Das suas mãos saem obras de arte. Únicas e exclusivas. Sim, ainda há
alfaiates
Começou por
ser um ofício “desprezado”. Hoje é um luxo ao alcance de poucos. Ainda riscam,
cortam, cosem e passam a ferro em oficinas que têm ar de museu. Os alfaiates
tradicionais contam-se pelos dedos das mãos e estão perto de encostar as
tesouras. Não há quem lhes queira suceder.
CRISTIANA
FARIA MOREIRA e ANDRÉ VIEIRA 6 de Novembro de 2017, 8:34
Quando
Augusto Saldanha chega ao Porto, ainda na década de 60 do século passado, em
ruas como Santa Catarina, 31 de Janeiro ou Sá da Bandeira havia uma alfaiataria
“porta sim porta não”. Saiu de Freixo de Espada à Cinta com 14 anos rumo à
cidade grande para dar continuidade ao processo de aprendizagem da arte,
iniciado dois anos antes, para trabalhar com alguns dos grandes mestres do
corte e costura de fatos por medida. Trabalhou e aprendeu com os melhores até
se estabelecer por conta própria em 1976 no prédio com a entrada número 1 da
rua Trindade Coelho, na passagem que une as Flores à Mouzinho da Silveira, onde
ainda exerce a actividade.
Hoje, aos
66 anos, é um dos poucos artistas que ainda teima em não fechar a caixa de
costura para desistir de uma arte que diz ter espaço para mais concorrência. Há
mercado, mas diz faltarem novos profissionais formados de acordo com os
princípios básicos da alfaiataria para que esta actividade se renove e não se
extinga. No Porto, chegam os dedos de duas mãos para contar os que ainda seguem
os processos tradicionais desta actividade que precisa de sangue novo. Na
capital o cenário é idêntico.
É lá que
está Joaquim Barbosa. Diz estar cansado, mas nem por isso deixa de chegar todos
os dias às 9h da manhã ao ateliê que tem na Avenida Infante Santo há 53 anos.
"Queria descansar um bocadinho. Tenho mais trabalho do que aquilo que me
apetece fazer. Hoje tenho um cliente às seis e meia. Vai dar até às oito
de certeza".
Trabalha desde os 11 anos num ofício que exige anos de
labuta para escalar na hierarquia e chegar à quase perfeição que é exigida de
um bom mestre alfaiate.
Quando
procuramos contar as histórias de quem dedicou uma vida inteira ao corte e à
costura, os protagonistas tendem a repetir-se. São poucos, cada vez menos, e
não têm a quem ensinar a “arte” que uma nova geração tenta reproduzir. No mundo
da moda por medida, a tradição foge cada vez mais àquilo que era.
De ajudante
a contramestre
Aos 82 anos
continua a dedicar a vida a tornar os outros mais elegantes. Começou aos 11
anos, no Alentejo, perto de Mora. Acabou a 4ª classe e começou a aprender a
profissão à luz do petróleo. Herdou os ensinamentos do pai que o pôs, primeiro,
a tratar dos ferros que funcionavam a carvão. Porque aqui também se começa por
baixo há uma hierarquia a respeitar. De ajudante, meio-oficial, oficial,
ajudante de mestre, mestre, até chegar a contramestre, a mais alta das patentes
que os mais de 70 anos de ofício há muito lhe conferiram.
Trabalhou
em terras alentejanas até ir para a tropa. Depois seguiu para Lisboa e por ali
ficou. Trabalhou em várias oficinas, fez um curso de corte na Academia
Maguidal, “que ainda hoje existe mas não tem alunos”. Um dia cansou-se
da tacanhez de um dos patrões. “Ele
queria facturar e eu queria ser bonzinho”, conta.
Montou a
própria casa aos 29, ali mesmo no 345 da Infante Santo onde ainda se mantém. Hoje,
tem ar de museu, fotografias nas paredes e prateleiras com os melhores tecidos.
Os clientes
foram-lhe aparecendo, “uns mandavam os outros”. Durante a conversa, levanta-se
e procura nas gavetas as velhas fotografias que lhe recordam as mais de sete
décadas de ofício. Mostra uma fotografia onde está a atender um cliente
israelita com 2,04 metros. “Tive que me pôr em cima de um banco”, diz do alto
do seu metro e oitenta. É também por isso que muitos recorrem ao alfaiate hoje
em dia. Porque têm medidas fora do que o padronizado pronto-a-vestir oferece ou
porque podem pagar milhares de euros por uma "obra de arte" que lhes
assenta no corpo como uma luva.
