DEMOCRACIA
A
globalização entre a espada e a parede
Após 30
anos de avisos, os custos da globalização começam a causar danos no Ocidente. O
comércio livre tornou o mundo mais rico, mas também mais desigual e o “Brexit”,
a eleição de Trump ou o avanço da extrema-direita entraram na folha de cálculo
dos seus impactes.
MANUEL CARVALHO (em Turim)
19 de Novembro de 2017
Para falar
do estado do mundo na era da globalização, Marion Jansen vira o olhar para O
Grito, um quadro pintado pelo norueguês Edvard Munch em 1883. Essa imagem, com
uma pessoa disforme a transmitir desespero num cenário tortuoso e angustiante,
é para a economista-chefe do Centro Internacional do Comércio com sede em
Genebra (e uma das mais reputadas especialistas mundiais nesta área) a chave
para o entendimento do actual estado da arte de um dos mais difíceis e
perturbadores fenómenos do mundo contemporâneo: a globalização. Nesse quadro,
“nós vemos o grito, mas não o ouvimos”, diz Marion Jansen. É exactamente o que
acontece hoje na Europa ou nos Estados Unidos, “com as pessoas a dizerem-nos que
há muitas coisas erradas com a globalização”, sem que no entanto haja quem seja
capaz de as ouvir e de dar respostas às suas ansiedades e ainda menos às suas
expectativas. Foi esse desencontro que alimentou uma boa parte das causas do
“Brexit” ou da eleição de Donald Trump, que explica os avanços do nacionalismo
ou a expansão da extrema-direita.
Será a
globalização a principal ameaça das sociedades do Ocidente nos dias de hoje?
Estarão o comércio livre e a livre circulação de ideias e de capitais condenados
a ser derrotados pelas classes médias, pelos trabalhadores pouco qualificados
ou pela crescente massa de desempregados que domina a paisagem de algumas das
velhas regiões industriais das economias mais desenvolvidas? Será a democracia,
como expressão da vontade popular e das soberanias nacionais, capaz de moldar a
globalização e torná-la mais justa, solidária e inclusiva? Ou o mundo estará
condenado a regressar às teias do proteccionismo, das fronteiras invioláveis e
do isolacionismo? Para se perceber a dimensão destes problemas, para fazer a
ponte entre o antes e o depois da explosão do comércio mundial, é necessário
viajar no tempo e, como Marion Jansen faz, opor o quadro de Munch que simboliza
as ansiedades do presente à pintura de Normal Rockwell, que em 1943 nos
mostrava um casal da classe média americana a cobrir os seus filhos na hora de
dormir, e ao qual deu o sugestivo título Freedom From Fear (Livres do Medo).
Durante
dois dias, dezenas de especialistas de todo o mundo reuniram-se na terceira
edição do Vision Europe, em Turim, Itália, para discutir as causas que estão na
origem do caminho que retirou o Ocidente do seu espaço de previsibilidade e
garantias e o transformou num bloco assustado e receoso do seu futuro. Foram
convocados por uma rede de fundações e de centros de reflexão (think tanks)
europeus, onde entram instituições prestigiadas como a Chatham House do Reino
Unido, o Instituto Jacques Delors, o Bruegel, a fundação Bertelsmann ou a
Fundação Calouste Gulbenkian. O nome do encontro, “Globalização, Ganhadores e
Perdedores”, era em si mesmo um programa. Porque reconhecia a existência de um
fosso, de uma barreira, que separa não apenas os países ricos dos países
pobres, mas também os pobres e os ricos dos próprios países desenvolvidos.
Ganhar ou perder, diz Michael Spence, professor de Economia da Universidade de
Nova Iorque, depende cada vez mais “do lugar onde vives”. E não há lugar
algum onde não haja perdedores.
África, o grande perdedor
A
globalização é amada e odiada desde que acelerou a sua marcha por volta de
1990. A queda do muro de Berlim fez entrar no mercado mundial vários países até
então escondidos do outro lado da Cortina de Ferro. Depois das “Quatro
Modernizações” de Deng Xiaoping, em 1978, a China ensaiou os seus primeiros
passos na estratégia que em 2001 a levaria a integrar a Organização Mundial do
Comércio e, logo depois, em 2009, a converter-se na primeira potência
exportadora do mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, as teses liberalizantes
de Margareth Thatcher e de Ronald Reagan ganhavam adeptos. Um pouco por toda a
Ásia e na América Latina, os muros do proteccionismo começaram a ruir perante a
hegemonia de uma crença económica que propunha a prosperidade através da livre
circulação de bens, do aumento de investimentos e da desregulamentação dos
mercados. O mundo global apareceu nos seus tempos dourados como a receita
infalível para a integração e a criação de riqueza. Não parecia haver
alternativa à sua receita.
