Eric Toussaint. “Parte da dívida portuguesa é claramenteodiosa ou,
pelo menos, ilegítima”
RICARDO
CABRAL FERNANDES
16/11/2017
10:00
Para
Toussaint, “Tsipras apoiava-nos oficialmente”, mas aceitou “não usar o nosso
trabalho publicamente, para não questionar publicamente a legitimidade da
dívida” soberana grega
Eric
Toussaint, economista especialista em dívidas soberanas, não tem dúvidas quando
afirma que “parte da dívida portuguesa é claramente odiosa ou, pelo menos,
ilegítima”. Para o belga, “devia ser constituída uma auditoria à dívida para
identificar a parte que é ilegítima e odiosa”, medida encetada no passado por
executivos, como o do Equador. Toussaint considera ainda que “o governo
português deveria suspender o pagamento da dívida e impor aos credores uma
redução radical da dívida”, “sabendo que não é fácil defender esta posição em
Portugal”.
Mário
Centeno, ministro das Finanças, pronunciou-se, há uns meses, sobre a
possibilidade de se reestruturar a dívida portuguesa: “É interessante, mas
apenas no plano intelectual”. “Não se pode lutar contra o mercado”, enfatizou o
ministro. A estratégia de Centeno passa por não combater - nem enfurecer - o
mercado, procedendo-se ao pagamento da dívida, inclusive antecipadamente. Em
2017 espera diminuir a dívida para os 126% do PIB e, em 2019, para 120%. A bem
sucedida emissão de dívida a 10 anos desta segunda-feira por 1,9% de juros
parece corroborar a estratégia do ministro, não estivessem as taxas das dívidas
soberanas europeias a ser corrigidas no mercado secundário, rondando, hoje, os
1,955%, com o prolongamento do quantitative easing do BCE de Mario Draghi,
prolongado até setembro de 2018.
Opinião
distinta tem Toussaint: “Se se reduzir a dívida pagando-a, reembolsando-a, acho
que não é uma boa decisão”, disse ao i à margem do Plano B, organizado pelo
Bloco de Esquerda. Ainda que a dívida seja reduzida em cerca de 10% até 2019,
continuará a ser o dobro do previsto pelas regras europeias, que estipulam que
as dívidas públicas dos Estados-membros da zona euro não podem ser superiores a
60%.
“Sei que
imensa gente pensa que não existe qualquer questão de legitimidade ou
ilegitimidade da dívida”, mas isso é “uma posição errada”, confessa. “Como é
que o país acumulou tanta dívida? Para que propósito? Em que condições? Quem
lucra com a dívida?”, são algumas das questões que o belga considera merecerem
respostas para se apurar a legitimidade da dívida, algo que não é abordado nem
exigido politicamente por este governo. “É muito importante para os cidadãos de
cada país compreenderem o porquê da dívida ter aumentado tanto” nos últimos
anos, “relacionando-a com o tipo de integração que a economia portuguesa tem na
zona euro”.
O
economista adianta com a importância dos “resgates dos bancos privados” e a
“venda de vários destes bancos ao Santander e à LoneStar”. Toussaint não
responsabiliza apenas o “governo de Passos Coelho”, mas também “este governo”
socialista de António Costa, que
“manteve a venda dos bancos privados sem confrontar os responsáveis pela
falência”. Mudam-se os governos, mas permanecem as vontades, poder-se-ia
acrescentar.
A dívida
sufoca o povo grego
Para além
de ter um vasto currículo a estudar as intervenções do Fundo Monetário
Internacional nas economias em desenvolvimento, Toussaint fez também parte da
Comissão de Auditoria à Dívida Soberana Grega do parlamento helénico, liderado
por Zoe Konstantopoulou. Neste, explica o economista, retiraram-se inúmeras
conclusões, umas constituem novidade e outras nem tanto. “É muito claro que a
maior parte da dívida grega pertence à troika”, disse, sendo que “85% da dívida
pertence a 14 Estados-membros da zona euro” por meio do Mecanismo Europeu de
Estabilização Financeira, para além do Fundo Monetário Internacional e do Banco
Central Europeu. A Comissão também demonstrou que “a dívida foi acumulada para
salvar os bancos privados, principalmente franceses, alemães, belgas,
holandeses e italianos”, que foram “apoiados pelo diretor do BCE, [na altura]
Jean-Claude Trichet” e por [José Manuel] “Barroso, na altura presidente da
Comissão Europeia, e por Dominic Strauss-Khan, então diretor do FMI”. A
Comissão provou que a “dívida não foi contraída no interesse do povo grego nem
dos povos europeus”, concluindo que as “condições impostas à Grécia violaram
vários tratados internacionais que protegiam os direitos económicos, políticos,
culturais e sociais dos cidadãos gregos”.
