Há cada vez
mais ruído dos aviões sobre Lisboa, mas pouca gente apresenta queixa
POR O CORVO
• 21 NOVEMBRO, 2017 •
Ao
crescimento meteórico do turismo na capital portuguesa correspondeu o aumento
significativo do número de aviões a aterrarem no seu aeroporto. Só este ano, o
Humberto Delgado assistiu uma subida de 10% nos movimentos e de 23% no número
de passageiros, em relação a 2016. O roncar dos reactores dos jatos carregados
de visitantes tornou-se uma banda sonora do quotidiano de alguns bairros.
Multiplicam-se, por isso, os relatos do crescente incómodo por eles causado. Há
quem não consiga dormir, apesar das restrições aos voos nocturnos. Mas, por
estranho que pareça, quase não há registo de queixas. E, para piorar o cenário,
a Agência Portuguesa do Ambiente e a Autoridade Nacional de Aviação Civil
empurram uma para a outra a responsabilidade de tomar medidas suplementares de
mitigação do ruído.
Texto: Samuel Alemão
O tormento de Fernanda Silva é tão persistente
que ela conhece quase de cor os horários dos aviões que lhe sobrevoam a casa.
“O pior de tudo é ao meio-dia, quando passa aí um Boeing enorme da Emirates
Airlines ou por volta das 18h30, quando passa um da TAAG. O ruído é tão
avassalador que as janelas até abanam”, conta a moradora de 34 anos da Avenida
Columbano Bordalo Pinheiro, mãe de uma criança com um ano de idade. Ela reside
na artéria que liga a Sete Rios à Praça de Espanha desde 2003 e não se lembra de
alguma vez ter sentido algo assim. “Este ruído muito intenso causado pelos
aviões começou a agravar-se há dois ou três anos e tem estado a piorar, de dia
para dia, de forma absurda. Tem-se causado angústia e desânimo”, relata. E não
está sozinha. “Toda a gente aqui se queixa”, assegura. Pode não ser toda a
gente, mas será, por certo, considerável o número de pessoas que se têm sentido
acossadas pelos sobrevoos em Lisboa.
Há razões objectivas para tal. Acompanhando o
crescimento meteórico do número de turistas em Lisboa, o Aeroporto Humberto
Delgado tem assistido a uma subida em igual proporção do número de aviões a
chegarem e a aterrarem. Basta observar os números do último boletim trimestral
da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), publicado em setembro, para o
perceber. No período entre 1 de abril e 30 de junho deste ano, e acompanhando
uma tendência geral dos aeroportos nacionais, em relação ao período homólogo de
2016, a infraestrutura aeroportuária da capital assistiu a um aumentou de
10,74% dos movimentos aéreos (aterragens e descolagens) e uma subida de 23,08%
do número de passageiros transportados. No trimestre anterior, em também em
comparação com o ano passado, os movimentos haviam já registado uma subida de
11% e o universo de passageiros subira 21%. Tal acaba por não ser uma surpresa,
dada o acréscimo de turistas observados nas ruas de Lisboa.
E se é verdade que, nos últimos anos, os
movimentos de aviões têm vindo a crescer de forma constante, também não o é
menos o facto de os meses correspondentes ao período estival serem aqueles em
que os reactores dos aviões mais se fazem notar. “Os aviões são cada vez em
maior número, a frequência aumentou de uma forma impressionante, de dia e de
noite, mas é no verão, sobretudo em julho e agosto, que os sinto mais”, conta a
O Corvo Maria Moura, uma moradora da Rua Fialho de Almeida, no Bairro Azul, há
já cinco décadas e que diz já não ter descanso. “São uns atrás dos outros. Às
vezes, estou a ouvir o barulho de um e já se percebe o do outro, que vem a
seguir. Chegam a passar com intervalos de apenas dois minutos. Isto, claro,
perturba-me o sono, estou sempre a ser interrompida”, queixa-se a moradora,
dona de um café no mesmo arruamento. Por viver ali há tantos anos, tem uma
clara noção de como mudou o ambiente. Algo que, garante, se começou a notar de
forma evidente há mais ou menos dois anos.
