"Nos últimos
13 meses, desde outubro de 2016 a outubro de 2017, não houve um único mês em
que uma parte de Portugal Continental não estivesse na situação de seca. O
melhor mês foi março de 2017, em que apenas algumas regiões tinham seca fraca.
Em Portugal, a seca é já gravíssima e não sabemos quando irá terminar. Pode
chover abundantemente este inverno ou haver apenas chuva fraca. As
consequências desta última hipótese são preocupantes e urge estar preparados para
as enfrentar. Aquilo que sabemos com bastante segurança é que se o Acordo de
Paris não for cumprido, o centro e sul da Península Ibérica irão tornar-se
perigosamente áridos. É necessário adaptar-nos às alterações climáticas e
termos planos de contingência de médio e longo prazo adequados para diversos
cenários futuros."
Secas que
transformaram civilizações e a seca em Portugal
Há muitos
exemplos de secas que provocaram colapsos e transições civilizacionais.
FILIPE
DUARTE SANTOS
16 de Novembro de 2017, 6:54
No Egipto,
o ciclo exterior mais importante, para além do movimento aparente diurno do
Sol, era a cheia anual do Nilo que inundava e fertilizava os campos
preparando-os naturalmente para as culturas agrícolas essenciais à vida das
populações. As três estações do ano correspondiam às três fases fundamentais
daquele ciclo. A primeira, chamada Akhet ou inundação, começava com a inundação
cíclica do vale do Nilo no princípio do Verão provocada pelas chuvas das
monções na região da Etiópia e do alto Nilo e durava de Junho a Setembro. A
segunda, chamada Peret ou crescimento, era o período das sementeiras, do
ressurgimento da vida vegetal e animal e coincidia com os meses de Outubro a
Janeiro. Finalmente, Shemu ou águas baixas era a fase das colheitas de
Fevereiro a Maio.
Embora o
início da cheia anual do Nilo fosse previsível, a altura máxima que as águas
atingiam era muito variável e imprevisível. Cheias muito altas eram destrutivas
e podiam devastar povoações e infraestruturas ribeirinhas. Em contrapartida, as
cheias fracas diminuíam a produção agrícola e podiam causar a fome
generalizada. O progresso da cheia era essencial para planear o novo ano e
provavelmente para calcular o valor dos impostos nesse ano.
Os
sacerdotes dos templos alimentavam a fama de predizerem a altura das cheias
anuais e mediam a altura das águas do Nilo por meio de nilómetros. Alguns deles
perduraram até à atualidade, tais como os de Elephantine, Edfu, Esna, Kom Ombo,
Dendera e Thmuis. São formados por corredores com escadarias que conduzem ao
rio e cujos degraus vão ficando submersos com o avanço da cheia ou poços
ligados por um túnel ao rio e acessíveis também por uma escadaria. Os
nilómetros foram usados durante mais de 5000 anos e existem registos escritos
do nível das águas do Nilo durante grande parte desse período, especialmente
nos últimos 14 séculos. A análise destes dados permitiu concluir que a
variabilidade das cheias no Nilo está correlacionada com o fenómeno da
Oscilação Sul – El Niño.
A monção da
África Oriental é a principal origem da precipitação que alimenta o Nilo
através das águas do Nilo Azul. Na situação de El Niño, as águas do Pacífico
equatorial leste estão anormalmente quentes, o que gera movimentos ascensionais
na atmosfera e chuvas intensas, enquanto na região ocidental, incluindo o
Índico, geram-se movimentos descendentes anómalos que enfraquecem a monção e
provocam secas no planalto da Etiópia, onde nasce o Nilo Azul, e caudais muito
baixos no Nilo Azul e no Nilo. Com a construção de barragens, o nível das águas
do Nilo deixou de estar correlacionado com o El Niño, mas a análise dos
registos históricos das cheias desde o ano de 622 permite concluir que a maior
frequência de eventos de El Niño observada desde os finais da década de 1970,
durante cerca de quatro décadas consecutivas, relativamente aos períodos
anteriores, é provavelmente uma anomalia provocada pelas alterações climáticas
antropogénicas (Trenberth, 1996). Projeções baseadas em cenários climáticos
indicam que os eventos extremos de El Niño e de La Niña se vão tornar
progressivamente mais frequentes com as alterações climáticas (Wang, 2017).
Após o
final do Império Antigo, cerca do ano de 2150 a.C. e durante duas ou três
décadas, as cheias do Nilo diminuíram drasticamente, as areias invadiram parte
do vale do rio, o lago de Faiyum secou, os solos do delta degradaram-se, a fome
estendeu-se por todo o Egipto e paralisou as instituições políticas, semeando o
caos. Na parte biográfica das inscrições do túmulo de Ankhtifi, governador de
Edfu e Hierakonpolis na IX dinastia, lê-se que “todo o país ficou como se
fossem gafanhotos à procura de comida”. As pessoas eram levadas a praticar
atrocidades tremendas devido à fome, incluindo, muito provavelmente, o
canibalismo. Houve templos vandalizados e saqueados e estátuas destruídas. A
governação centralizada do faraó colapsou e os governadores das várias regiões
passaram a assumir o poder a nível local e a guerrear-se. Iniciou-se o chamado
Primeiro Período Intermediário da história do Egipto. Porém, passados cerca de
100 anos, a governação centralizada ressurgiu com a reunificação do Egipto
realizada pelo faraó Mentuhotep II, cujo reinado iniciou o Império do Meio e
durou de 2055 a 1650 a. C.
