Os novos
casais ventosos
A crise
provocou um aumento do consumo de drogas duras. E, com o velho hipermercado de
heroína de Lisboa desmantelado, os toxicodependentes fixaram-se em novos
locais. Assim nasceram novas salas de chuto a céu aberto nas Olaias e em
Xabregas, em Alcântara e no Lumiar
TERESA CAMPOS
MARCOS BORGA
29.01.2017
às 8h53
Todos o
conhecem como o rapaz que não usa dinheiro. Cabelo e tez escura, todo vestido
de negro, é de poucas falas. Anui apenas a dizer que tem 30 anos e, denuncia-o
também o sotaque, é das ilhas açorianas. Quando se cruza com Sofia, técnica da
Ares do Pinhal, uma associação que ajuda toxicodependentes desde o ano em que
ele nasceu, Luís, chamemos-lhe assim, repara logo que ela traz um contentor
para recolha de seringas usadas. “Esperem”, pede, escusando-se para ir buscar
as que guarda à cabeceira, na casa improvisada em que se tornou aquele edifício
abandonado no Vale de Alcântara. Volta com uma mão-cheia delas, mas não as
entrega todas. “Esta vou aproveitar, ainda tem...”, assumindo que pica tudo o
que encontra. “Só não o faço quando são de diabéticos... Como é que se sabe?
Prova-se, e se for doce...” E segue: “Vivo assim, sem usar dinheiro, há quase
um ano.”
Há mais
quem durma por ali, usando papelão e roupa velha, num piso subterrâneo coberto
de todo o tipo de lixo, seringas usadas e excrementos.
A sala de
consumo fica logo na entrada, iluminada por um fiozinho de sol que teima em
entrar pela porta de rede, e pelos isqueiros que queimam a droga na prata. Uns injetam, outros fumam, mas todos
usam branca (cocaína) ou castanha (heroína), ou as duas.
É um cenário
que julgávamos erradicado desde que os bulldozers arrasaram o bairro do Casal
Ventoso, hipermercado de tráfico e consumo de droga, lugar e imagem de marca
dos toxicodependentes dos anos 90 – mas que, na verdade, como sustentam os
técnicos das associações que tratam as dependências (e os utentes também...),
apenas se espalhou pela cidade, dando uma falsa ideia de situação resolvida.
Faz agora 18 anos (foi em fevereiro de 1999) que a Câmara Municipal de Lisboa
deu por concluído o processo de realojamento das famílias que restavam naquele
bairro de barracas.
Na década de 90, falava-se de 50 mil consumidores de
substâncias ilícitas na cidade. As
inúmeras respostas políticas e sociais criadas entretanto permitiram reduzir
esse número, mas não anulá-lo – hoje, sabemos que esses consumos desorganizados
apenas se resguardaram.
DE VOLTA ÀS
RUAS
Isso também
poderá mudar em breve – caso avance agora o que há dez anos ficou pelo caminho,
quando houve alguma abertura política para se adotar a medida mais polémica da
nova lei de despenalização da droga: a sala de consumo assistido, ou de chuto,
como diz a gíria toxicodependente. Há três anos, quando se começaram a sentir
os efeitos nefastos da crise económica, e um aumento de recaídas de antigos
heroinómanos, que o assunto voltou à baila. Em 2014, dava-se como certo que
seria na Mouraria. Há um ano, começou a falar-se na Alta de Lisboa.
Um primeiro
encontro sobre dependências e comportamentos aditivos em Lisboa decorreu na
Câmara Municipal, no início de novembro, como uma espécie de pontapé de saída
que permitisse o consenso necessário para avançar na instalação de uma sala de
consumo assistido. Primeiro falou o presidente da autarquia, Fernando Medina:
“A cidade ainda é um palco de riscos sérios de fratura social.” Seguiu-se João
Afonso, vereador dos Direitos Sociais: “Só assim se podem combater de forma
eficaz os consumos de droga a céu aberto.”
Os
testemunhos internacionais fizeram o resto. Dagmar Hedrich, presidente do
Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência – organismo criado em
meados dos 90, com sede em Lisboa – apresentou o saldo atual das salas de
consumo assistido que existem espalhadas por toda a Europa, desde que abriu a
primeira, na Suíça, em 1986. A mais recente acabava de ser inaugurada, nesse
mesmo início de novembro em Paris – e seria da capital francesa, via Skype, que
Eberhard Schatz, responsável de uma ONG holandesa que gere uma dessas
instalações, daria o seu contributo para aquele encontro. “Congratulo-me porque
depois de Atenas e de Paris, Lisboa também está à procura da melhor solução.” A
rematar, aquela plateia ouviria ainda Purificación Santos, a presidente dos
Médicos do Mundo do País Basco, contar o caso, feliz, de Bilbau (ver caixa).