Vinte e
cinco ou 30 anos depois, o que é que o mundo ganhou ou perdeu? Numa visão
optimista, “todos os participantes na globalização ganharam”, diz Tiess
Peterson, consultor sénior da Fundação Bertelsmann, na Alemanha. E a verdade é
que a pobreza extrema, situada num limiar de rendimento abaixo dos 1,90 dólares
por pessoa/dia (1,6 euro), se reduziu drasticamente. Em 1990, havia 1850
milhões de pessoas (35% da população mundial) a viver abaixo desse limiar de
rendimento. Em 2013, e apesar do crescimento da população mundial, esse número
tinha-se reduzido para 767 milhões, ou seja, 10,7% do total. E quem mais
beneficiou com o crescimento económico provocado pela liberalização do comércio
e da circulação de capitais foi em primeiro lugar o Sudeste da Ásia. Se em 1990
quase 60% da sua população vivia na pobreza extrema, em 2013 apenas 3,5% dos
seus habitantes viviam essa condenação.
1850
milhões de pessoas
35% da
população mundial a viver abaixo do limiar de rendimento de 1,90 dólares
pessoa/dia. Em 2013, e apesar do crescimento da população mundial, esse número
tinha-se reduzido para 767 milhões
África,
como o resto do mundo, continuou a ser o continente perdido e incapaz de
acompanhar o rumo de países pobres como o Vietname ou a Birmânia. Na África
subsariana, 41% das pessoas continuam condenadas a viver com pouco mais de um
euro e meio por dia. Os africanos são, por isso, os grandes perdedores da
globalização. “Alguns países de África, como Angola, a Nigéria ou o Uganda
estão entre os que mais cresceram nos últimos anos em termos de Produto Interno
Bruto (PIB). Mas esse crescimento é baseado na venda de matérias-primas. Ora,
não podemos ter fé nas matérias-primas. São como o tempo. Hoje há sol, amanhã
não há”, lamenta Liepollo Lebohang Pheko, investigadora no Trade Collective,
África, uma organização sediada na África do Sul.
A
dependência das matérias-primas e o seu controlo pelas elites do poder
oligárquico acentuaram o drama primordial do continente: a corrupção e a
cleptocracia. Denis Mukwege, um médico do Congo várias vezes distinguido
internacionalmente (também pela Fundação Calouste Gulbenkian) pelo seu trabalho
na defesa das mulheres vítimas de violação, considera que a integração do seu
país nas rotas da globalização tornou ainda mais nítida a “diferença entre a
riqueza ostentadora dos líderes e a pobreza geral dos congoleses”. Para ele,
África perdeu o comboio da globalização porque “não há globalização positiva
sem a universalização dos direitos humanos”. Ora, o que o actual modelo
universalizou “foram fetiches como o PIB, a Organização Mundial do Comércio ou
os ‘modelos de negócio’”, diz Liepollo Lebohang Pheko. Não a transparência, o
Estado de direito e a democracia.
África
tornou-se assim o elo mais fraco de uma tendência geral de crescimento. Uma
espécie de alfobre onde a China foi buscar minérios ou a Europa petróleo para
satisfazer as necessidades das suas indústrias geradoras de valor acrescentado.
Num sistema de trocas onde a competição impede a existência de uma relação
equilibrada entre fracos e fortes, quem mais ganhou foram os países ricos. O
rendimento per capita dos cidadãos das economias avançadas aumentou 355% entre
1980 e 2015, de acordo com projecções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Mais do que o desempenho da África subsariana (227%) ou do que a América Latina
(238%), mas ainda assim menos do que a Europa de Leste (411%) e muito menos do
que o extremo da Ásia (1685%). No entanto, a realidade dos números é neste caso
enganadora. O rendimento médio, em dólares, de um europeu ou um norte-americano
ronda os 46 mil por ano; o de um asiático fica-se pelos 10 mil; e o de um
africano não passa dos 3800 dólares.