Nas mãos de
Joaquim, e da sua equipa, um fato demora cerca de 60 horas a fazer. E o que é
que é preciso para entregar um fato de excelência? "Que o cliente
goste", atira. Alfaiate não gosta de revelar os preços. "Varia
consoante a fazenda", diz.
Já passaram
por ali grandes representantes das elites políticas e económicas nacionais e
internacionais. Já viu os seus finos fatos em casamentos reais. Não gosta de
dizer nomes. Gosta da discrição. Assim se manteve sempre. Mas há uma família
que faz questão de referir. É o da família Pereira Coutinho que lhe
"salvou a casa da falência" a seguir ao 25 de Abril.
Já lhes
passaram pelas mãos pelo menos três gerações. Hoje, Joaquim Barbosa diz que
veste dos 18 aos 95 anos. “Alguns clientes têm a mania de o primeiro fato dos
filhos ser feito por mim”, conta Joaquim.
Mais a
norte, no Porto, Augusto Saldanha, alfaiate de Paulo Portas e outras figuras
“de relevo” também prefere manter o anonimato dos clientes. Só fala do antigo
líder do CDS/PP porque o próprio o tornou público.
Numa manhã
de um dia da semana, divide o espaço do ateliê onde põe mãos à obra com mais
uma costureira com quem trabalha. É uma de duas funcionárias da equipa que
colabora com o mestre. Noutros tempos eram cinco.
Ao som da
música que toca no rádio, de fato e gravata, dedal no dedo e fita métrica ao
pescoço, passa a ferro parte de uma peça ainda em construção. Para maior
conforto tira apenas o casaco. É assim que todos as manhãs se apresenta ao
serviço até horas incertas da noite, que acaba quando o serviço o permite.
Gosta de estar bem vestido porque é lá que também recebe os clientes:
maioritariamente “gente nova”. “São eles que trazem os pais. No outro dia tive
aqui três gerações a fazer uma prova: avô, filho e neto”, conta. Bem-disposto e
com piada pronta na ponta da língua recebe-nos para falar sobre a arte que
conhece “desde sempre”. O dia é atarefado, mas conversar faz também parte do
trabalho e esse é feito maioritariamente com as mãos.
"No
outro dia tive aqui três gerações a fazer uma prova: avô, filho e neto”
Augusto
Saldanha
É no ateliê
onde tudo começa e tudo acaba. É lá que o cliente escolhe o tecido, onde se
define o desenho do fato, tira-se as medidas, faz-se o corte e se executa a
peça. Esta é condição sine qua non para definir o que é trabalho de alfaiataria
ou não. “O processo começa e acaba aqui. Fazer à medida há muito quem faça, mas
depois as peças são enviadas para fábricas. Aqui é trabalho de artesão. É loja
e fábrica ao mesmo tempo“, afirma. É assim no Saldanha e em qualquer outro
alfaiate tradicional. Se a peça segue para uma confecção, já a considera outra
“coisa qualquer” menos alfaiataria. No limite chama-lhe alfaiataria industrial,
o que diz não ser a mesma coisa.
A sala de
provas é como um confessionário
Como o
colega de Lisboa e todos os outros alfaiates tradicionais, aprendeu esta arte
com os mestres mais antigos. Passou por todas as etapas necessárias até chegar
ao topo. “Comecei como aprendiz sem receber dinheiro até chegar a mestre. À
medida que se ia subindo de categoria ia também subindo o ordenado”, recorda.
Aos 12 anos,
ainda em Trás-os-Montes, dá os primeiros passos, sem qualquer tradição familiar
na alfaiataria. O mesmo destino escolheu um irmão que ainda hoje também
continua com ateliê aberto na rua 31 de janeiro, no Porto. É na capital do
Norte que se faz artista. “Passei por muitos mestres, mas um dos que mais me
marcou foi o Albino Correia Martins, da Alfaiataria Real”, conta.
Começa por
trabalhar para todo o “tipo de clientes” numa altura em que “não havia outra
alternativa” para quem quisesse comprar um fato. Nas principais ruas comerciais
do Porto não faltava concorrência. É depois do 25 de Abril que há uma mudança.
