Ayn Rand:
“A Revolta de Atlas” é tão perigoso como “Mein Kampf”?
12 Novembro
2017400
José Carlos
Fernandes
60 anos
depois da edição original, começou a ser publicada em Portugal a Bíblia dos
libertários, neo-cons e alt-righters americanos: "A revolta de
Atlas", de Ayn Rand.
Quem é John
Galt?
Uma galeria
de estereótipos
Mundivicências:
Os empresários visionários
Mundivicências:
Os sentimental-socialistas
O
antecedente: The fountainhead
O que Rand
pensa sobre literatura
Como se faz
uma inimiga figadal do socialismo
Depois de
“A revolta de Atlas”
Os leitores
estão com Ayn Rand
E as elites
políticas e empresariais também…
Donald
Trump e Howard Roark: Duas almas gémeas?
A paixão da
direita americana por Rand assenta em equívocos?
Ayn Rand e
os eleitores americanos
Uma América
em penoso declínio, controlada por parasitas tagarelas que debitam arengas onde
se misturam socialismo nebuloso e sentimentalismo barato e se obstinam em
erguer obstáculos aos poucos homens e mulheres de acção que lutam heroicamente
para salvar o país da ruína.
É este o
cenário de um dos mais famosos romances de Ayn Rand, Atlas shrugged, publicado
originalmente em 1957 e traduzido em 25 línguas, que chega agora a Portugal
como A revolta de Atlas (com o sub-título “O homem que queria parar o motor do
mundo”), pela mão da Marcador e com tradução de Isabel Baptista. A edição
portuguesa segue a edição brasileira de 2010 no título e na divisão das mais de
1200 páginas por três volumes (que correspondem às três partes em que Rand
dividiu o romance), mas este primeiro volume omite, inexplicavelmente, qualquer
referência ao facto de existirem mais dois, pelo que o leitor incauto ficará
perplexo quando chegar à última página e ficar suspenso no vazio.
Independentemente
dos méritos ou deméritos literários e ideológicos dos livros de Ayn Rand, o
facto de uma autora que vendeu um total acumulado de 29 milhões de livros em
todo o mundo (dados de 2013) só agora ver pela primeira vez um livro (um
melhor, 1/3 de um livro) publicado em Portugal atesta bem a bizarria do nosso
mercado livreiro.
Quem é John
Galt?
A revolta
de Atlas passa-se numa realidade alternativa que, embora esteja num estágio de
desenvolvimento tecnológico similar ao da época em que foi escrito – década de
1950 – nos mostra um mundo em declínio: fábricas devoradas pela ferrugem,
estradas rachadas e invadidas pela vegetação, lojas fechadas (mesmo nas ruas
mais buliçosas de Nova Iorque), regressão dos padrões civilizacionais, com as
pessoas fora das grandes cidades a viver em moldes medievais, contentando-se em
praticar agricultura de subsistência e vivendo alheadas do que se passa fora do
seu exíguo mundo de hortas miseráveis e casas decrépitas, mobiladas com
bugigangas pilhadas aos edifícios abandonados da cidade-fantasma mais próxima.
O livro (ou
pelo menos a sua primeira parte, sobre a qual se baseiam estas considerações)
centra-se exclusivamente nos Estados Unidos da América, sendo as menções ao
resto do mundo apenas passageiras, mas percebe-se nas entrelinhas que “lá fora”
a situação é ainda pior do que nos EUA. O que terá empurrado a civilização para
este definhar inquietante? Não foi uma guerra mundial, nem a queda de um
meteorito ou uma pandemia devastadora, dir-se-ia que a civilização está a
sucumbir simplesmente à abulia, à extinção da vontade de progresso, ao
desleixo, ao “deixa andar” – e sempre que alguém questiona porque está o mundo
como está e porque se arrastam as pessoas neste torpor, alguém retorque “Quem é
John Galt?”. Ninguém sabe quem é John Galt e a frase não é sequer uma pergunta,
é simplesmente uma expressão sarcástica de indiferença, passividade e aceitação
de que há questões para as quais não há resposta e problemas para os quais não
há solução.
Um eco
moderno de A revolta de Atlas
Aqui e ali
há pistas para explicar um panorama tão decadente e lúgubre: todos os países nomeados
são “Repúblicas Populares” – na página 205 até se menciona a República Popular
de Portugal – e a implantação do socialismo à escala global parece estar
associado às dificuldades por que estes países passam: um mero pirata (que será
uma das personagens centrais dos volumes seguintes) possui um navio mais
poderoso do que qualquer vaso da marinha de guerra da República Popular da
Inglaterra, há uma iniciativa que leva ajuda alimentar à República Popular de
França…
Os EUA não
são (ainda) uma República Popular, mas os principais decisores e empresários
parecem professar um confuso, inconsequente e pueril ideário socialista. A sede
do governo continua a ser em Washington, mas não há referência a um Presidente
ou a um Congresso, apenas uma nebulosa e insondável entidade governamental que
Rand retrata como inoperante, corrupta, pouco inteligente e inerte e que só tem
iniciativa para promulgar legislação regulatória destinada a dificultar a vida
aos poucos empresários que ainda fazem alguma coisa pela depauperada economia:
“Dagny [uma dinâmica mulher de negócios] não sabia nada no campo da ‘influência
em Washington’ nem sobre o que essa capacidade implicava. Mas parecia ser
necessária, por isso não pensou mais no assunto, crendo que havia muitos tipos
de trabalho desagradáveis, como limpar esgotos; alguém tinha de os fazer” (pg.
82-3).
Em A
revolta de Atlas, Washington é representada como um antro de corrupção,
estupidez e incompetência
Os
sindicatos e organizações laborais não têm grande visibilidade em A revolta de
Atlas, mas quando aparecem fazem o jogo do Estado e dos empresários imobilistas
e ineptos: são ultra-conservadores, só pensam em preservar direitos adquiridos
e opõe-se a tudo o que perturbe o statu quo.