Como
explicou o economista, “de acordo com a lei internacional, existem dois
critérios para se definir que uma dívida soberana é odiosa: se tiver sido
acumulada contra os interesses do povo e se os credores o sabiam”. Segundo
Toussaint, “os credores sabiam-no [que a dívida foi contraída contra os
interesses do povo grego] perfeitamente, pois foram eles próprios a ditarem as
condições” de reformas estruturais neoliberais e medidas de austeridade, o que
faz com que a dívida seja “odiosa, mas também ilegal em vários aspectos”. Um
deles é precisamente o facto do parlamento grego não ter sido “consultado sobre
os Memorandos, mas forçado a votá-los sem a possibilidade de propor emendas”.
“O povo grego não foi responsável pelo aumento da dívida”, concluiu o especialista.
“A dívida e
o seu pagamento são insustentáveis”, garantiu Toussaint. “Hoje, encontra-se nos
180% do PIB”. Por sua vez, e no seu último relatório, o FMI previu que a dívida
grega aumente em 2017 para os 180,2% e, em 2018, para os 184,5%. Outros economistas,
como Kostas Lapavitsas, também têm reafirmado a insustentabilidade da dívida,
defendendo a sua reestruturação ou até o seu não pagamento, ao mesmo tempo que
a relacionam com a própria estrutura da zona euro, que produz desequilibrios
entre as distintas economias europeias.
O belga
denuncia ainda o que considera ser uma “campanha mediática, incluindo com
declarações de líderes europeus, como Jeroen Dissjelbloem, líder do Eurogrupo
até janeiro, ou [Christine] Lagarde, presidente do FMI, que afirma que os
gregos não pagam os seus impostos, que são preguiçosos ou até mesmo que o
Estado Social grego é demasiado generoso”. Apesar desta campanha “muito bem
escrita contra os gregos”, o economista reafirmou a necessidade de se “explicar
aos povos português, italiano, alemão, francês e espanhol qual é a real
situação” no país. Na Grécia, cerca de 20,9% da população ativa encontra-se
desempregada, 42,8% da população ativa jovem não consegue arranjar trabalho e
quase 1,5 milhões de gregos vivem em pobreza extrema, segundo dados da
Autoridade Estatística Helénica.
A própria
Comissão também se deparou com a forte oposição das instituições e líderes
europeus, bem como com a falta de apoio do primeiro-ministro grego, Alexis
Tsipras. “Quando começámos o nosso trabalho, Tsipras apoiava-nos oficialmente,
mas na realidade estava sob a pressão dos credores”, denuncia Toussaint, que
acusa o primeiro-ministro de se ter “submetido” à “chantagem para não usar o
nosso trabalho publicamente, para não questionar publicamente a legitimidade da
dívida”. Hoje, Tsipras não fala sobre a reestruturação da dívida, quanto mais
sobre o seu não pagamento.
Depois da
capitulação do governo Syriza, em agosto de 2015, e da realização de eleições
legislativas antecipadas a 20 de janeiro, o novo presidente do parlamento
grego, Nikos Voutsis, ordenou o encerramento da Comissão. “Foi encerrada e
disseram-nos para irmos buscar os arquivos às instalações do parlamento”. Para
Toussaint, o mais grave não foi o cancelamento do grupo de trabalho, mas “o
facto de terem apagado do website do parlamento todas as informações sobre a
Comissão”. Foi como se tivessem relevado a Comissão de Auditoria à Dívida Grega
para os anais da História, para o “caixote do lixo da História”. Ainda assim,
cada novo anúncio de aumento da dívida soberana grega parece dar razão a
Toussaint e à Comissão em que participou, mesmo que ter razão sirva de pouco
quando os argumentos de nada valem.
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