Tivoli. Vê as
transformações da cidade com tristeza. “A Avenida da Liberdade já não é de
Portugal, é dos estrangeiros. Haviam muitos estabelecimentos nacionais que
fecharam. O país está morto, nunca vi nada assim”, diz a O Corvo. “Portugal foi
reconhecido como um país independente em 1143 e, agora, não temos país, estamos
todos sediados em Bruxelas. As multinacionais deviam ser corridas, são um
veneno que prejudicam o sistema económico”, reforça o comerciante, que vende
sapatos há 70 naquela rua. O espaço, que não deixa perceber bem a sua dimensão
total, tal é a quantidade de caixas de sapatos que se amontoam umas por cima
das outras, já foi uma fábrica de sapatos. Em 1958, passou a ser a sapataria
Caciano.
O
proprietário confessa ter saudades dos tempos em que tinha cinco sapateiros e
lhes podia pagar bons ordenados. Agora está sozinho na sapataria que viu nascer
e crescer. Abre a loja às 9h e fecha-a às 19h e, muitos dias, não recebe
ninguém. Diz que só vende sapatos de pele e couro, mas que os clientes
habituais já não têm o poder de compra que tinham e os que têm não passam por
ali. Nas vésperas de Natal era quando se vendia mais. “Chegava a vender 30
pares de sapatos. Nos últimos anos, nem um par de sapatos vendo, às vezes”,
lastima. Uma altura achou que a situação poderia melhorar. “O IVA tinha subido
e eu mandei vir mais sapatos, mas arrependi-me. Foi um erro porque não há
emprego e não há boas reformas”, lamenta.
José Santos e Maria da Conceição Santos têm 60
anos e três dias a separar as suas datas de aniversário. Natural de Braga, José
Santos veio trabalhar para Lisboa em 1974, na mesma mercearia onde está agora,
mas como empregado. Agora, é o dono, juntamente com a mulher e o filho. Um
papel na entrada, no qual se pode ler “liquidação total”, deixa adivinhar que o
negócio já teve dias melhores. José Santos confirma-o a O Corvo. “Vamos fechar
no final do mês. Venderam o nosso prédio, o senhorio já correu com quase todos.
Ainda há uma senhora no segundo andar e nós. Já vivemos no prédio à frente, mas
também foi vendido. Agora, vivemos em São João da Talha”, explica. Vão dar-lhe
uma indemnização, mas não chegaram a acordo relativamente ao valor. “Deram-nos
a opção de pagarmos 600 euros de renda, mas não conseguimos pagar esse valor.
Pagamos 50 euros de renda e, mesmo assim, a loja dá muito prejuízo. Nunca
esteve tão mal. Vai dando para
comer”, acrescenta.
A mulher,
Maria da Conceição, não concorda com as proporções que o boom imobiliário está
a assumir, mas acredita que o fenómeno não vai durar para sempre. “É uma
vergonha a nossa rua, quem a viu e quem a vê. Isto é uma doidice, deviam
recuperar as casas para as pessoas. Há ricos cada vez mais ricos e pobres cada
vez mais pobres, mas acredito que, mais dia, menos dia, isto vai acabar”,
refere.
O casal
está à procura de outro espaço para continuar o negócio, mas duvida que o
consiga, dado o elevado preço das rendas. “E se não encontrarem um sítio?”,
questiona O Corvo. “Ou vamos para a porta do primeiro-ministro pedir dinheiro
ou voltamos para a terra, que temos lá uma casa. Mas, vamos viver de quê? Da
horta? Tínhamos umas poupanças, mas, com o prejuízo, também acabaram”, lamenta
o senhor Zé, como é conhecido por todos.
Entre os negócios que ainda vão subsistindo,
no arruamento que desagua na Rua de Portas de Santo Antão, o mais antigo é o da
Leitaria e Manteigaria Minhota. Aberta em 1903, hoje está sob alçada de
Fernanda Santos, com 80 anos. Trabalha ali há meio século e não poupa nas
críticas às desigualdades que diz sentir na forma de tratamento das duas
artérias, situadas lado a lado. “A Avenida da Liberdade é luxo e a Rua de São
José é lixo. Tudo o que é lixo das obras ou dos hotéis vem parar aqui e tem
aumentado. Os que estão aí alojados não põem o lixo no caixote, fica na rua.
Quando chego, de manhã, cheira muito mal. Tramaram os comerciantes, sentimos
uma revolta muito grande”, afirma a octogenária, que vive no Bairro Alto.