Uma galeria
de estereótipos
Ao handicap
de o romance se assumir antes de mais como veículo para a exposição de uma
tese, Ayn Rand soma os defeitos do maniqueísmo e da falta de subtileza. De um
lado estão os homens/mulheres de acção: Dagny Taggart, vice-presidente da
empresa ferroviária Taggart Transcontinental; Hank Rearden, líder da empresa
siderúrgica Rearden Metal; Francisco d’Anconia, milionário argentino com minas
de cobre espalhadas pelo mundo; Eddie Willers, assistente dedicado (no sentido
canino do termo) de Dagny; Ellis Wyatt, empresário na área dos petróleos; Dan
Conway, presidente da Phoenix-Durango, uma companhia ferroviária que disputa,
em ambiente de sã concorrência, a primazia com a Taggart.
Na pesquisa
para escrever “A revolta de Atlas”, Rand visitou em 1947 uma fábrica da Kaiser
Steel: na imagem a unidade da Kaiser em Fontana, na Califórnia, cuja construção
foi iniciada em 1942
Possuem um
espírito frio, analítico e estritamente racional, são implacavelmente focados e
auto-centrados, obcecados com lucro e eficácia, são movidos por uma
determinação inquebrantável e trabalham dia e noite, fins-de-semana e feriados
– a versão capitalista do herói stakhanovista. São leais, frontais e sem
artifícios, são apaixonados pela inovação, têm uma visão ultra-liberal dos
negócios e da sociedade. E como Rand acredita na fisionomia como espelho da
alma – “gostou da cara dele, de linhas lisas e firmes, não tinha aquele aspecto
flácido de quem evitava nitidamente a responsabilidade” (pg. 34) – os “bons”
têm feições talhadas a cinzel, silhuetas esguias, corpos ágeis e longas pernas.
E usam roupas de bom corte, mas práticas, funcionais e sem ostentação.
A descrição
de Dan Conway é exemplar: “Tinha o rosto quadrado, impassível e obstinado de um
maquinista rijo, mais do que de um presidente de uma empresa. Era o rosto de um
lutador, com uma pele jovem e bronzeada […] Falava pouco, raramente lia um
livro, nunca frequentara a universidade. Toda a esfera das proezas humanas, com
uma única excepção, o deixava absolutamente indiferente. Não tinha noção
nenhuma daquilo a que as pessoas chamavam cultura. Mas percebia de ferrovias”.
Para
escrever “A revolta de Atlas”, Rand fez também pesquisa sobre a operação da
companhia ferroviárias New York Central. Na imagem, uma das locomotivas
emblemáticas da companhia, a futurista e aerodinâmica NYC Hudson, desenhada em
1938 por Henry Dreyfuss para puxar o comboio 20th Century Limited
Do outro
lado está uma constelação de medíocres, na qual se destacam, como figuras
cimeiras, Jim Taggart, irmão de Dagny e presidente (formalmente, mas não na
prática, já que é incompetente e titubeante) da Taggart Transcontinental;
Wesley Mouch, um ex-lobbista que se torna numa figura influente no Gabinete de
Planeamento Económico e Recursos Nacionais, em Washington; Orren Boyle, um
rival de Rearden no negócio do aço. São pançudos ou, pelo menos, flácidos, têm
lábios moles, denotando pouca firmeza ou até cobardia, fisionomia inexpressiva
e cabelo ralo. Levam uma vida de ócio e reuniões sociais feitas de conversa
frívola, graçolas, boatos e maledicência. A sua ideologia é uma mescla de
sentimentalismo barato e socialismo difuso. São dissimulados, pusilânimes,
traiçoeiros, oportunistas, interesseiros, invejosos, frívolos e vaidosos. São
também imobilistas e defensores da tradição e opõem-se por princípio a mudanças
e inovações.
Os
empresários visionários reúnem tantas qualidades face a esta súcia que se diria
que o confronto estava ganho de antemão – porém, os medíocres imobilistas têm a
seu favor jogar sujo enquanto os primeiros jogam limpo e o seu poder sobre o
governo permite-lhes inclinar o campo de jogo a seu favor. E assim, a coberto
de um discurso aparentemente piedoso e humanista, mas retintamente hipócrita,
acabam por beneficiar, sem suor ou canseiras, daquilo que os empresários
visionários plantaram e regaram.
Na pesquisa
sobre ferrovias, Rand chegou a receber instruções sobre a operação da
locomotiva do 20th Century Limited, comboio da companhia New York Central, que
ligava a La Salle Street Station, em Chicago, ao Grand Central Terminal, em
Nova Iorque. Foto de 1947, com o 20th Century Limited a partir da La Salle
Street Station
Mundivicências:
Os empresários visionários
“Não temos
nenhum objectivo espiritual. Só andamos atrás de coisas materiais. Apenas isso
nos interessa” (pg. 125).
“Somos nós
que movemos o mundo e somos nós que o vamos salvar” (pg. 126).
“Quero
estar preparado para declarar a maior virtude de todas: que fui um homem que
ganhou dinheiro” (pg. 136).
“Nada tem
importância nesta vida, a não ser a nossa competência no trabalho. Nada. Só
isso […] É a única medida do valor humano. Todos os códigos de ética que tentam
enfiar-nos pela goela abaixo não passam de moeda falsa, inventada por
vigaristas para arrancar virtudes às pessoas. O código da competência é o único
sistema moral com um padrão certo” (pg. 141).
Mundivicências:
Os sentimental-socialistas
É óbvio que
Rand pôs na boca dos seus heróis aquilo em que acredita. Em contrapartida,
reservou para as personagens desprezíveis /e até repugnantes) a expressão das
ideias que acha abomináveis:
“Agora que
já tens idade para andar na faculdade, acho que deverias aprender alguma coisa
a respeito de ideais. Está na altura de esqueceres a tua ganância egoísta e
pensares um bocadinho nas tuas responsabilidades sociais, porque acho que
aqueles milhões que vais herdar não são para o teu prazer pessoal, são para
benefício dos desprivilegiados e dos pobres. Acho que só o tipo mais perverso
de ser humano é que não percebe isto” (pg. 140).
“Os
direitos de propriedade são uma superstição. Os proprietários só possuem uma
propriedade por cortesia daqueles que não se apoderam dela” (pg. 185)
“O ideal
mais nobre é o de que o homem viva pelo bem dos seus irmãos, que o forte
trabalhe para o fraco, que o que tem capacidades sirva aquele que não as tem”
(pg. 291).
