Panteão
Nacional... conversa e desconversa
Aquilo que
verdadeiramente importaria discutir em matéria de política patrimonial continua
ignorado.
LUÍS RAPOSO
22 de Novembro de 2017, 7:25
É dos
manuais que existem duas maneiras de desconversar: transportar as disputas para
o terreno juvenil da “razão pura” (a que forma monstros, com disse quem
inventou a expressão); e passar ao lado do assunto, inventando outros laterais.
Ambas estas posturas estiveram presentes no “caso” do recente e famoso jantar
no Panteão Nacional.
Antes do
mais, esclareça-se que concordamos com a indignação do primeiro-ministro quanto
ao dito jantar. Apenas entendemos que, para ser consequente, deveria ser
acompanhada de medidas que fossem pondo cobro ao clima de “salve-se quem e como
puder” que vai grassando nos museus e monumentos, por força da acumulação
explosiva de falta de meios e falta de compromisso cívico. E é bem este o cerne
da questão. Como há dias escrevíamos nestas páginas, “o diabo começa nos
detalhes e acaba na venda da alma” (PÚBLICO, 25.10.2017). Falávamos então do
programa Revive, mas trata-se aqui substancialmente do mesmo.
Existem
responsabilidades dos governantes neste estado de coisas? Sim, certamente,
tanto dos actuais como principalmente dos anteriores. Mas não alinhamos na demagogia
de considerar que, no caso concreto em apreço, eles sejam os principais
“culpados”. É certo que o despacho de arrendamento comercial dos espaços
memoriais, feito pelo anterior Governo depois de escândalos que então também
existiram, inscrevia explicitamente uma tabela de preços para jantares no
Panteão, enquanto por exemplo deixava à apreciação casuística as sessões de
carácter académico. Mas caberia aos serviços do Estado definir os termos
exactos dessa possibilidade (não obrigação, como decorre de outras disposições
do dito despacho). O refúgio dos responsáveis desses serviços numa leitura
literal e acrítica do mesmo é que é criticável. E a sua defesa, como se fosse
normal haver jantares, ou outros actos festivos mundanos, no Panteão Nacional,
isso então é intolerável.
Dizer-se
que na sala central do Panteão “não estão corpos” e apenas existem cenotáfios é
assim como pretender que também no átrio do crematório do cemitério do Alto de
S. João "não há corpos", fora dos momentos das respectivas exéquias
(tal como na sala central do Panteão). Ora, o Panteão, como qualquer cemitério
actual, pelo seu uso específico e ainda corrente, constitui espaço unitário,
carregado de simbolismo tal que impede usos festivos mundanos. E não nos venham
dizer que também na Antiguidade havia banquetes funerários, ou até orgias, em
cemitérios; ou que também hoje o hinduísmo os realiza; ou que os cerimoniais
religiosos ali praticados podem ofender a alma dos ateus e dos maçons que lá se
encontram. Menos ainda nos digam que já ali houve muitos jantares e até
pirotecnias de bruxedos, como se a banalização desculpasse ou diminuísse o mal
(algo para que deveríamos estar vacinados depois do que aconteceu na Europa na
primeira metade do século passado). Por favor, deixem-se desse tipo de
desconversa e atenham-se ao aqui e agora da nossa sensibilidade social, da
nossa relação com a morte, maxime quando se trata de pessoas que entendemos
tomar como referências comuns.
Restrições
de uso, embora porventura não tão radicais, existem aliás em todos os
monumentos e museus. Ninguém neles aceitaria ver promovida a violência, o
racismo, a prostituição, a toxicodependência (até mesmo e apenas as marcas de
cigarros), etc. Por muito dinheiro que tais actividades pudessem dar, elas
seriam impróprias em espaços patrimoniais públicos. Mas quer isto dizer que não
devem existir nesses espaços actividades mundanas, eventualmente sujeitas a
regimes de aluguer e, portanto, de mercantilização de receita? De modo nenhum,
desde que salvaguarda a primazia das suas funções principais e não haja
prejuízo dos visitantes comuns.
Merece-nos
neste contexto inteiro acordo a afirmação indignada (mais uma) do presidente da
Câmara Municipal da Batalha ao considerar que proibir ali jantares ou outras
iniciativas celebratórias é um "disparate do tamanho do mosteiro". E
o mesmo se diga para os Jerónimos. São também panteões, dirá mais uma vez quem
quer desconversar. E é certo que em ambos haverá espaços em que tais
actividades devem ser interditadas (por exemplo, a sala do chamado ”Soldado
Desconhecido” na Batalha ou o subcoro da Igreja dos Jerónimos, onde encontramos
cenotáfios do Gama e de Camões). Mas trata-se de monumentos que foram e são
acima de tudo mosteiros, quer dizer, espaços onde existiu vida conventual, onde
até se conservam refeitórios. Nenhum poder político de agora poderá apagar essa
realidade. Seria ridículo dispor aí interdições que não sejam ditadas pelos
princípios da conservação e da dignidade dos locais — não pelo respeito devido
aos mortos.
Teve toda
esta discussão alguma vantagem? Sim, porque permitirá talvez resgatar ao diabo
algumas almas de dirigentes da Administração Publica, lembrando-os que acima de
tudo eles são cidadãos e não meros tecnocratas ou amanuenses. Não, porque
afinal aquilo que verdadeiramente importaria discutir em matéria de política
patrimonial continua ignorado. Exemplos ocorrem todos os dias, a começar no
anúncio de medidas muitíssimo duvidosas (como a da separação do Museu da Música
em dois pólos, aparentemente mais por motivos financeiros do que conceptuais; a
criação de pólos 2 ou 3 em museus nacionais de que o pólo 1, a sua real razão
de existir, se deixa degradar para além do tolerável; os enigmáticos processos
de descentralização e regionalização, caso típico de como nos arriscamos
estragar uma boa ideia) e a acabar na forma displicente com que se vai dizendo
que a reconfiguração do aparelho de Estado nesta área ficará para futura
legislatura — optando este Governo pela forma original de limitar o cumprimento
do seu programa à preparação dos dossiês para o Governo seguinte. Ou seja e em
síntese: é compreensível, e até salutar, que nos indignemos com o jantar do
Panteão, sim. Mas seria muito melhor que nos indignássemos com a inoperância de
um Governo que a dois anos do final da legislatura já avisa que só vai
existindo para “encanar a perna à rã”. E se assim não for, surpreenda-nos
então. Ainda vai a tempo.
Arqueólogo. Presidente do ICOM Europa
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