João
Goulão, presidente do atual
SICAD – Serviço de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências,
lembra que, quando há uma década houve a tal abertura para se avançar, os dados
que lhe chegaram do terreno mostravam que havia um decréscimo de consumos de
alto risco. Os programas de substituição da metadona, com forte adesão,
passavam então a ideia de que se bastavam a si próprios para resolver os
problemas da dependência. “De repente, parecia que estávamos em contraciclo...”
Até que, concede, a crise económica motivou um número considerável de recaídas
entre os consumidores de heroína, levando muitos de volta para as ruas.
CLIENTES
HABITUAIS
A carrinha
da metadona está estacionada numa rua sem saída, no Lumiar, com vista para uns
lotes de terreno que ainda ali têm um cartaz a anunciar que são para venda –
mas que há anos foram votados ao esquecimento. Todos os dias, o enfermeiro de
serviço espera quem está inscrito no programa – Programa de Substituição em
Baixo Limiar de Exigência, de seu nome – para a toma diária.
Conhece-os
até pela voz. Eles e elas chegam à janela da carrinha e dizem apenas o número.
“Bom dia, 49”, diz um, “Bom dia, 63”, diz outra, ao que o técnico lhes responde
pelo nome: “Bom dia, Rui. Olá, Ema.” João Matoso, enfermeiro nas carrinhas de
rua ainda o Casal Ventoso, como o lembramos, estava de pé, confere a dose
adequada numa tabela. “Quando eles faltam uns dias, reduzo sempre, à
cautela...”, revela – eles acabam sempre por meter mais qualquer coisa. Vinte
por cento daquela população é sem-abrigo. Há 1200 utentes a recorrer, todos os
dias, às duas carrinhas do programa que atravessam Lisboa.
Manuel, 41
anos, é um deles. Desde os 20 que é viciado. “Bom, houve um tempo em que estive
bem...”, mas depois a crise e o desemprego, persistente, levaram-no a uma
recaída. Para aliviar a ressaca, aderiu à metadona – desde final de 2010 que
visita aquela carrinha. Depois, para comprar a droga de eleição, só tem de
seguir em frente. No meio daquele abandono, junto a uma caixa de eletricidade,
e muito, muito lixo, há dois vultos quase sempre residentes. Leva-lhes kits de
seringas, que eles depois trocam por dinheiro a quem aparece ao longo do dia –
gente que quer “chutar” fora das horas de expediente do programa. É ali, entre
os restos de mais um monte de seringas usadas e largadas no chão, que havemos
de nos cruzar com mais uma série de clientes habituais.
Um deles é
José, 42 anos, que está aqui há quatro invernos, desde que as autoridades
apertaram o cerco nas ruas do Intendente. Antes, já tinha sido corrido do Casal
Ventoso. “Vêm chatear-nos em vez de irem atrás dos traficantes. E o pior:
tratam-nos como lixo”, lamenta-se. Já esteve num albergue, “mas aquilo tinha
muitas regras...” Há uns meses largos que fica por ali, embrulhado nuns
cartões. Ainda chegou a ocupar uma das tendas improvisadas que cresceram junto
ao Eixo Norte-Sul, mas há dias a polícia passou lá e destruiu tudo.
Os outros
que se cruzam no nosso caminho têm histórias muito semelhantes. “Injeto umas
dez a 12 vezes por dia, o que arranjo...”, conta Francisco, os mesmos 42 anos
de José, enquanto estende a mão para nos mostrar do que fala, umas bolinhas
enroladas em papel, acabadinhas de comprar. A troco de informações importantes
para quem trafica, lá lhe cederam lugar numa outra casa vazia, perto dali.
Estes são
os únicos consumidores de droga para quem o sistema não tem resposta. Daí os
técnicos que andam na rua defenderem que era muito melhor consumirem em salas
próprias, com toda a segurança, sem partilhar seringas, depositando-as depois
em recipientes para o efeito, acompanhados de técnicos que os pudessem auxiliar
em caso de overdose. Ao mesmo tempo, manteriam uma ligação que permitisse, a
médio ou longo prazo, oferecer-lhes outra solução, assumem os responsáveis da
Ares do Pinhal e da Crescer na Maior, instituições que coordenam o programa de
metadona e as equipas de ruas, respetivamente, e que nos guiam nestas visitas
de reconhecimento.
UM FILME A
DECORRER
Na Junta de
Freguesia do Lumiar, a que pertence aquele lote de terreno ocupado por ervas daninhas
e droga, o presidente Pedro Delgado Alves, 36 anos, mostra-se mais do que
sensível ao cenário – afinal, foi ao site daquela instituição que chegou um
certo e muito comentado email de um miúdo a pedir que aquelas pessoas ganhassem
um local decente.