“O meu
objectivo era o progresso social, a prosperidade universal, a irmandade humana
e o amor. O amor, menina Taggart. É a chave para tudo. Se os homens aprendessem
a amar-se uns aos outros iriam solucionar todos os seus problemas” (pg. 399).
Para Rand,
uma das causas da decadência civilizacional é a ascensão das filosofias
nihilistas. As personagens que cultivam a mediocridade e o cinismo expressam-se
assim: “O objectivo da filosofia não é ajudar os homens a encontrar o sentido
da vida, mas sim provar-lhes que não existe nenhum” (pg. 181) “Não há nenhum
espírito humano. O homem é apenas um animal de baixo nível, sem intelecto, sem
alma, sem virtudes ou valore morais. Um animal só com duas capacidades: comer e
reproduzir-se […] O único talento da humanidade é uma astúcia reles para
satisfazer as necessidades do corpo [… Não acredite nas histórias a respeito da
mente humana, do seu espírito, dos seus ideais e da sua ambição” (pg. 182)
Outra causa
de declínio é, para Rand, o relativismo ontológico: “Nada é estático no universo.
Tudo é fluido […] A razão, meu amigo, é a superstição mais ingénua de todas”
(pg. 182); “Não existem factos objectivos. Todos os relatos sobre os factos são
apenas as opiniões de alguém. Por isso, é inútil escrever acerca de factos”
(pg. 298); “Os absolutos não existem […] Nada é absoluto. Tudo é uma questão de
opinião” (pg. 342).
E outra
ainda, o relativismo ético: “Quem é que sabe o que é o bem? Quem é que alguma
vez pode saber?” (pg. 341). Da destruição dos referenciais à inversão de
valores vai só um passo: “Quando um homem acha que é bom, é sinal de que ele
está podre. O orgulho é o pior de todos os pecados” (pg. 341); “A infelicidade
é a marca da virtude. Se um homem é infeliz, mesmo verdadeiramente infeliz,
isso quer dizer que ele é um tipo de pessoa superior” (pg. 342).
O
antecedente: The fountainhead
A revolta
de Atlas retoma, em parte, a dicotomia já exposta no outro romance de grande
sucesso de Rand, The Fountainhead, publicado 14 anos antes. De um lado está o
arquitecto Howard Roark, um visionário sobredotado, determinado, incorruptível
e inflexível, do outro uma corja de conformistas, incompetentes e parasitas,
liderada pelo arquitecto Peter Keating e pelo critico de arquitectura (e
socialista) Ellsworth Toohey. Ou seja, é também uma história da luta do génio
solitário e com uma ética de trabalho irrepreensível contra a carneirada
ronhosa e traiçoeira, do inovador contra os imobilistas, do indivíduo
excepcional contra a pulsão colectivista que o quer sufocar.
The
fountainhead é menos esquemático e demonstrativo do que A revolta de Atlas e
são nele menos frequentes as representações caricaturais do socialismo. É
também mais fácil sentir simpatia pela luta de Howard Roark para afirmar a sua
visão artística e defender a sua integridade, do que pelos empresários de A
revolta de Atlas que crêem que ganhar dinheiro é “a maior virtude de todas” e
devotam a isso toda a sua energia.
Rand
inspirou-se em Frank Lloyd Wright (1867-1959) para criar a personagem do
arquitecto Howard Roark
Também a
forma como Roark concebe o individualismo é mais nobre e sofisticada: “É fácil
depender do julgamento alheio. É árduo sermos avaliados pelos nossos próprios
padrões. Podem simular-se virtudes para um público. Mas não se pode fazê-lo aos
nossos próprios olhos. O nosso ego é o nosso juiz mais severo […] Ninguém é
capaz de pensar com o cérebro de outra pessoa ou de trabalhar com as mãos de
outra pessoa. Quando suspendemos a nossa faculdade de julgamento autónomo,
estamos a suspender a consciência. […] [As pessoas de segunda mão são] opinião
sem processo racional. Movimento sem travões ou motor. Poder sem
responsabilidade”.
Curiosamente,
esta dicotomia tem afinidades com a oposição que o filósofo franco-grego
Cornelius Castoriadis (1922-1997) faz entre indivíduos autónomos e heterónomos,
apesar de Castoriadis ter professado convicções políticas diametralmente
opostas às de Rand – foi co-fundador do grupo Socialisme ou Barbarie.
Roark, o
homem que se guia apenas pelo seu próprio referencial, tem continuidade nos
heróis de A revolta de Atlas – veja-se a evocação que Hank Rearden faz de si
mesmo, aos 18 anos: “a tensão do rosto, a desenvoltura do passo, o entusiasmo
ébrio do corpo, intoxicado pela energia das noites sem dormir, a cabeça
orgulhosamente levantada, os olhos claros, firmes e impiedosos, os olhos de um
homem que se conduzia a si mesmo sem piedade em direcção ao que ele queria”
(pg. 291).
21 de
Outubro de 1959: Inauguração do Museu Solomon R. Guggenheim, em Nova Iorque,
uma das mais ousadas e emblemáticas obras de Frank Lloyd Wright
O
arqui-inimigo de Roark é Ellsworth Toohey, que aspira a nivelar a Humanidade
por baixo, por afogar o homem excepcional no mar da mediocridade: “Destrói o
quadro de valores do homem. Destrói a sua capacidade para reconhecer a grandeza
ou atingi-la. Não é possível governar os grandes homens. Não queremos grandes
homens […] O grande é o raro, o difícil, o excepcional. Estabelece padrões de
realização que estejam ao alcance de todos, até dos mais ineptos, e deterás o
ímpeto de todos os homens, grandes e pequenos. Deterás todo o incentivo ao
melhoramento, à excelência, à perfeição […] Não te empenhes em destruir todos os
santuários – irias assustar as pessoas. Santifica a mediocridade – e os
santuários terão sido arrasados. Destrói pelo riso. O riso é um instrumento da
alegria humana. Aprende a usá-lo com uma arma destrutiva. Transforma-o em
escárnio. É simples. Diz-lhes para se rirem de tudo. Diz-lhes que o sentido de
humor é uma virtude ilimitada. Não deixes que reste nada sagrado na alma do
homem – e até a alma deixará de ser sagrada para ele. Destrói a reverência e
terás destruído o herói que há no homem. Ninguém reverencia uma risota”. Toohey
é demasiado retorcido e auto-consciente no seu maquiavelismo para ser credível,
mas, ainda assim, é uma personagem mais sólida e cativante do que os
socialistas de papelão de A revolta de Atlas.
