O Governo a escangalhar-se
Custa a
acreditar que se esqueça tão depressa o que aconteceu em 2010 e se volte a
repetir com naturalidade os vícios que custaram despedimentos, quebras e cortes
de salários, impostos agravados e o vexame internacional.
Manuel Carvalho
22 de Novembro de 2017, 6:35
Vista do
futuro, a balbúrdia das pressões à volta do descongelamento das carreiras da
Função Pública há-de provar o momento em que a geringonça deixou de ser o
mecanismo que garantia a sustentação do Governo para se tornar no Governo em si
mesmo. Depois de prometer meio mundo e o outro aos servidores do Estado,
escancararam-se as portas a todas as reivindicações e todas as reivindicações
tiveram direito a promessas que destruíram o balanço da orientação política até
aqui mantida por António Costa e Mário Centeno. Hoje, faz pouco sentido o aviso
deixado pelo ministro das Finanças no Parlamento há apenas três semanas, quando
lembrou que “o que tanto custou a conquistar pode perder-se mais rapidamente do
que levou a conquistar”. O Governo converteu-se num balcão de uma mercearia
onde se compra, troca e vende tudo. Vendem-se apoios partidários e silêncios
sindicais, trocam-se linhas de rumo, prioridades e sentido de Estado,
compram-se votos, fidelidades e promessas a prazo. Depois da balbúrdia dos
professores e das que se anunciam, é um albergue espanhol onde cabe todo o
poder da rua.
Custa a
acreditar que se esqueça tão depressa o que aconteceu em 2010 e se volte a
repetir com naturalidade os vícios que custaram despedimentos, quebras e cortes
de salários, impostos agravados e o vexame internacional. Custa a acreditar que
António Costa tenha caído tão facilmente “na ilusão de achar que podemos voltar
ao ponto antes da crise”, como esta semana sublinhou o Presidente-Rei,
prometendo tudo mesmo tendo a dúvida de que nada pode cumprir. É duro aceitar
que no exacto momento em que a sociedade e a economia estão suficientemente
sólidas, confiantes e prontas para dar um novo salto em frente haja um Governo
que faça regressar “a tendência portuguesa para o ‘mais ou menos’, para o
‘assim-assim’”, ou caia no vício de “‘ganhar um tempinho’”, acreditando que
“com sorte isto não dá errado”, ainda nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois de
Mário Centeno tornar pública a sua firme decisão de aplacar as expectativas irrealistas
dos sindicatos, do Bloco e do PCP, pensava-se que o Orçamento do Estado de 2018
seria arriscado, mas dentro do limiar da razão política que este Governo
instituiu. Os protestos dos professores mudaram essa percepção. Primeiro, Costa
lembrou que “descongelar não significa reconstruir a carreira que as pessoas
teriam tido se não tivesse havido congelamento". Depois, admitiu que a
contabilização dos anos em que as carreiras dos professores estiveram
congeladas é uma possibilidade em “abstracto”. Ontem, recuou de novo lembrando
que “é impossível refazer a história”. Entretanto, os professores lá receberam
cheque em branco que, em Dezembro, começarão a preencher para receber não em
2018, mas mais tarde. E, como seria de esperar, formou-se de imediato uma fila
na mercearia. Já lá estão 20 mil elementos da PSP, os bravos soldados da GNR,
os sete mil funcionários judiciais, 15 mil médicos, técnicos superiores de
diagnóstico e terapêutica, trabalhadores do SEF e muitas outras classes
profissionais da Função Pública.
Teria de ser assim? Não tinha de ser assim. A espiral de reivindicações estava
num estado larvar, mas não fazia parte da ordem do dia. Há meio ano apenas, o
coro de reivindicações dos funcionários públicos e a voz grossa dos sindicatos
a propósito dos descongelamentos das carreiras quase não se ouvia. E se, de
súbito, se instalou como o elefante no meio da sala do debate nacional é porque
o Governo perdeu o controlo e deixou que os seus parceiros parlamentares
assumissem as rédeas da política. Hoje, o Governo parece uma barata tonta a
sacudir a pressão, a encontrar explicações, a disfarçar a falta de coragem para
dizer não com adiamentos para Dezembro, para os próximos anos, para todo e
qualquer horizonte que o salve da contestação e do vitupério dos seus
parceiros. Quem manda são os parceiros das posições conjuntas e as suas
extensões nos sindicatos.
O que está
em causa deixou por isso de ser um processo suave de reajustamento que
contemplava a reposição dos legítimos direitos laborais dos funcionários
públicos. Deixou de ser uma gestão criteriosa do presente com olhos postos no
futuro e transformou-se numa atitude novo-rica de quem rega os problemas com
dinheiro para não ter de os resolver pela base. O Governo é em si mesmo uma
geringonça e escangalha-se ao cair na tentação fácil de acreditar que segue em
frente sem ter de fazer esforço para caminhar. É uma manta de retalhos
abençoada pelo crescimento da economia a ser puxada por forças centrípetas às
quais não sabe, não pode ou não quer resistir. É o actor de uma peça de
argumento leviano na qual Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e os seus aliados
sindicais fazem de ponto.
O que está
a acontecer vai provocar um aumento desmesurado da despesa rígida do Estado. O
destino das contas do Estado voltará a deixar de ficar sob a alçada do nosso
controlo e passará a depender da providência das taxas de juros, do crescimento
dos nossos parceiros ou da estabilidade política na União Europeia. Voltamos ao
passado, como se fôssemos um país estúpido e incapaz de aprender à sua custa
dos seus erros. O Governo que até agora tinha conseguido afastar o diabo
mantendo um sólido compromisso entre o equilíbrio das contas públicas e a
melhoria dos rendimentos dos deslumbrou-se e viajou para a estratosfera.
Com este passo
imprudente, António Costa arrisca-se a perder o pé. O eleitorado moderado
tenderá a mudar-se para outras latitudes. “A sociedade tem de ter a coragem de
assumir os seus problemas”, lembrou uma vez mais Marcelo Rebelo de Sousa, e a
sociedade portuguesa teve essa coragem. Quando perceber que o Governo virou a
cara aos problemas para garantir o seu confortável “saber durar”, dificilmente
lhe perdoará. Como mostraram as eleições de 2015, uma ampla franja dos
portugueses perceberam o que se passou. E percebem também o perigo de se
encarar o leve alívio na economia como um estímulo ao agravamento da despesa.
Sabemos pelos sinais da dívida, do mundo, ou pela fragilidade da economia que a
situação recomenda juízo, prudência e paciência para, como tantas vezes acontece
na vida, ir melhorando a vida aos poucos.
Pode ser
que até 2023 consigamos viver um período de crescimento continuado, pode ser
que a conjuntura externa seja capaz de sustentar este bodo aos funcionários
públicos. Mas pode ser que não. Os receios, de resto são mais consistentes do
que as expectativas positivas. É a incógnita que justificaria a prudência
receitada pelo Presidente. Se alguma coisa correr mal, será fácil encontrar o
culpado. Quando podia ser um herói ao conservar a actual fórmula de sucesso, o
primeiro-ministro decidiu arriscar e prometer o que pode e o que não pode. São
opções como esta que afirmam, ou infirmam, a fibra dos estadistas.
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