Injustiça e
iniquidade
Num mundo
fatiado que a globalização herdou e tratou de fatiar ainda mais, vale a pena
ver que nem todos os países do chamado “grupo das economias avançadas” (nas
quais Portugal se inclui) ganharam da mesma forma. A lógica dos mais fortes que
se aplica ao conjunto do mundo tem aqui também a sua expressão. Na Europa, a
vitória maior coube à Suíça ou à Alemanha. O rendimento per capita de cada
alemão em 2014 rondava 30.400 euros, e, desse valor, 1160 são ganhos
directamente atribuídos aos efeitos da liberalização do comércio mundial, de
acordo com o relatório anual sobre a globalização que a Fundação Bertelsmann
produz. Melhores resultados ainda foram conseguidos pelo Japão, a Suíça e a
Finlândia. E Portugal não fica mal na fotografia: no ranking da fundação para
os países que melhor se ajustaram às mudanças, subiu nove posições entre 1990 e
2014 (encontra-se no 11.º lugar numa lista de 42 países). A globalização terá
aumentado em 770 euros o rendimento de cada português (contra, por exemplo, 530
dos espanhóis ou 120 dos brasileiros).
Lendo estes
números que colocam a Europa e os Estados Unidos entre os ganhadores, custa a
perceber a razão pela qual a globalização é tão contestada e tão geradora de
movimentos sociais e políticos que chegam a pôr em causa os consensos
democráticos em vigor desde a II Guerra Mundial. É este o momento em que se
deve deixar de ver os seus impactes à escala dos continentes ou dos países para
os procurar dentro de cada país. “A maior parte das pessoas que vivem nos
países desenvolvidos não se considera uma perdedora absoluta, mas uma perdedora
relativa da globalização”, explica András Inotai, investigador da Academia das
Ciências da Hungria. “Eu, por exemplo, sou um perdedor relativo em comparação
com os banqueiros ou os gestores das grandes empresas”, acrescenta Inotai. Na
sua leitura do problema, há implícito o reconhecimento de que para os cidadãos
europeus ou americanos a globalização é uma fonte de injustiça e de
iniquidade.
A maior
parte das pessoas que vivem nos países desenvolvidos não se considera uma
perdedora absoluta, mas uma perdedora relativa da globalização”
András
Inotai, investigador
Os estudos
de sociólogos, economistas ou historiadores não desmentem essa ideia
profundamente radicada no senso comum. Mas antes de penalizar a classe média, a
livre circulação de dinheiro e de bens causou um profundo vazio nas zonas
industriais do Norte de Itália, nas cinturas operárias em torno de Bruxelas,
nas áreas mineiras do Nordeste da França, no Rust Belt norte-americano ou no universo
das pequenas fábricas do vale do Ave em Portugal. Sem barreiras alfandegárias a
impor a produção local nos países ricos, milhares de fábricas mudaram-se para a
China ou para outros destinos de mão-de-obra barata. Em 1990, os sete países
mais ricos (G7) produziam 65% de todos os produtos manufacturados do mundo; 20
anos depois, a sua quota baixara para 47% — e hoje será ainda muito menor. Como
consequência, milhões de cidadãos dos países ricos deixaram de ter lugar no
mercado de trabalho.
Vidas
congeladas
Mas, talvez
ainda mais importante do que a perda de emprego, o principal dano causado pela
globalização nos consensos do Ocidente se verifique na distribuição do
rendimento. Um artigo recente publicado pelo historiador Robert Allen na
revista Nature dá conta que o sistema de redistribuição da economia mundial
regressou ao padrão do início da Revolução Industrial, no princípio do século
XIX. Ao contrário do que se verificou entre 1850 e 1970, os ganhos económicos
estão cada vez mais concentrados nos mais ricos. Um relatório do Instituto
Mckinsey Global, de Julho de 2016, estudou o padrão dos rendimentos de 25
economias avançadas (entre as quais Portugal) e concluiu que entre 65 e 70% das
famílias tinham conservado ou perdido rendimentos entre 2014 e 2015. Ou seja,
havia entre 540 e 580 milhões de pessoas que tinham congelado as suas
expectativas de vida. Por contraponto, em 2013, havia 735 indivíduos com
patrimónios acima dos 2000 milhões de dólares que, em conjunto, controlavam 6%
da riqueza mundial.
32%
dos
americanos e 28% dos europeus acreditam que os seus filhos vão ter uma vida
melhor do que a deles
“Nós
vivemos dois problemas em simultâneo. Por um lado, assistimos a uma
distribuição desigual dos ganhos da globalização; por outro, assistimos a um longo
período sem respostas das elites, o que levou as pessoas a acreditar que o
sistema não reage”, nota Michael Spence. Essa combinação expressa-se em
descrença — só 32% dos americanos e 28% dos europeus acreditam que os seus
filhos vão ter uma vida melhor do que a deles. E essa descrença acaba por gerar
pontas de ressentimento que começaram a contaminar a democracia. Hoje há um
consenso na ciência política de que a desilusão impulsionada pelo modelo
económico da globalização está na origem da eleição de Donald Trump, do
“Brexit” ou do avanço da extrema-direita na Alemanha — aliás, as zonas onde
partidos anti-sistema como a Alternativa para a Alemanha (AfD) obtiveram
votações mais altas são as que acusam de forma mais intensa os impactes
negativos da globalização.