Em 1956, no
fim da vida, Frank Lloyd Wright concebeu o mais visionário dos seus projectos:
The Illinois, um arranha-céus de uma milha (c. 1609 metros) de altura e 528
pisos (quatro vezes a altura do Empire State Building, então o edifício mais
alto do mundo), que deveria ter sido erguido em Broadacre City, perto de
Chicago
O que Rand
pensa sobre literatura
Para Rand,
o sucesso comercial é o critério supremo: a personagem Balph Eubank é
ridicularizada por ser “considerado o líder literário da actualidade, mas nunca
escrevera um livro que tivesse vendido mais de 3.000 exemplares” (pg. 183). O
mercado é o único juiz do valor do que é produzido, sejam carris de
caminho-de-ferro – como a personagem Hank Rearden deixa claro na pg. 238 – ou
livros.
Não
espanta, pois, que a ideia de que a criação artística e literária possa ser
apoiada pelo Estado também repugne a Rand, como atesta o discurso que coloca na
boca de um dos “decadentes”: “A cultura deve ser tirada das mãos daqueles que
só procuram o lucro. Precisamos de um subsídio nacional para a literatura. É
uma vergonha que os artistas sejam tratados como vendilhões e que as obras de
arte tenham de ser vendidas como o sabão” (pg. 192).
Rand não
hesita em defender o seu modelo de romance, convencional, hollywoodesco e
povoado de personagens bigger than life, contra inovações, atribuindo a um dos
representantes da “decadência” esta posição: “A literatura do passado era
superficial e fraudulenta. Pintava a vida muito bonita para agradar aos
magnatas a quem serviu. Moral, livre-arbítrio, vitórias, finais felizes, o
Homem como uma espécie de criatura heróica… tudo isso é risível para nós” (pg.
182). E, fazendo o paralelo com outras formas de expressão artística e
pensamento, afirmam os “decadentes”: “O enredo é uma vulgaridade primitiva na
literatura […] tal como a lógica é uma vulgaridade primitiva na filosofia […] e
tal como a melodia é uma vulgaridade primitiva na música” (pg. 184).
O que
pensaria Rand de um livro sobre um caixeiro-viajante que acorda um dia
transformado em insecto, ou de outro sobre um professor obcecado por ninfetas
que é levado à desgraça em resultado da irreprimível paixão pela insinuante
enteada de 12 anos? Tudo leva a crer que os arrumaria na literatura degenerada…
Como se faz
uma inimiga figadal do socialismo
A juventude
de Ayn Rand encerra uma explicação para o seu repúdio do colectivismo e pela
sua defesa feroz do individualismo. Rand nasceu a 2 de Fevereiro de 1905 numa
família judia de São Petersburgo e começou por chamar-se Alisa Zinovyevna
Rosenbaum. O pai era proprietário de uma farmácia, a família tinha uma vida
desafogada e Alisa andou numa das melhores escolas da capital russa, o Ginásio
Stoiunina, onde a sua amiga mais chegada era Olga Nabokov (a irmã mais nova de
Vladimir), para cuja mansão familiar era convidada amiúde. A revolução de
Outubro de 1917 pôs termo a essa vida: o pai viu-se expropriada da farmácia e a
família ficou arruinada, passando por muitas privações. Alisa, que foi uma
aluna brilhante, estudou História e Literatura na Universidade Estatal de
Petrogrado (o nome dado a São Petersburgo em 1914), mas o facto de provir de
uma família “burguesa” fez com que fosse expulsa da universidade e só a custo
conseguisse terminar o curso. Ainda assim, a passagem pela universidade terá
sido decisiva na sua formação e mais tarde apontaria o professor Nikolay
Lossky, que defendia um sistema filosófico a que chamava “personalismo
intuitivo”, como uma influência determinante na evolução do seu pensamento.
[Excerto de
entrevista de Ayn Rand por Mike Wallace, em 1959: Rand omite a influência de
Nikolay Lossky e afirma ter desenvolvido o seu sistema filosófico por si mesma,
sem necessidade de recorrer a outro filósofo para lá de Aristóteles]
Rand
frequentou em seguida o Instituto Politécnico Estatal de Artes Cinematográficas
de Leningrado (a cidade voltara a ser rebaptizada) e foi com a ambição de ser guionista
(por esta altura já adoptara o pseudónimo literário Ayn Rand) que desembarcou
em Nova Iorque a 19 de Fevereiro de 1926, munida de um visto que lhe fora
concedido para visitar familiares que se tinham instalado nos EUA.
Porém, Rand
não fazia tenção de regressar ao país natal: o seu fascínio era a América. As
portas de Hollywood não se abriram de par em para ela e teve de contentar-se
com biscates como figurante, revisora de guiões e responsável pelo
guarda-roupa. Em 1932 conseguiu vender um guião à Universal, mas o filme nunca
foi rodado. 1934 foi o ano em que uma peça de sua autoria, Night of January
16th, teve estreia em Hollywood e depois na Broadway e em que escreveu We the
living, que foi recusado por várias editoras antes de ser publicado em 1936 – é
um romance de inspiração autobiográfica, que narra a luta árdua pela
sobrevivência de Kira, a filha de uma família burguesa na Rússia
pós-revolucionária, cujo espírito independente a faz recusar a sujeição aos
moldes impostos pelos bolcheviques. É menos afortunada do que Rand, pois ao
tentar fugir do país é morta por um guarda fronteiriço. A 1.ª edição rendeu a
Rand cerca de 100 dólares, mas ao longo dos anos, a reboque do sucesso dos
outros romances, o livro vendeu 3.5 milhões de exemplares.
Nos anos
40, o envolvimento de Rand na campanha eleitoral republicana colocou-a em
contacto com pensadores e autores libertários e defensores da economia de
mercado, nomeadamente com o economista austríaco Ludwig von Mises – é bom
lembrar que na primeira metade dos anos 40, em resultado da imperiosa
necessidade de fazer face à Grande Depressão e, depois, de combater a Alemanha
e o Japão, a economia dos EUA era fortemente centralizada, mais do que alguns
países ditos socialistas o foram em períodos de paz.