“Muitos
colegas foram trabalhar para fábricas”, diz que procuravam empregos mais
estáveis. “Na altura recebíamos à semana. Nas fábricas já se recebia ao mês e
melhor”, lembra. Aparece o pronto-a-vestir e muitas alfaiatarias fecham.
Augusto Saldanha optou por continuar. Depois de cumprir o serviço militar, que
o cumpriu na especialidade de alfaiate, volta ao Porto com um propósito
definido: estabelecer-se.
Hoje, em
Santa Catarina, 31 de Janeiro ou Sá da Bandeira as alfaiatarias deram lugar a
outro tipo de comércio. Não é por isso que se arrepende da decisão que tomou há
mais de 40 anos. “Há cerca de 20 anos trabalho para um público mais
seleccionado que procura peças exclusivas”, afirma. É uma selecção que não é
feita pelo mestre.
Naturalmente
a carteira de clientes fiéis, faz-se através do “passa a palavra”. Não se
queixa de falta de trabalho. “Fui-me adaptando aos tempos, mas não tenho uma
presença forte na Internet. A verdade é que não preciso de publicidade”, diz.
“Também não quero tornar a minha obra corriqueira. Quero manter a
exclusividade”, sublinha.
O que mais
gosta é de fazer fraques e tem orgulho nos forros que usa nos casacos: “Estão
escondidos, mas é o que dá a alegria a um fato”. Depois da obra feita dá-lhe
“um certo gozo” ver as peças serem usadas nalgumas cerimónias públicas. Porém,
é só uma questão de vaidade. “Sou vaidoso, mas não meto gasolina no carro nem
pago o metro de tecido com a vaidade”, sublinha.
O recato do
gabinete de prova permitia que fosse como "um confessionário", diz
João Ribeiro. Até quando os clientes iam provar os fatos com as amantes.
Antigamente
havia uma cultura, um quase "ritual" de ir ao alfaiate, contam. Por
isso, o contacto com o cliente é quase tão importante como a perícia do corte e
cose. Iam para serem vistos ou para verem pessoas. Criavam-se amizades,
conhecimentos, até negócios na sala de espera do alfaiate.
“Lembro-me
de ter uma sala às vezes com dois, três, clientes à espera para provar. Antes
até havia clientes que perguntavam quando é que o administrador de tal banco ou
o político x ia provar o fato para terem a oportunidade de se encontrarem com
eles”, conta Fernando Silva, o gerente da J. Gomes dos Santos.
O recato do
gabinete de prova permitia que fosse como "um confessionário", diz
João Ribeiro. Até quando os clientes iam provar os fatos com as amantes.
"Não era de bom tom vestir bem"
Como diz Saldanha, o 25 de Abril foi “um problema” para o
negócio, corrobora João Ribeiro, 68 anos, da Alfaiataria Piccadilly, em Lisboa.
“N alfaiates desapareceram
nessa altura. Não era de bom tom vestir bem”, diz o alfaiate que tirava as
medidas a Mário Soares enquanto esteve na Presidência. Os que podiam pagar
saíram do país.
Algumas
casas trataram de se reinventar e tiveram o “bom senso” de começar a vender
pronto-a-vestir. Foi o que aconteceu na alfaiataria onde trabalhava
praticamente desde que foi morar para a capital com 15 anos, depois de ter
aprendido “o ABC” da arte com o tio, aos 11 anos, quando saiu da escola, em
terras alentejanas de Avis.
Nessa
altura estava sozinho em Lisboa, apeteceu-lhe desistir, mas resistiu. Trabalhou
na mesma casa durante 29 anos. Pelo meio, não escapou à guerra. Foi para
Angola, regressou à mesma casa até sair para pegar na Loureiro & Nogueira,
na rua de Santa Justa, onde ficou até comprar a histórica Piccadilly há seis
anos. O edifício da rua Garret foi vendido, mas manteve-se nas oficinas, onde
trabalha hoje entre manequins vestidos com casacos, calças, sobretudos à espera
que os donos os venham provar.