“Precisamos
de uma chamada de despertar. A Europa está sob ameaça e não podemos arriscar
tudo aquilo pelo qual a minha geração tanto lutou”, diz João Vale de Almeida,
embaixador da União Europeia nas Nações Unidas. O problema é como acabar “com o
mundo de medos em que vivemos”, nota Marion Jansen. “Não há problema mais
discutido em Bruxelas nos últimos tempos: a pergunta insistente é saber como
poderemos moldar a globalização”, reconhece Joost Korte, subdirector da
Direcção-Geral do Comércio da União Europeia. A globalização foi um nó que foi
atando os diferentes países do mundo numa única rede, e agora é difícil mexer
nessa rede. Não havendo quem defenda a necessidade de voltar a erguer barreiras
proteccionistas, porque, como András Inotai nota, “o proteccionismo e o
nacionalismo podem-nos levar a uma catástrofe como a da II Guerra Mundial”, a
questão é saber como é que a globalização se pode tornar mais inclusiva, mais
solidária e mais próxima do afecto dos cidadãos.
Arquipélago
com ilhas isoladas
“Nada é
inelutável”, diz Stefano Sacchi, académico e presidente do Instituto Nacional
para as Políticas Públicas de Itália, “nós podemos mudar o curso da
globalização”. Mas há indicadores que mosram que, em vez da mudança, o que está
a acontecer é um recuo. Depois da bancarrota do banco Lehmann Brothers, os
governos nacionais começaram a suspeitar da bondade imaculada da liberdade de
circulação de bens e capitais e desataram a erguer barreiras proteccionistas.
“Entre o final de 2015 e o final de 2016, a Organização Mundial do Comércio
registou 1538 medidas proteccionistas”, nota Linda Zeilina, do programa
Re-Define, no Reino Unido. O comércio mundial que até 2008 cresceu a um ritmo
de 6% ao ano, recuou para 1,6% no ano passado — em 2017 pode ficar acima dos
3%. E a Organização Mundial do Comércio tornou-se o bode expiatório de
discursos nacionalistas e proteccionistas como os de Donald Trump ou dos
líderes da extrema-direita europeia.
Com tantas
pressões de todos os lados, “a OMC tornou-se uma das perdedoras da
globalização”, ironiza Karl Brane, vice-presidente da organização. “A OMC é o
espelho dos seus membros, e os seus membros estão divididos. Não é só nos
Estados Unidos que há o discurso do ‘America First’. São todos os países a
querer colocar-se nessa posição”, acrescenta. Tão divididos que a instituição
que nas últimas décadas foi o palco onde se dirimiam conflitos e se articulavam
rondas negociais que foram desmantelando as barreiras ao livre comércio “corre
hoje o risco de se tornar disfuncional”. Porque, por um lado, os diferentes
países têm apostado na criação de novas taxas alfandegárias ou em outras
barreiras comerciais. E, por outro, em vez das negociações multilaterais, a
nova moda passa por acordos bilaterais. “Não é o aprofundamento da globalização
que hoje está em causa: é a globalização em si mesma”, diz Mario Deaglio,
professor emérito de Economia Internacional na Universidade de Turim. “Vamos
regressar a tempos antigos? Não. Vamos é ter um arquipélago com várias ilhas
isoladas entre si”, acredita este especialista.
Não é o
aprofundamento da globalização que hoje está em causa: é a globalização em si
mesma. Vamos regressar a tempos antigos? Não. Vamos é ter um arquipélago com
várias ilhas isoladas entre si”
Mario
Deaglio, professor Economia Internacional
Pressionados
pelo pavor de um mundo proteccionista que ameaçaria a economia mundial e
obrigados a responder às pressões políticas internas que põem em causa os
resultados do actual modelo de globalização, os países democráticos hesitam
sobre o que fazer. As posições defensivas instalaram-se até nas mais altas
instâncias da União Europeia. “Não somos proteccionistas, mas temos de nos
defender”, diz Joost Korte, que a propósito cita a vigilância sobre investimentos,
principalmente de origem chinesa, “em infra-estruturas estratégicas”. Porque a
verdade é que “há dois elefantes na sala” a perturbar a ideia de que tudo pode
continuar como antes: Donald Trump e o “Brexit”, nota o vice-director-geral do
Comércio da Comissão Europeia.