Em 1943,
após oito anos de escrita e rejeições por uma dúzia de editoras, surgiu nas
livrarias The fountainhead. Após um arranque lento, o “romance filosófico” (a
designação é da própria Rand) começou a trepar nos tops de vendas ao longo de
1944-45 – vendeu até hoje 6.5 milhões de exemplares e está traduzido em 20
línguas.
The
fountainhead foi o ponto de viragem na carreira de Rand: a Warner Bros. comprou
os direitos para a adaptação cinematográfica que estreou em 1949, com o mesmo
título (chegou a Portugal como “Vontade indómita”), com guião da própria
autora, realização de King Vidor e uma galeria de actores de luxo: Gary Cooper
(Howard Roark), Patricia Neal (Dominique Francon), Raymond Massey (Gail
Wynand), Kent Smith (Peter Keating) e Robert Douglas (Ellsworth Toohey).
[Excerto de
“The fountainhead”: O conselho de administração do Security Bank of Manhattan
tenta convencer Roark a suavizar o projecto da nova sede, que acham “demasiado
diferente, demasiado original”, com uns “toques de dignidade clássica”. “Há
sempre que fazer cedências ao gosto médio”, justificam eles. O indómito Roark
recusa-se a transigir]
O sucesso
de The fountainhead trouxe a Rand melhores contratos e oportunidades como
guionista e deu-lhe também protagonismo nas campanhas anti-comunistas da
América do pós-guerra – juntou-se à Aliança Cinematográfica para a Preservação
dos Ideais Americanos e foi testemunha no Comité de Actividades Anti-Americanas
do senador McCarthy.
Em 1956
surgiu A revolta de Atlas, que retoma e desenvolve temas abordados em The
fountainhead, agora sob a forma de uma ficção distópica, em que, em resposta à
tentativa do Estado de sufocar toda a criatividade e iniciativa individual, em
nome do colectivismo, as mentes criativas e empreendedoras dos EUA criam um
enclave autónomo no coração montanhoso do país (o enredo tem um elemento verdadeiramente
visionário: um dos eixos da nova dinâmica económica que brota no Colorado é o
método de exploração do petróleo de xisto desenvolvido por Ellis Wyatt). A
componente de explanação filosófica já patente em The fountainhead torna-se
mais conspícua em A revolta de Atlas – o livro está ao serviço do Objectivismo,
a filosofia concebida por Rand e que defende o racionalismo, o individualismo e
o mercado livre. A intenção da autora, explicitada em notas de 1945. é “mostrar
como o mundo necessita desesperadamente de motores principais [os criadores e
empreendedores visionários], mas também como os trata cruelmente”.
Depois de
“A revolta de Atlas”
O sucesso
de A revolta de Atlas – apesar das reacções frias da crítica literária – levou
a que Rand proclamasse numa entrevista ser “o pensador vivo mais criativo” do
mundo. Poderia pensar-se que o sucesso lhe dera volta à cabeça, mas em textos
de 1946 já ela se gabava de que “criar uma abstracção nova e original e
traduzi-la através de novos meios originais [de escrita ficcional] tanto quanto
sei, sou só eu”. Não há, porém, nada de radicalmente novo nem no
conteúdo nem na forma dos romances de Rand. A sua prosa é eficaz e desenvolta mas convencional, conformando-se ao
registo épico hollywoodesco e caindo frequentemente no cliché. E alguns trechos
– como a descoberta do motor enigmático na fábrica abandonada da Companhia de
Motores Século XX – descem ao nível do livro de aventuras juvenil.
A revolta
de Atlas marca uma inflexão na carreira de Rand: daí em diante deixou de
escrever ficção e consagrou-se aos ensaios e ao desenvolvimento e disseminação
do Objectivismo, para o que contou com a ajuda do Ayn Rand Collective, um
círculo íntimo de admiradores que rodeou Rand quando ela se mudou para Nova
Iorque no início dos anos 50 (a menção a “colectivo” num grupo que exaltava o
individualismo era, claro, irónico).
Entre as
figuras mais activas deste grupo está Nathaniel Branden (1930-2014), que
abandonou o seu nome de baptismo, Nathan Blumenthal, depois de conhecer Rand e
se consagrou à divulgação do Objectivismo, através da fundação, em 1958, do
Nathaniel Branden Institute e de The Objectivist Newsletter (antecessor de The
Ayn Rand Newsletter) e da escrita de livros sobre Rand e o seu sistema filosófico.
Até que em 1968 Rand acusou publicamente Branden de “irracionalidade
filosófica” e de desequilíbrio psicológico (Branden retorquiu que Rand ficara
furiosa por ele ter recusado envolver-se sexualmente com ela) e cada um seguiu
o seu caminho. O filósofo Leonard Peikoff (n. 1933), que se juntou ao grupo de
admiradores de Rand em 1951, tornou-se no seu herdeiro espiritual e fundou em
1985 o Ayn Rand Institute e é ele que assina o prefácio – hagiográfico e
acrítico – da reedição de 1991 de Atlas shrugged, reproduzido na edição
portuguesa.
Nos anos 60
e 70, Rand publicou vários ensaios mas, como é natural, estes não lograram
alcançar um público tão vasto como os seus romances: For the new intellectual
(1961), The virtue of selfishness (1964), um título que é todo um programa,
Capitalism: The unknown ideal (1966), The romantic manifesto (1969), The
anti-industrial revolution (1971), Introduction to objectivist epistemology
(1979) e Philosophy: Who needs it (1982, edição póstuma). Entre 1971 e 1976
publicou ainda uma newsletter, The Ayn Rand Letter.
Rand foi
também muito activa como conferencista – sobretudo no meio universitário – e
foi espalhando pelo mundo as suas posições conservadoras em relação ao
colonialismo e à homossexualidade. No fim da vida trabalhou numa adaptação
televisiva (pela NBC) de A revolta de Atlas, mas a morte, a 6 de Março de 1982,
impediu-a de completar este guião.
A ideia de
adaptar A revolta de Atlas ao grande ou ao pequeno écran, que vem do início dos
anos 70, só se concretizou em 2011, com o filme “Atlas shrugged part I”,
realizado por Paul Johansson. A 2.ª parte estreou em 2012 e a 3.ª e última em
2014 e todas tiveram recepção crítica invulgarmente desfavorável – o agregador
de críticas cinematográficas Rotten Tomatoes regista 11% de aprovação para a I
parte, 4% para a II e 0% para a III.