“Deviam pôr cá fiscais para verem como a rua
está”, comenta a vizinha Conceição, de 71 anos, que foi até ali saber das
novidades do bairro. Já António Castelo, de 76 anos, nascido e criado na
freguesia de Santo António, vê a reabilitação dos prédios como “um progresso
natural e necessário de uma cidade em crescimento”. Os hóspedes dos Alojamentos
Locais e hotéis das redondezas vêm cá?, questiona o Corvo à funcionária da
leitaria centenária. “Vêm aqui só para tirar fotografias. Até ao chão tiram
fotografias. Põe-se aqui de joelhos a fotografar tudo e não levam nada. É um
abuso, mas eu também não os consigo mandar embora”, confessa.
Esta realidade não é, ainda assim, transversal
a todos os comerciantes. Filomena Cardoso, proprietária de uma papelaria na Rua
de São José há 20 anos, admite sentir quebras no negócio, mas continua a ser
muito procurada, principalmente desde a subida do turismo na cidade. “O turismo
vai trazendo alguma gente, que vem aqui carregar os bilhetes para as viagens.
Eu só tinha uma forma de pagamento, com cartão Multibanco e, agora, já tenho
pagamento por Visa, porque era muito solicitado”, explica. Acredita, todavia,
que não será sempre assim. “Isto tem um período de validade, não vai durar para
sempre. Acho péssimo estarem a vender os prédios e retirarem as pessoas do seu
local de conforto”, conclui.
Segundo dados da Confidencial Imobiliário,
entre Janeiro de 2016 e Junho de 2017, foram compradas 1.300 casas por cidadãos
estrangeiros em 11 freguesias de Lisboa, onde se localizam os principais
bairros históricos, tendo sido investidos 446 milhões de euros. Entre os
compradores estão cidadãos e empresas provenientes de 84 países, mas são os
chineses e os franceses quem compra mais imóveis para habitação. As freguesias
da Ajuda, Alcântara, Arroios, Avenidas Novas, Belém, Campo de Ourique, Estrela,
Misericórdia, Santa Maria Maior, Santo António e São Vicente são apontadas como
as mais dinâmicas em termos de investimento em reabilitação urbana.
Questionado sobre se concorda com o rumo que a
reabilitação imobiliária está a tomar no centro histórico de Lisboa, Vasco
Morgado (PSD), presidente da Junta de Freguesia de Santo António, é peremptório
na resposta. “Não, de todo. As freguesias vivem das suas gentes e nada está a
ser feito para proteger os interesses dos moradores. A requalificação dos
prédios é boa para a renovação das fachadas e a valorização do espaço público,
mas, daqui a uns tempos, muitas destas novas habitações estarão vazias. Quem
compra dificilmente vem para cá morar”, explica. “Isto está a acontecer porque
Lisboa está na moda, mas esquecem-se que não somos consistentes no turismo.
Estamos a assobiar para o lado e a nivelar o turismo por baixo, só pode correr
mal”, assegura, ainda.
Para o presidente da Junta de Freguesia de
Santo António, Lisboa tem de ser pensada para além do turismo. “Lisboa tinha
mais a ganhar em expandir o Alojamento Local e não a concentrar tudo em quatro
freguesias (Misericórdia, São Vicente, Santa Maria Maior e Santo António). A
Câmara Municipal de Lisboa (CML) devia fazer um regulamento municipal por
quotas. Outra das alternativas seria o prolongamento do arrendamento
permanente, a descida dos impostos de longa duração e definir limites de preços
das rendas. Existem milhentas hipóteses, mediante a legislação existente, de
travar isto”, propõe.
A higiene
urbana é uma das questões que mais preocupa Vasco Morgado. “Um dos grandes
problemas, neste momento, é que temos 12 mil habitantes, mas trabalhamos para
100 mil, o fluxo de pessoas que passa aqui. A junta tem um milhão de euros para
gastar na limpeza, mas devia ter um milhão e meio, só para correr bem, já nem
digo correr muito bem”, explica. “Não consigo pedir a 50 trabalhadores que
façam o mesmo trabalho de há quatro anos. Temos cinco vezes mais lixo que há
quatro anos. Além do lixo proveniente dos hotéis, temos novos residentes que
têm o hábito de não colocar o lixo nos contentores e deixá-lo na rua”, acusa,
ainda.
A grande prioridade da Junta de Freguesia de
Santo António, agora, é não perder mais moradores. “Se perdermos mais
habitantes, as marchas passam a ser na Trafaria, para onde estão a ir todos”,
ironiza. O AL surgiu para uns sobreviverem e outros fazerem negócio, mas não
tem havido uma visão estratégica. Os turistas vêm ver o que faz a história da
cidade. Quando já só houverem turistas, não têm nada para ver. Já devíamos ter
aprendido com os erros dos outros, como Veneza, um grande exemplo de como o
turismo estraga as cidades”, considera.
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