O que bate certo com as queixas de outras
pessoas. Mas há quem apenas se tenha apercebido deste crescente barulho de
fundo há menos tempo. Ana Caldas, 59 anos, moradora num quarto andar da Rua Dom
Luís de Noronha, também perto da Praça de Espanha, até se recorda com precisão
do momento em que tomou consciência do problema, naquilo que se assumiu como
uma espécie de epifania negativa. “No domingo do incêndio de Pedrógão (18 de
junho), estava em casa a almoçar, a assistir na televisão às declarações do
secretário de Estado da Administração Interna sobre o que se estava a passar e
a reflectir sobre aquilo, ao mesmo tempo que ouvia os aviões a sobrevoarem a minha
casa. E aí pensei que, se bem que muito diferente, este era também um caso de
negligência do nosso Estado”, rememora a tradutora, que se queixa de um grande
dificuldade em concentrar-se no trabalho, realizado quase sempre na mesma sala
onde assistiu às declarações do agora ex-governante. “De há uns meses a esta
parte, o tráfego aumentou imenso e é frequente haver movimentos a intervalos de
três minutos, nas horas de ponta”, nota.
Dormir é, por isso, outra actividade que se
tem tornado penosa. Tanto que, de noite, Ana recorre a tampões nos ouvidos e a
comprimidos – tal como Maria Moura, aliás. “Desde 1990 que vivo aqui e, durante
muito tempo, ouvia os aviões mas isso não me incomodava muito. Sentia que,
apesar de estar numa zona central da cidade, estava num sítio calmo. Por
vezes, até se ouviam pássaros e grilos nas noites de verão. Mas neste último, sinto que as coisas foram
muito complicadas”, diz a profissional liberal, a quem a tomada de consciência
do sobrevoo constante de aeronaves comerciais rumo ao aeroporto se tem revelado
sinónimo de angústia. “A certa altura, fui de férias e dei por mim a pensar que
já não queria voltar para a minha casa”, confessa. E existiam razões concretas
para tal. Logo no dia em que se apercebeu da dimensão do problema, pôs-se a
contar e, apenas entre as 13h e as 14h, contou 17 aviões sobre a Praça de
Espanha. Noutro domingo, a 30 de julho, entre as 7 e as 7h30 da manhã, passaram
10 aeronaves.
Esta zona da cidade está no chamado “corredor
de aproximação ao aeroporto” ou “cone de aproximação ao aeroporto”, naquela que
é a rota mais vezes utilizada na aterragem no Humberto Delgado. Entrando nela,
depois de, sobre a zona da Caparica, alinharem com a pista 03 – a mais
utilizada das quatro existentes em Lisboa, nela se fazendo 76,7% das aterragens
e descolagens, de acordo com dados da ANA ,de 2011 -, os aviões costumam
percorrer sobrevoar a cidade utilizando um corredor que inclui Alcântara,
Avenida Infante Santo/Estrela, Amoreiras, Campolide, Avenidas Novas, Alvalade,
Campo Grande. Cada vez mais próximo da pista, cada vez mais próximo do solo.
Com óbvias consequências na percepção do barulho feito. “Da minha varanda,
consigo ver a fila de aviões a alinharem para aterrarem. Até já sei se o tempo
ou os ventos vão mudar, se eles optarem por desviar para outra pista que não
aquela”, diz Fernanda Silva, a moradora da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro.
Fernanda lamenta o ruído mais ou menos
constante. Mas é aquele feito durante o período nocturno o que a mais nervosa a
deixa. “A partir das cinco da manhã, já se consegue ouvir”, queixa-se. Também
Maria Moura, a moradora do Bairro Azul garante que o roncar dos reactores, por
vezes lhe chega aos ouvidos às quatro ou cinco da manhã. Tais queixas poderão
causar alguma perplexidade, até porque é sobejamente conhecida da maioria da
população a existência de um período de restrição ao tráfego aéreo entre a
meia-noite e as seis da manhã. Não se trata de uma suspensão, mas sim de uma
restrição. E ela permite, através de uma portaria, aprovada em Março de 2004
pelo governo liderado por Durão Barroso, a existência de até 91 movimentos
aéreos naquele período, espalhados pelos sete dias da semana. E acrescenta que
“em qualquer caso, o número de movimentos aéreos por período nocturno diário
não pode exceder o dobro do número diário”. Mas tal limitação não será
suficiente para suavizar o impacto dos sobrevoos realizados quando a maior
parte da população está em casa.