Os leitores
estão com Ayn Rand
Em 1998, a
editora Modern Library pediu ao seu conselho editorial, formado por luminárias
do meio cultural norte-americano (entre os quais se contavam nomes como Daniel
Boorstin, A.S. Byatt William Styron ou Gore Vidal), para escolher os 100
melhores romances do século XX. A votação resultou numa lista – que ficou
conhecida como Editor’s List – encabeçada por 1) Ulisses, de Joyce, 2) O grande
Gatsby, de Fitzgerald, 3) Retrato do artista quando jovem, de Joyce, 4) Lolita,
de Nabokov, 5) Admirável mundo novo, de Huxley, 6) O som e a fúria, de
Faulkner, 7) Catch-22, de Heller, 8) O zero e o infinito, de Koestler, 9)
Filhos e amantes, de D.H. Lawrence, e 10) As vinhas da ira, de Steinbeck. Não é
uma lista inesperada, nem sequer no seu clamoroso enviesamento em favor da
literatura de língua inglesa – são todos títulos “canónicos”.
Bem diverso
foi o resultado que se obteve quando se fez pedido similar ao leitor anónimo
norte-americano. A Reader’s List 100 Best Novels tem nos dez primeiros lugares
1) A revolta de Atlas, de Rand, 2) The fountainhead, de Rand, 3) Terra: campo
de batalha, de L. Ron Hubbard, 4) O senhor dos anéis, de Tolkien, 5) Não matem
a cotovia, de Harper Lee, 6) 1984, de Orwell, 7) Anthem, de Rand, 8) We the
living, de Rand, 9) Missão Terra, de Hubbard e 10) Fear, de Hubbard.
Em 10
títulos, quatro são de Rand e três do guru da Cientologia, o que mostra quão
arredados são os interesses, critérios e gostos das massas e da elite (nenhum
dos livros de Rand e Hubbard surge nos 100 da Editor’s List) e quanto as
convicções ideológico-filosóficas se sobrepõem aos critérios literários na
apreciação do “povo”: em dez livros, oito (os de Rand, Hubbard e Orwell) aliam
ao escasso ou nulo valor literário uma forte componente “filosófica” – são
romances-ensaio ou até romances-panfleto, em que a ficção é posta integralmente
ao serviço da explanação/promoção de uma concepção ideológica ou de uma
mundividência.
A votação
da Reader’s List deve ser tomada com as cautelas e reservas inerente a qualquer
“voto popular” ou “sondagem de opinião” (é impossível não evocar a afirmação
“considerado pelos portugueses o melhor escritor nacional” com que José Rodrigues
dos Santos é promovido na badana do seu romance mais recente), sobretudo quando
não tenha sido apurado através de métodos científicos de amostragem. As
votações para as Reader’s List 100 Best Novels não representam o universo de
leitores mas a fracção que se voluntariou para exprimir a sua escolha (cerca de
200.000), o que, claro, faz com que os “crentes” (e, sobretudo, os “fanáticos”)
estejam largamente sobre-representados.
A
popularidade de Rand e Hubbard é também distorcida por outros factores. Os
livros de Hubbard são activamente promovidos pela Igreja da Cientologia, quer
através de pressões informais, vindas da hierarquia e dos correligionários,
para que os fiéis desta seita os comprem e leiam, quer por a Igreja efectuar
compras de quantidades maciças de livros através das suas delegações e instruir
explicitamente fiéis a adquirirem dois ou três exemplares cada um, de forma a
que o livro figure em lugar proeminente nos tops de vendas.
Quanto a
Rand, tem a trabalhar a seu favor o Ayn Rand Institute, que distribui os seus
livros gratuitamente pelas escolas, um escoamento que corresponde a 10% do
volume total de vendas. E há que reconhecer que The fountainhead e A revolta de
Atlas são, quando não se enredam na explanação da mundividência da autora (na
III parte de A revolta de Atlas há um discurso radiofónico que se estende por
70 páginas), um entretenimento competentemente estruturado e redigido, conforme
às regras do filme de acção da era clássica de Hollywood e com uma componente
de tensão e suspense que os transforma, aos olhos de muitos leitores, num
irresistível page-turner.
Seja como
for, o domínio esmagador de Rand e Hubbard nas preferências “populares” dos
leitores não pode ser ignorado, pois revela algo sobre uma fracção substancial
dos cidadãos americanos.
Quando é
preciso um actor para encarnar um barão da droga ou um poderoso e enigmático
magnata argentino, pode contar-se sempre com Joaquim de Almeida, aqui na pele
do misterioso milionário/playboy Francisco d’Anconia, que tem um envolvimento
amoroso com Dagny Taggart (Laura Regan), a mulher-de-armas da Taggart
Transcontinental, em Atlas Shrugged part III
E as elites
políticas e empresariais também…
Entre os louvores
a A revolta de Atlas reproduzidos na contracapa da edição portuguesa lê-se que
o romance “é a celebração da vida e da felicidade”, uma frase que provém de
Alan Greenspan (n. 1926), que foi presidente da Reserva Federal durante 19
anos, entre 1987 e 2006, ou seja, o homem que, vendo no mercado a fonte última
de racionalidade e o egoísmo e a livre iniciativa como motores do mundo, apoiou
a privatização da Segurança Social e deixou o sistema financeiro
norte-americano chocar a bolha especulativa que estoirou em 2007. Não se pense
que a frase de Greenspan sobre A revolta de Atlas é apenas um comentário
distraído de um economista proeminente que dispensa uma atenção passageira a um
ou outro romance, entre um relatório financeiro e o seguinte: no início dos
anos 50, Greenspan fez parte do Ayn Rand Collective, ouviu a autora ler
rascunhos do romance para a plateia de eleitos, ainda antes da publicação, e
converteu-se ao Objectivismo.