Com a
transferência de muitos alfaiates para fábricas, perde-se “uma escola de
alfaiataria”. “Nós começamos a aprender tudo. A pessoa da fábrica não sabe
fazer nada”, diz Manuel Cadete, 70 anos, há 45 anos alfaiate da J. Gomes dos
Santos, casa que se instalou em Lisboa, em 1926, na Praça dos Restauradores, e
que já vestiu o rei de Espanha Juan Carlos, o príncipe Rainier do Mónaco,
primeiros-ministros e presidentes da República dos PALOP e do Brasil. António
de Oliveira Salazar também foi cliente. Há dois anos passou para rua Conde do
Redondo por causa do aumento das rendas. Menos visível, a casa voltou a
dedicar-se quase em exclusivo à alfaiataria, depois de no pós 25 de Abril ter
apostado no pronto-a-vestir para conseguir sobreviver. Tal como os colegas de
ofício, começou cedo a aprender arte, logo quando saiu da escola. Tem um irmão
que lhe seguiu os passos. Agora, lamenta, há cada vez menos mestres para
ensinar.
Não há bons
alfaiates sem boas costureiras
Já
costuraram para mulheres, mas preferem as medidas do homem já que as senhoras
têm “medidas diferentes” que obrigam a mais cortes. Além disso, é preciso ter
cuidado onde se toca, diz Joaquim Barbosa. “E são as mulheres e as filhas dos
meus clientes e eu tenho muito respeito”.
Mal tinha
aberto casa ali na Infante Santo teve o desafio de vestir as enfermeiras da
Cruz Vermelha por ocasião do centenário da instituição. “Um tailleur com uma
saia cinzenta, com um macho atrás. Foi uma barafunda. Trabalhamos aqui dia e
noite”, recorda o alfaiate.
Hoje, longe
do fulgor de outros tempos, ainda se atende alguns clientes mais antigos. Na
oficina de Joaquim chegaram a trabalhar 28 pessoas. Hoje, trabalha o alfaiate e
mais duas costureiras, uma que o acompanha há 53 anos. “Tem umas mãos”,
exclama.
Antigamente
“era tudo feito à mão, só com uma máquina de coser a direito, com ferros a
carvão”. Hoje há máquinas para ajudar, mas o processo continua manual. Afinal,
não há bons alfaiates sem boas costureiras. A falta delas é que é mesmo “o
grande mal”, aponta João Ribeiro. Consigo tem a trabalhar três costureiras
especializadas. Duas estão reformadas – algo comum noutras alfaiatarias - e
trabalham o dia inteiro sentadas num banco e curvadas a pontear. “Vai
mesmo acabar. E nem lhe dou dez anos”, vaticina.
Falta
formação adequada
Antigamente
era vergonha ser-se alfaiate. Era um trabalho mal pago e mal visto. “Dizia-se
na minha terra que sapateiros e alfaiates eram a última carta do baralho”, diz
Joaquim Barbosa. João Ribeiro recorda que se dizia que ia para alfaiate quem
era coxo. Ri-se. Não é o seu caso, mas reconhece que era uma profissão
“desprezada”. Hoje é um luxo porque é também cada vez mais rara.
Para Vítor
Gonçalves, alfaiate há 48 anos, há lacunas para corrigir no âmbito da formação.
Terceira geração de uma família de alfaiates considera fundamental formar novos
profissionais. “Da mesma forma que existe formação para carpinteiros por que
motivo não existe também para alfaiates?”, questiona. “Estão à espera que os
antigos morram?”, lança outra pergunta.
Com 59
anos, começou a dar os primeiros passos com 10, 11 anos. Era um “menino
rebelde” que foi sendo puxado pelo pai para o ateliê que existia ao lado do
sítio onde tem o que actualmente mantém aberto, no 36 da Rua Galerias de Paris,
no Porto. Na mesma rua existiam quatro. Hoje só lá está o de Vítor Gonçalves,
que apesar de filho de alfaiate foi com outros mestres da mesma geração do pai
que foi aprimorando a arte.
Na
impossibilidade de se poder passar os conhecimentos às novas gerações da mesma
forma que era feito quando começou, seria a sala de aula a melhor solução. “A
escolaridade obrigatória termina mais tarde, e ainda bem, por isso já não é
praticável seguir o mesmo processo de antigamente”, nota.
Já teve
alguns estagiários no ateliê que acabam por condicionar o rendimento por não
terem a formação adequada. Contudo, há quem tenha mostrado algum potencial.