Em 2009 a
China tornou-se na primeira potência exportadora do mundo
Experiência
do “rendimento básico”
Para alguns
especialistas, os Estados-providência europeus terão de se armar para responder
às necessidades dos perdedores da globalização. Os finlandeses estão na
vanguarda, com a experiência do “rendimento básico” que garante uma forma de
vida sustentada para todos os cidadãos. Há quem considere até ser necessário
integrar o ataque ao problema numa escala europeia, propondo inclusivamente uma
União Social europeia através da junção de todos os Estados-providência. Outros
afirmam ser necessário reforçar o Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização,
criado em 2007, mas que até agora se limita a libertar cerca de 40 milhões de
euros por ano para sectores ou regiões penalizadas pela concorrência dos países
com baixos salários. Ainda assim, o esforço europeu na protecção social é
exemplar em termos mundiais e há quem duvide da sua capacidade para se
expandir. Como recordou Paulo Sande, da Universidade Católica, “a Europa tem 7%
da população mundial e é responsável por 51% dos gastos mundiais em protecção
social”.
Há, também
por isso, quem considere necessário ter uma atitude mais ofensiva perante os
problemas da concorrência internacional. Para os que se situam neste lado da
barricada, as palavras do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, que um dia
disse que ser contra a globalização era como estar “contra as leis da
gravidade”, devem ser levadas a sério. Parar o processo na Europa, quando a
indústria alemã necessita de manter os mercados para os seus equipamentos de
ponta, ou nos Estados Unidos, onde a General Motors vende menos carros do que
na China, seria um erro devastador. O melhor, por isso, é “ajudar as pessoas a
mudar e a adaptar-se a essas mudanças”, como diz Peter H. Chase, um americano
da German Marshall Fund. “Fala-se muito de compensação, mas muito pouco sobre
competitividade, inovação e mudanças estruturais”, nota João Vale de Almeida.
“A globalização tem que ver com poder no mundo. Não é um jogo bonito”,
acrescenta o embaixador da UE nas Nações Unidas.
A
globalização tem que ver com poder no mundo. Não é um jogo bonito”
João Vale de Almeida, embaixador da UE na ONU
Entre a
linha de rumo mais inspirada nos valores anglo-saxónicos, que privilegiam a
concorrência, as reformas e a sintonia com as grandes linhas de força do
capitalismo actual, e a luta pela criação de um mundo global que tenha em conta
a protecção social, a solidariedade, o ambiente e a coesão, a Europa divide-se.
Para muitos, o Estado social é uma vantagem competitiva numa ordem económica
com cada vez menos regras. “É por gastar tanto na parte social que a Europa é
competitiva”, diz Stefan Profit, do Ministério dos Assuntos Económicos da
Alemanha. O que urge fazer é acabar com os buracos que permitem a fuga fiscal a
grandes empresas, nota Bernardette Segal, uma sindicalista belga. “Regular os
mercados é positivo e necessário. Os mercados financeiros ainda mais. Temos de
estar atentos às práticas fiscais da banca ou de empresas como a Google”, diz
Marion Jansen.
A fuga aos
impostos, os paraísos fiscais alimentados pelo espírito da liberdade de
circulação, a criação de taxas para as transacções financeiras, a imposição de
regras laborais e ambientais, o respeito pelos direitos humanos ou a protecção
social universal são, afinal, exigências com tantos anos como a globalização.
Nunca foram aplicados porque até agora o coro de críticas, principalmente vindo
da esquerda política, não incomodava os negócios nem alterava a paz social ou a
normalidade política. Depois de 2016, deixou de ser assim. As sociedades
ocidentais revêm-se cada vez mais em O Grito de Munch e têm cada vez mais
saudades do idílio dos tempos em que eram “livres do medo” que inspirou Normal
Rockwell.
Se ninguém
põe em causa a declaração do Presidente chinês Xi Jinping este ano, no Fórum de
Davos, quando disse que “ninguém sairá vencedor de uma guerra comercial”,
também é verdade que a crença na bondade absoluta do comércio livre está em
recuo acelerado no Ocidente. Quando boa parte dos cidadãos dos países
democráticos acha que está a perder com a globalização, algo terá de ser
mudado. O quê, como e quando são três das principais questões mundiais dos
próximos anos.
O PÚBLICO
viajou ao Vision Europe, em Turim, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian. Este
artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo
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