Nos salões
e festivais literários discute-se recorrentemente se a literatura é capaz de
mudar o mundo, e a conclusão tende a ser negativa, mas isso é porque se está a
pensar em escritores como Paul Celan, Bruce Chatwin, Wisława Szymborska, Camilo
José Cela ou W.G. Sebald, cujos livros se têm mostrado incapazes de interferir
com as cotações do Dow Jones ou com as notações das agências de rating. Mas os
autores relevantes para a história da literatura não são necessariamente os
mesmos que são relevantes para a história do mundo e é possível que Ayn Rand
seja um dos escritores mais influentes de todos os tempos e que A revolta de
Atlas tenha feito mais para condicionar a marcha da história do que Mein Kampf,
que foi comprado e oferecido aos milhões, mas que foi muito pouco lido (o que é
perfeitamente compreensível, dado que está ineptamente escrito e argumentado).
As posições
de Rand em defesa do mercado livre e da redução da esfera de influência do
Estado e a sua exaltação do génio individualista e do empresário visionário têm
suscitado a adesão de muita figura grada de Silicon Valley e da “nova economia
digital”: é o caso de Steve Jobs, para quem A revolta de Atlas foi (segundo o
seu amigo e parceiro de negócios Steve Wozniak) um livro que norteou a sua
vida; de Travis Kalanick, ex-CEO da Uber; de Peter Thiel, um dos primeiros
investidores a apostar no Facebook e um apoiante de Trump; de Evan Spiegel,
co-fundador e CEO da Snapchat e um dos mais jovens bilionários do mundo; ou de
Mark Cuban, milionário dos media, dono da equipa de basquetebol Dallas
Mavericks e um dos “tubarões” do programa Shark tank, que declarou em 2006 que
The fountainhead lhe moldou o modo de pensar e a atitude perante a vida (e
serviu também para baptizar o seu iate).
É natural
que uma autora que defende que o egoísmo é uma virtude, que a vida é uma
competição implacável e cujos heróis proclamam que “a competência no trabalho
[…] é a única medida do valor humano” seja bem acolhida junto dos campeões do
empreendedorismo, dos CEOs das start-ups e dos “unicórnios” e dos directores
das “business schools”.
A crise
decorrente do estoiro da bolha do sub-prime deveria ter mostrado (a quem não o
tivesse percebido antes) que o egoísmo e a falta de regulação defendidos por
Rand podem ter consequências catastróficas para a economia, mas a humanidade
está pouco disponível para aprender lições e as vendas dos livros de Rand
aumentaram significativamente depois de 2007. E a ideia de que “somos nós [os
egoístas visionários] que movemos o mundo e somos nós que o vamos salvar” (pg.
126) encontrou eco na célebre declaração de Lloyd Blankfein, CEO da Goldman
Sachs, em 2009: “Estamos a fazer o trabalho de Deus”. E isto quando ainda não
tinham acabado de cair os destroços e estilhaços da explosão da bolha
financeira de que a sua empresa era co-responsável.
Muitas
figuras proeminentes da direita norte-americana – sobretudo na órbita do Tea
Party e da alt-right têm manifestado a sua identificação com as ideias de Rand.
Paul Ryan,
uma das figuras cimeiras do Partido Republicano e que ocupa hoje a posição de
speaker na Câmara dos Representantes, declarou que cresceu com os livros de
Rand e que foram eles que o levaram a abraçar uma carreira política. É um
activo prosélito do Objectivismo, tendo oferecido um exemplar de A revolta de
Atlas a cada membro da sua equipa e, como Rand, vê a Segurança Social como um
sistema de inspiração socialista (note-se que, na sua boca e nos ouvidos dos
seus eleitores, “socialismo” é uma palavra suja). Mais reveladora ainda é a
declaração de 2009 em que Ryan vê a situação dos EUA e do mundo como saída de
“um romance de Ayn Rand. Acho que Ayn Rand fez melhor do que qualquer outra
pessoa, a justificação moral do capitalismo e que essa moralidade do
capitalismo está hoje sob ataque”.
Durante
algum tempo circulou o rumor de que Rand Paul, senador republicano e filho de
Ron Paul, teria sido assim baptizado em homenagem a Ayn Rand. Não parece ser
fundado, apesar da inegável devoção por Rand de Ron Paul – candidato à
presidência dos EUA pelo Partido Libertário em 1988 e candidato nas primárias
do Partido Republicano em 2008 e 2012 –, que foi manifestada, entre outras
ocasiões, por um discurso numa universidade em 2007, em que reconhece que Rand
teve grande influência sobre ele, apesar de discordar das suas posições sobre
religião.
O juiz do
Supremo Tribunal Clarence Thomas (nomeado por George Bush pai, em 1990) faz os
novos membros da sua equipa assistir ao filme “The fountainhead” (e não será
certamente por razões cinematográficas).
Rex
Tillerson, Secretário de Estado da administração Trump, elegeu, em 2008, A
revolta de Atlas como livro favorito e esta sua declaração, no tempo em que era
CEO da ExxonMobil, poderia ter sido colocada por Rand na boca de Ellis Wyatt, o
empresário do petróleo de xisto do Colorado: “A minha filosofia é fazer
dinheiro. Se eu puder perfurar e fazer dinheiro, é isso que farei”.
Já Steve
Bannon, fundador do Breitbart News (um dos mais influentes websites de
inspiração alt-right), um dos principais ideólogos por trás de Trump e até há
pouco tempo chefe de estratégia da Casa Branca, tomou posição, num discurso em
2014, contra o “capitalismo libertário” defendido por Ayn Rand, considerando-o
tão nefasto quanto o “capitalismo de Estado” praticado na Rússia e na China, e
advogando, em alternativa, aquilo que designa por “capitalismo iluminista”, de
inspiração judaico-cristã (talvez o facto de a conferência em questão ter tido
lugar no Vaticano tenha influenciado estas palavras).
“Goddess of
the market: Ayn Rand and the American right” (2009), uma biografia de Rand por
Jennifer Burns, que enfatiza a influência do pensamento de Rand sobre os
movimentos libertários e conservadores nos EUA
Não é
coincidência que tantos membros da administração Trump (ou figuras que foram
consideradas para ela e depois rejeitados) sejam admiradores dos livros e das
ideias de Rand – o próprio Presidente dos EUA se conta entre os fãs.
Donald
Trump e Howard Roark: Duas almas gémeas?