Fora de questão está contar com alguém que trabalhe a custo zero no processo de
aprendizagem, algo que “por princípio” é contra.
Face às
mudanças de paradigma na entrada para esta actividade que tinha os primeiros
aprendizes a darem os primeiros passos nos ateliês numa idade muito jovem,
seria responsabilidade dos centros de formação da especialidade substituir o
trabalho anteriormente feito pelos mestres mais antigos. Contudo, a “pouca”
oferta que existe, considera não responder às necessidades do mercado. “Não
posso aceitar mais trabalho porque não tenho como dar resposta a novos pedidos.
Há escassez de alfaiates e de costureiras. Das escolas não chegam preparados”,
afirma, considerando que no mercado mais espaço há para novos alfaiates que
sigam os métodos tradicionais.
João
Ribeiro tem um aprendiz que é Engenheiro do Ambiente, com “trinta e tal anos”
que lá aparece aos sábados. “Tem algum jeito, mas isto é difícil de aprender”.
O ideal, aponta, é começar aos 16, 17 anos para ter tempo de se tornar num bom
profissional.
E não é que
não existam profissionais mais recentes que façam fatos por medida, mas “são
executados a partir de um molde com recurso a maquinaria avançada”.
Tradicionalmente, o processo tem que ser artesanal: “Não há um corpo igual ao
outro. As fábricas nunca vão conseguir resolver a questão das proporções”.
Actualmente,
na cidade, diz não existirem mais do que uma dezena de profissionais que
obedeçam a essas regras. O mesmo acontece em Lisboa. De cabeça lembra-se de
Augusto Saldanha e do irmão António Saldanha, Carlos Sousa que trabalha na
Boavista, António Fonseca, na rua de São Brás, e mais recentemente, de Ayres
Gonçalo, neto de Ayres Carneiro da Silva, a “sumidade” por trás da extinta
Ayres Alta Costura, na Gonçalo Cristóvão. Há ainda o Atelier des Créateurs, na
rua José Falcão.
Na Modatex
– Centro de Formação Profissional da Indústria Têxtil, Vestuário, Confecção e
Lanifícios, com sede no Porto e com delegações por todo o país, há um curso
específico de alfaiataria.
A formação
mais recente realizada no Porto, de acordo com dados do centro, foi concluída
por 35 formandos, sendo que a taxa de inserção profissional é de 60% à saída da
formação. Em Lisboa, neste momento decorre uma formação modular composta por 30
formandos. “A pedido de empresas”, estão ainda a ser realizadas formações em
alfaiataria nas próprias instalações de várias empresas, frequentadas em
horário laboral por 25 formandos.
Diz a
directora da Modatex, Sónia Pinto, que a formação é mais orientada para uma
componente industrial. No entanto, diz, quem frequentar os cursos sairá com
bases de alfaiataria tradicional. Num mercado, que diz ter potencial, apesar de
uma procura ainda escassa de novos alunos, entende ser necessária a adaptação
às exigências dos tempos que correm. Sendo que os empregadores passam sobretudo
pelo sector industrial, é esse o foco dado pelo centro. Para Vítor Gonçalves
não chega.
De avô para
neto
Da nova
geração de alfaiates tradicionais portuenses faz parte Ayres Gonçalves, com 36
anos. É neto de Ayres Carneiro da Silva, da antiga Ayres Alta Costura, que aos
88 anos já não exerce a profissão. Foi com o avô que aprendeu a apaixonar-se
pela arte da alfaiataria tradicional. “Andava no infantário duas ou três portas
ao lado da loja do meu avô. A minha mãe trabalhava lá e funcionava quase como
um ponto de encontro da família. Era para lá que ia quando saía do infantário”,
recorda. É nessa altura que começa a criar uma relação com “os trapos”.
Desde cedo
acompanhava o avô nas provas e nas visitas aos clientes. Começa a ajudá-lo
depois das aulas e aos fins-de-semana, altura que Ayres da Silva escolhia para
fazer os cortes, quando havia mais “paz e silêncio”. “Não podia sequer falar
com ele porque é uma fase que exige muita concentração”, conta. Aí já sentia
que esta podia ser a via a seguir no futuro.