A profunda
crise que afetou o Egipto gerou um novo quadro político caracterizado por uma
maior sensibilidade para as questões sociais, a misericórdia e a compaixão.
Esta terá sido provavelmente a primeira vez na história das civilizações que um
governo, baseado numa hierarquia forte e centralizadora, adotou, embora sob uma
forma embrionária, conceitos sociais de equidade que impunham ao faraó proteger
os mais fracos e pobres na sociedade, especialmente em períodos de adversidade.
Mais tarde, estes conceitos e práticas floresceram sob diversas formas com o
cristianismo e o islamismo. Uma das manifestações mais claras da transição para
novas formas de igualdade foi tornar a imortalidade acessível a todos e não
apenas ao faraó e às elites dos dirigentes e sacerdotes. A fórmula encontrada
foi considerar todos iguais assumindo que, para efeitos de acesso à
imortalidade, cada um é um faraó. Os detalhes práticos sobre como aceder à
imortalidade estavam escritos no interior dos sarcófagos.
Dados
paleoclimáticos revelam que entre 2350 e 1850 a.C. houve períodos de secas
severas em várias regiões do mundo, uma das quais originou os níveis muito
baixos do Nilo no Egipto a partir de 2200 a.C. Outras regiões afetadas foram a
América do Norte, o Mediterrâneo, o Médio Oriente, África Oriental, Índia e a
China. É muito provável que essas secas tenham sido a causa principal do
colapso do Império Acádio na Mesopotâmia e da cultura Liangzhu, a última do
jade no delta do rio Iangtzé, na China, na região onde hoje está Xangai. A
mudança climática para um clima mais seco há cerca de 4200 anos deu-se também
na Península Ibérica na Idade do Bronze e está na origem de umas construções
intrigantes em pedra que se encontram na região de Castilla La Mancha, em Espanha,
próximo de Ciudad Real, chamadas Motillas. Investigações arqueológicas nos
últimos anos levaram à conclusão que as Motillas eram edificações destinadas a
aproveitar as águas subterrâneas e a armazenar água e cereais numa época de
grande aridez. Na Motilla de Azuer encontrou-se um poço com cerca de 4000 anos,
provavelmente o mais antigo da Península, que permitia ir buscar água a um
nível freático profundo. A construção dos poços na cultura das Motillas foi uma
solução de sucesso para fazer face à seca, que contribuiu para impulsionar a
transição para uma sociedade mais complexa e estruturada. Quanto à origem do
evento climático de seca de há 4200 anos sabe-se ainda muito pouco. Poderá
estar relacionado com variações da temperatura superficial no Oeste do
Pacífico, Índico e no Atlântico Norte.
Há muitos
outros exemplos de secas que provocaram colapsos e transições civilizacionais.
No período de 750 a 900 d.C. deu-se o colapso da civilização Maia Clássica que
resultou em parte de períodos de seca prolongados. Situação análoga deu-se com
o Império Tiwanaku entre 1000 e 1100 d.C. e com o Império Khmer baseado em
Angkor, no Camboja, nos séculos XIV e XV.
Recentemente
houve uma seca na região da Síria que durou 15 anos, de 1998 a 2012, tendo sido
a mais intensa dos últimos 500 anos (Cook, 2016). As suas consequências
contribuíram para criar as condições que levaram à guerra civil iniciada em
março de 2011, que matou entre 331 e 475 milhares de pessoas e levou cerca de
5,1 milhões de refugiados a abandonarem a Síria.
Devido às
alterações climáticas antropogénicas, a média decadal da precipitação anual tem
estado a diminuir no Mediterrâneo, especialmente na Península Ibérica,
Península Balcânica e região do Médio Oriente, onde se encontra Israel,
Jordânia, Palestina e Síria. As secas estão a tornar-se mais frequentes e
prolongadas e a seca na Síria insere-se nesta tendência, que tende a
agravar-se. A severidade da seca que afeta atualmente grande parte da Península
Ibérica é muito provavelmente mais uma manifestação das alterações climáticas.
Nos últimos 13 meses, desde outubro de 2016 a outubro de
2017, não houve um único mês em que uma parte de Portugal Continental não
estivesse na situação de seca. O
melhor mês foi março de 2017, em que apenas algumas regiões tinham seca fraca.
Em Portugal, a seca é já gravíssima e não sabemos quando irá terminar. Pode
chover abundantemente este inverno ou haver apenas chuva fraca. As
consequências desta última hipótese são preocupantes e urge estar preparados
para as enfrentar. Aquilo que sabemos com bastante segurança é que se o Acordo
de Paris não for cumprido, o centro e sul da Península Ibérica irão tornar-se
perigosamente áridos. É necessário adaptar-nos às alterações climáticas e
termos planos de contingência de médio e longo prazo adequados para diversos
cenários futuros.
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