“À noite e
aos fim-de-semana, até por estar em casa, é quando se nota mais o ruído dos
aviões. Muitas vezes, venho para casa e não consigo descansar. Ouve-se aquele
roncar, mesmo com o vidro duplo e a porta grossa de madeira. A minha casa fica
mesmo na rota dos aviões”, lamenta Jorge Humberto Dias, 44 anos, professor de
filosofia residente no Bairro Alto. Local onde vive desde sempre. Jorge tem,
por isso, uma clara percepção de quando o problema se começou a agudizar. “Isto
piorou nos últimos quatro a cinco anos”, assegura. A relação do fenómeno com o
aumento da demanda turística da capital não o surpreende, uma vez que vive numa
área da cidade onde tal se sente com especial acuidade. “Daqui de casa, vejo os
aviões e percebo de quem companhias são. Vêm-se, por exemplo, muitos aviões de
cor laranja”, diz, sorrindo, referindo-se a uma das mais conhecidas low-cost, a
EasyJet. Por isso, veria com bons olhos o desvio desses voos para outro
aeroporto que não o Humberto Delgado. “A única solução seria um aeroporto afastado
do centro”, diz.
Jorge Humberto Dias mora no Bairro Alto, onde
o roncar dos reactores compete com o da noite.
Uma solução defendida por muitos. E que vai de
encontro ao que o actual Governo já anunciou, este ano, como sendo uma escolha
mais que certa, mas ainda a carecer de validação: a transformação da base aérea
militar do Montijo num segundo aeroporto da capital, vocacionado para acolher
as companhias especializadas nos voos mais baratos. Tal notícia soa como música
aos ouvidos de muitos dos residentes agora atormentados pelo ruído dos aviões.
“Noutras cidades europeias, os voos low-cost são fora da cidade. Se avançassem
aqui com tal solução, isso seria uma grande melhoria”, considera Fernanda
Silva, a moradora da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro. “Alguma providência
tem que ser tomada para acabar com o actual estado de coisas”. O mesmo pensa
Maria Moura, que vive no Bairro Azul: “Percebo que o turismo é importante para
a economia do país e da cidade, mas não podem sacrificar a qualidade de vida
das pessoas. Têm que cumprir as regras”.
Também Madalena Moita, 37, residente de Campo
de Ourique, julga ter chegado o momento de serem tomadas medidas de fôlego para
obviar ao que se converteu num tormento. “Esta situação é incomportável, nos últimos
três anos, tem-se notado uma frequência absurda de aviões a sobrevoarem o
bairro”, diz, salientando que as pessoas que ali vivem estão habituadas a
vê-los passar, desde sempre. Mas, agora, as coisas mudaram. “Antigamente, isto
não era notado. Mas, neste momento, é impossível não dar por eles”, afirma
Madalena, notando que o incómodo é maior sobretudo “ao fim do dia, antes do
jantar”. Há poucos meses, mudou de casa dentro do bairro. E o facto de ter
vidro duplo no novo apartamento suaviza o desconforto. Na antiga habitação,
garante, não se conseguia ter uma conversa na varanda, tal o incómodo. “Mais
até que o grande ruído, em si mesmo, a frequência com que eles passam é que
causa irritação”, confessa, admitindo que, um destes dias, seu ao trabalho de contar
as aeronaves a sobrevoar Campo de Ourique, nas horas de maior movimento, e
encontro ciclo de passagem a cada três minutos.
Campo de Ourique é, de facto, uma das zonas
mais afectadas pelo fenómeno, tal como Alvalade, Campo Grande, Cidade Universitária
e o Hospital Júlio de Matos, confirma a O Corvo o responsável pelo grupo de
acompanhamento do ruído da associação ambientalista Quercus, Paulo do Carmo.