Aprendeu “à
moda antiga” com o avô. Ainda “pequeno” já fazia alguns cortes e cosia. Aos 18
anos, completamente decidido relativamente ao caminho que iria seguir decide
“fugir” de um “ambiente protegido” para deixar de ser “o neto do patrão” e
viaja para conhecer a alfaiataria internacional e para se especializar.
Em Portugal
não havia cursos “à excepção de um em Lisboa que estava a terminar” e por isso
segue para Espanha para aprender com Pedro Muñoz, “o maior alfaiate de Madrid”.
Acabado o curso, com 23 anos, tem a oportunidade para se mudar para Londres
para trabalhar em Savile Row, a “meca dos alfaiates”. “Durante meses andei a
sonhar. Não queria acreditar que estava ali a trabalhar”, diz. Lá, chegou a
fazer um fato para o príncipe Carlos.
Passa ainda
por Nova Iorque e regressa ao Porto em 2011 por uma questão afectiva e por “num
mercado global e cada vez mais próximo” ser possível trabalhar para o mundo
inteiro a partir de “qualquer lado”. É nesse ano que abre o ateliê no 22 da
Praça Dona Filipa de Lencastre. Tem outro em Lisboa.
Regressa
numa altura em que a alfaiataria está em “declínio”, para em anos seguintes
assistir a um período de ressurgimento, mas de uma “alfaiataria industrial”,
que diz não considerar como tal. “A alfaiataria é artesanal”, sublinha. Diz que
no Porto e em Portugal é dos poucos da nova geração de alfaiates a trabalhar de
acordo com o método tradicional. À imagem do que foi dito pelos outros
alfaiates com quem falamos, diz-nos existir espaço para mais profissionais, que
só não existem “porque não há formação”. “Há clientela, mas não há oferta. Este
é um emprego com taxa de desemprego zero”, sublinha.
Actualmente,
80% dos clientes são internacionais. Outra parte representativa de clientes são
familiares, “alguns netos”, de clientes do avô. No mesmo dia, passou no ateliê
de Ayres Gonçalo um neto de um cliente de Ayres da Silva.
O alfaiate
mais antigo do Porto
Ayres da
Silva será o mais antigo alfaiate vivo do Porto. Já há muito que se reformou,
mas um “alfaiate é alfaiate para vida toda”. É o próprio que nos diz. No dia em
que fomos conhecer o ateliê do neto também lá estava. Passou por lá para ajudar
o neto a “resolver um problema” com o fato de um cliente. Aos 88 anos
recorda-nos os tempos áureos da alfaiataria portuense, antes das ruas da cidade
se abrirem ao mercado internacional do pronto-a-vestir. Perguntamos se os
homens se vestiam melhor dantes ou agora. Antes de abrir a boca, a expressão da
cara deixa transparecer a resposta.
Serviços
que vão além da fita métrica
“Nunca
vamos conseguir substituir o alfaiate. Alfaiataria é tudo o que é feito por um
alfaiate, que é feito à mão, que é uma obra de arte”. A frase é de Duarte Foro,
26 anos, um dos fundadores da marca Alphaiate, com Francisco Appleton, 27 anos,
e Sofia Marques da Costa, 23, que se propõe a fazer fatos por medida.
Poder-se-ia dizer que são uma espécie de “alfaiataria moderna”, das que sabe
tirar as medidas, mas deixa a confecção para os ateliês industriais.
Conta que a
ideia surgiu por “brincadeira” há uns três anos, quando se lembrou de mandar
fazer um fato à medida para ir a um casamento. Uma azul majorelle que fez
sucesso e que lhe pôs na cabeça a ideia de criar “uma marca de fatos à medida”.
Hoje, Duarte diz que detesta o fato, mas a ideia de criar um negócio ganhou
forma e está a consolidar-se: chegaram à meta dos 50 fatos encomendados por
mês.
Mesmo
depois de terem aberto em Março de 2015, com o foco numa plataforma
tecnológica, que seria o core do negócio, onde o cliente escolheria, a partir
de um modelo 3D do fato ou camisa, o tecido, forro, colarinhos e botões. Mas
depressa perceberam que este era um negócio em que as pessoas “gostam de ver,
de tocar, de falar. Ninguém compra um fato por medida pela Internet”, diz o
fundador da Alphaiate.