“Se
continuamos a ter pessoas com comportamentos de consumo, afastá-las de
determinado sítio sem oferecer respostas faz apenas com que se desloquem. Do
Casal Ventoso passaram à Mouraria e ao Intendente; com a revitalização dessas
zonas, acabaram por se fixar aqui.” Insistindo que as salas de consumo
assistido devem ser um meio e não um fim, remata: “Quem está a viver o problema
à porta de casa, e não é fácil conviver com o tráfico e o consumo, percebe que
vai ser minimizado com esta solução. Esse filme, de consumo desenfreado que
algumas vozes teimam em anunciar, já está a decorrer.”
Ali e em
tantos outros locais esconsos da cidade. Rumamos a um qualquer edifício ao
abandono em Xabregas, e a um descampado perto das Olaias, à entrada de umas
garagens cerradas, por onde nunca devem ter passado carros, e não restam
dúvidas. “Isto já são salas de consumo improvisadas”, ironiza Pedro, 45 anos,
que nos conta a sua história numa rua junto a uns canaviais. “O pior disto é
que, como não há alternativas, ninguém consegue ser civilizado, e faz tudo no
mesmo sítio: comer, dormir, aliviar-se...” Mais acima, sentado ao fundo de uma
rampa, protegido de olhares indiscretos por muros grafitados, encontramos
Miguel, 50 anos, consumidor desde os vinte e poucos. Acaba a despachar a
conversa porque quer fumar a sua chinesa (heroína) descansado – “e, desculpem,
não gosto de o fazer à vossa frente”. Quando lhe perguntamos onde dorme, mostra
um cartão de multibanco. “Só serve para abrir portas”, sorri. “Assim não durmo
na rua.”
O cheiro
nauseabundo, entre o lixo e as seringas usadas, há de repetir-se em mais um e
outro dos locais do género, mais que conhecidos pelas equipas de rua da Crescer
na Maior, que saem todos os dias especificamente para ir ao encontro daquelas
populações. Espreitamos pelo corredor por trás do tal edifício abandonado do
Vale de Alcântara e a abundância de seringas espalhadas é tal que mal se vê a
cor do chão. Ali, de onde desapareceu o bairro do Casal Ventoso, continua a
ver-se gente de passo apressado, encosta acima, encosta abaixo. Há quem se
esconda nos arbustos, há quem prefira os escombros das traseiras das casas que
restaram de pé. De tempos a tempos, também ali se erguem uma espécie de
acampamentos provisórios, que crescem e se multiplicam, até uma denúncia os
entregar e aquilo ir tudo abaixo. Depois, mais dia menos dia, tudo se reinicia.
SEM LUGAR
PARA ONDE IR
“Sempre que
a polícia vem aqui deitar tudo abaixo, nós perdemos-lhes o rasto. E temos de
recomeçar todo o trabalho de ligação com estas pessoas de novo”, desabafa
Andreia, uma das técnicas das equipas de rua. “Mas somos todos pagos pela
Câmara, que tem de decidir que caminho quer seguir”, acrescenta, como quem
espera um sinal mais firme da autarquia.
Talvez
tenha de aguardar mais uns tempos, mas o assunto, sabe a VISÃO, não está de
todo esquecido. Psicólogos e outros técnicos municipais foram, pouco depois da
tal conferência, conhecer o funcionamento ao detalhe de dois tipos de salas de
consumo que existem na cidade alemã de Frankfurt, uma das capitais europeias da
redução de risco. Além disso, o orçamento da cidade para 2017 já inclui verba
para o projeto-piloto avançar, muito provavelmente no segundo semestre do ano.
“É uma realidade da qual a cidade já está consciente”, assume ainda o vereador
dos Direitos Sociais, João Afonso.
A postura de Hugo condiz com a descrição: “Gosto de fumar o
meu cachimbo aqui, que ninguém incomoda e eu também não incomodo”, desabafa
ele, que aos 65 anos leva já mais de 25 disto, desde que se deixou seduzir pela
heroína no início dos anos 90. Em
1997, já se mudara da Linha do Estoril para o Casal Ventoso. Hoje, vive num
outro prédio sem gente, do outro lado da avenida, sempre fiel à cocaína, a sua
droga de eleição.
A conversa
segue, intermitente, interrompida uma e outra vez sempre que aparece algum dos
seus clientes: Hugo dá-lhes papel de alumínio e seringas, eles dividem parte da
droga que compraram. O tal açoriano que já tínhamos visto aparece de novo – ele
que entretanto até se inscreveu no programa de metadona –, sempre a vasculhar o
chão.
“Não tem
qualquer autoestima”,
comenta o outro, “vai acabar infetado...”, decreta, antes de acrescentar que “o que não falta é cada vez mais gente a vir para aqui injetar”, e que “há tanto tráfico como antigamente, de manhã à noite”. O
problema, insiste, “foi que eles deitaram isto abaixo e acabaram a espalhar
tudo. Agora, há droga por todo o lado. Mesmo que uma pessoa queira sair daqui,
vai para onde? Não tem para onde ir.”
N.R. Para
proteger a identidade dos consumidores, os nomes foram alterados
(Reportagem publicada na VISÃO 1245, de 12 de janeiro de
2017)
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