Uma constatação feita, porém, apenas com base na consulta dos dados constantes
no Plano de Acção do Ruído (PAR), aprovado pelo Município de Lisboa, em 2015 –
instrumento de gestão que, na verdade, se centra quase em absoluto sobre as
consequências do barulho causado pelo trânsito automóvel. A associação não tem
dados estatísticos próprios que lhe permitam realizar uma análise detalhada do
problema do ruído provocado por aeronaves. E Paulo do Carmo garante que, por
estranho que pareça, não existe sequer registo de queixas sobre o assunto
feitas à Quercus, nos últimos anos, por cidadãos ou instituições. “Sabemos que
é um problema crescente, até pelo aumento do número de aviões que chegam com
turistas. Houve um tempo em que existiam reclamações por causa do ruído, mas
não temos tido nos últimos anos”, diz.
Uma realidade que, embora contraditória com o
significativo aumento verificado nos movimentos de aviões, é confirmada pela
ausência de queixas formais. Tanto a Agência Portuguesa de Ambiente (APA) como
a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC), questionada por O Corvo, dizem
não ter notado um acréscimo das reclamações. “Apesar do aumento do número de
voos registados no Aeroporto Humberto Delgado, não foram recebidas nesta
agência, no presente ano, quaisquer queixas relativas ao ruído causado pelas
aterragens e descolagens de aeronaves”, esclarece a APA, referindo que tal
aspecto “poderá ser indicador que a situação de ruído provocado por esta fonte
não sofreu alterações significativas”. E fá-lo, admitindo desconhecer se
noutros organismos a situação foi a mesma. À mesma questão, a ANAC diz que o
“número de reclamações recepcionadas não representa um aumento face ao número
de reclamações recepcionadas no período homólogo do ano anterior”, embora não
diga quantas queixas recebeu.
Apesar de ser a entidade pública com reais
poderes na regulação da actividade da aviação civil em Portugal, na resposta às
questões d’O Corvo, a ANAC garante que o enquadramento legal em vigor a isenta
de responsabilidade no acompanhamento dos instrumentos de monitorização do ruído.
Tal responsabilidade caberá não só à APA como às entidades gestoras ou
concessionárias de infraestruturas de transporte aéreo, neste caso, a ANA. De
facto, o Plano de Acção do Aeroporto de Lisboa 2013-2018 foi submetido à
aprovação da agência em junho de 2014 e aprovado em março de 2015. Questionada
sobre o acompanhamento deste instrumento, a Agência Portuguesa do Ambiente diz
que “o plano apresenta várias fases com vista à gestão e controlo do ruído na
área envolvente da infraestrutura, estando prevista a entrega até ao final do
ano, do relatório correspondente à 1ª fase de aplicação do Plano de Acção”.
Independentemente das conclusões que vierem a
ser tiradas desse relatório, persiste a dúvida sobre a qual das duas entidades
estatais competirá actuar, se se perceber que há necessidade de reduzir o ruído
das aeronaves que utilizam o Humberto Delgado. Senão, atente-se às respostas
dadas por cada uma delas (APA e ANAC) à pergunta d’O Corvo sobre a
possibilidade de aplicação de medidas suplementares de mitigação do ruído.
Apontando para a legislação, a ANAC diz que “não acompanha a aplicação dos
planos de acção apresentados pela entidade gestora aeroportuária para o
aeroporto Humberto Delgado” e que não lhe compete o estudo da aplicação de
referidas medidas suplementares. Isto, embora conceda como sua responsabilidade
“assegurar que a poluição sonora existente nos aeroportos sob a sua alçada seja
avaliada regularmente”.
Mas, à mesma questão sobre as medidas de
mitigação, a resposta dada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) alimenta a
perplexidade: “As competências para aplicar medidas de mitigação de ruído de
aeronaves não estão atribuídas a esta Agência, sendo matéria específica da
Autoridade Nacional para Aviação Civil”. E acrescenta: “Acresce ainda
referir que o referido aeroporto está inserido na aglomeração de Lisboa, tendo
o município, no âmbito das suas competências, elaborado e aprovado o Plano de
Acção para redução do Ruído, publicado em julho de 2014”. O tal plano cujo relatório sobre a aplicação da
primeira fase deverá ser conhecido até ao final deste ano.
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