Chegaram ,
por isso, a um modelo “semi-tradicional, meio alfaiate, meio made to measure”,
que tem como objectivo substituir todas as colas, para passar a ser tudo cosido
nas peças que comercializam.
“Eu nunca
posso dizer que sou concorrente de um alfaiate. São artistas, fazem obras de
arte que valem todos os cêntimos”, defende-se Duarte.
Um fato
vegan
São
negócios que surgem ligados à alfaiataria, e ao que se quer cada vez mais feito
à imagem de cada um, de quem não tem um passado ligado à arte, mas que viu nela
o potencial de criar um negócio. Como Paulo Pinho quando, também há três anos,
fundou a UOY (sigla de Uncover the Original You - “Descobre o teu eu original”,
em português). Num espaço na Embaixada Shopping Gallery, no Príncipe Real, onde
dois personal tailors (alfaiates pessoais) aconselham o cliente que tem nas
mãos a construção do próprio fato: tecidos, botões, linhas, forros.
E que se
quer aproveitar da “confecção com qualidade” que existe no país e da
“existência de um conjunto de pessoas que é obrigada a andar com esta
indumentária, de fato e gravata, todo o dia”, diz Miguel Paté, o responsável de
marketing, função que estas novas alfaiatarias já têm.
“O tipo de
fatos que há no ready-to-wear (pronto-a-vestir) não permite que cada pessoa se
afirme individualmente. Acabam quase todos a andar com o mesmo uniforme”, diz
Miguel.
Trabalham
para clientes formais, aos mais “dandies”, pais e filhos, de todas as faixas
etárias, para noivos que pedem para gravar frases para as noivas ou que pedem
fatos cor-de-laranja. “O que diferencia aqui são os tecidos, entretelas
naturais, semi-cosidas”, diz Maria Vaz, 49 anos, a personal tailor de serviço.
Parte do
trabalho de alfaiataria é feita em fábrica. “Tivemos um bocadinho de
dificuldade me arranjar alfaiates. Tem que ser uma pessoa que saiba, que
trabalhe bem”, conta a personal tailor. A produção é toda feita em Portugal, no
norte do país.
Neste
momento, a UOY dedica-se à roupa masculina, mas está em cima da mesa a
confecção de vestuário para mulheres. Além de que, gradualmente são já
incluídos produtos pronto-a-vestir (camisas, gravatas, casacos, coletes, calças,
sapatos), próprias ou em parceria com outras marcas.
Ao serviço
por medida, estas duas marcas quiseram aliar a consultoria de imagem. Acabam
por ajudar o cliente a escolher a gravata ou os sapatos. A ideia é “encaixar no
corpo e na mente do cliente”, diz Duarte. Para isso deslocam-se a casa ou ao
escritório dos clientes. Têm clientes que trabalham fora do país, clientes que
não gostam de perder muito tempo que por vezes mandam fazer dois e três fatos
por vez. Um fato demora cerca de um mês a estar pronto.
Na
Alphaiate, há fatos a partir dos 400 euros. Na UOY, começa nos 499 e pode ir
aos milhares de euros. Tudo depende do tecido, claro está. “O cliente vem aqui
e compra o que puder”, diz Maria.
A
personalização pode ir até à natureza da própria natureza dos tecidos. Por
exemplo, fazer um fato vegan, sem tecidos que provenham de animais.
São
negócios que querem aliar a tradição à modernidade, a partir da figura icónica
do alfaiate e que estão online para oferecer a ideia que qualquer produto está
acessível para ser especialmente feito à imagem de cada um.
“Os homens
agora não se sabem vestir”, assegura. Pelo menos a maior parte.
Conta que
muitas personalidades conhecidas foram vestidas por ele. Recorda José Maria
Pedroto, antigo treinador do Futebol Clube do Porto e diz ter feito o “último
fato de Salazar”. No balcão do neto está uma tesoura que pertence a um conjunto
que comprou a um alfaiate mais antigo do que o próprio e que agora pertencem a
Ayres Gonçalo. “Esta tesoura já cortou tecidos para fazer fatos para o Rei D.
Carlos”.
E preços?
Alfaiate que se preza não os revela. No entanto, na Piccadilly e na J. Gomes
dos Santos, um fato custa, no mínimo, 1500 euros, mas pode ir aos milhares. Mas
são fatos que, se bem estimados, duram uma vida, diz João Ribeiro.
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