Numa
entrevista de 2016 com Kirsten Powers, Donald Trump elegeu The fountainhead
como um dos seus livros favorito: “Tem a ver com negócios, beleza, a vida e
emoções íntimas. É um livro que tem a ver com tudo”. A apreciação parece mais
própria de uma Miss Kentucky do que de um Presidente dos EUA, mas o que salta
mais à vista é que o apreço de Trump por Rand é incongruente com as promessas e
a prática de Trump de fazer o seu governo interferir com o mercado, desfazendo
acordos de comércio livre e impondo barreiras aduaneiras.
Mas
congruência é algo que não pode pedir-se a alguém com a estrutura psicológica
de Trump e, provavelmente, o seu interesse por The fountainhead não tem a ver
com a ideologia de Rand mas com a sua identificação com Howard Roark: o homem
de acção determinado e inflexível, que paira acima da carneirada e ousa
desafiar o establishment, o macho-alfa de cabelo alaranjado (é verdade, também
Roark o tem) a quem mulher alguma resiste e cuja técnica de sedução está
sintetizada em “grab’em by the pussy” – e vale a pena considerar que a primeira
cena de sexo entre Roark e Dominique Francon anda perto de ser uma violação,
com Dominique a desempenhar um ambíguo papel entre provocadora e vítima
submissa.
Seja o que for que Trump pense e a que imagem tenha de si
mesmo (já se sabe que narcisismo e bravata são os seus fortes), o seu perfil e
historial como “empresário de sucesso” não poderiam estar mais afastado dos
heróis dos romances de Rand. Bastaria
atentar nestas palavras de Howard Roark: “O homem que trapaceia e mente, mas
preserva uma fachada respeitável. Sabe no seu íntimo que é desonesto, mas os
outros julgam-no honesto e ele retira daí o seu amor-próprio, em segunda mão. O
homem que aceita ser creditado por algo que não realizou. Ele sabe ser um
medíocre, mas é grande aos olhos dos outros […] O homem cujo único objectivo é
fazer dinheiro […] Se ele o quer para um propósito pessoal – investir na sua
empresa, criar, estudar, viajar, desfrutar do luxo – é absolutamente moral. Mas
os homens que colocam o dinheiro em primeiro lugar vão muito para lá disso […]
O que querem é ostentação: exibir, entreter, impressionar os outros. São também
gente de segunda mão […]”.
Trump terá
talvez saltado esta passagem, ou se a leu, como narcisista incorrigível que é,
entendeu que não lhe dizia respeito.
[Seguidores
de Rand pelo mundo fora exprimem as suas reservas em relação a Trump: ter
gostado de The fountainhead não o qualifica como objectivista e um dos
entrevistados vê-o antes como um oportunista]
A paixão da
direita americana por Rand assenta em equívocos?
Na
idolatria dos políticos da direita americana por Rand há uma contradição
impossível de sanar: eles são, quase sem excepção, cristãos devotos e a sua
suposta musa era uma ateísta irredutível, que via a religião como absolutamente
incompatível com o Objectivismo. Não podemos, sem recurso a uma mesa de
pé-de-galo, saber o que Rand pensaria hoje dos seus fãs da alt-right, mas
podemos fazer algumas extrapolações a partir do que Rand disse sobre Ronald
Reagan. No seu último discurso público, em Outubro de 1981, no National
Committee for Monetary Reform, classificou a administração de Ronald Reagan
(que assumira a presidência em Janeiro desse ano) como uma “desgraça pavorosa”,
acusou Reagan de pactuar com a Moral Majority (um lobby conservador) e os
pregadores televisivos na tentativa de impor as suas ideias religiosas a outras
pessoas e repudiou a sua intenção de “fazer os EUA regredir para a Idade Média
através da união inconstitucional entre religião e política”, e apontou a
contradição de Reagan alegar ser um defensor das liberdades e, ao mesmo tempo,
ter a intenção de proibir o aborto.
[Último
discurso público de Rand, em Outubro de 1981]
Alguns dos
políticos que tinham exprimido uma identificação total com Rand têm vindo a
fazer “recuos estratégicos”, à medida que descobrem que a ideologia de Rand não
é exactamente o que eles pensavam ou quando calculam que a sua identificação
com uma filosofia que defende o ateísmo e o aborto poderá fazer-lhes perder
eleitores. É o caso de Paul Ryan, que em 2012 classificou a sua adesão ao
ideário de Rand como uma “lenda urbana” (“é uma filosofia ateísta que reduz as
relações humanas a meros contratos e que é a antítese da minha mundividência”)
e afirmou que o seu pensamento está afinal fundado em… São Tomás de Aquino.
Talvez
parte da recente onda de entusiasmo por Rand entre a alt-right resulte de uma
leitura superficial ou equívoca dos seus livros. Se é certo que um “romance
filosófico” de tom épico e pleno de tensão, suspense e reviravoltas inesperadas
exerce muito maior apelo junto das massas do que um ensaio filosófico, a margem
de subjectividade e ambiguidade que uma obra de ficção necessariamente comporta
– mesmo aquelas que têm um propósito didáctico – faz com que apenas parte da
“mensagem” atinja os leitores, sobretudo se forem leitores com hábitos de
leitura rarefeitos e limitados.
Quando o
interesse pelos livros de Rand recrudesceu no rescaldo da crise do sub-prime,
Barack Obama comentou “Ayn Rand é um daqueles autores que podem tocar-nos
quando temos 17 ou 18 anos e nos sentimos incompreendidos. Depois, quando
crescemos, percebemos que um mundo em que só pensamos em nós mesmos e os outros
são irrelevantes […] é uma visão muito estreita”.
Manifestação
do Tea Party, em Chicago, 2009: um manifestante identifica-se com John Galt, um
dos heróis de A revolta de Atlas
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Ayn Rand e
os eleitores americanos
Numa
entrevista televisiva realizada pouco depois do discurso no National Committee
for Monetary Reform, em 1981, Rand detalhou alguns aspectos da sua visão da
situação política americana da altura: acusou os homens de negócios americanos
de terem vergonha de terem enriquecido e de financiarem universidades que
promovem propaganda anti-capitalista e reprovou Reagan por ter um pendor
demasiado… socialista: “Não é o advogado adequado do capitalismo; ele não é a
favor do capitalismo, defende uma economia mista”. E conclui Rand: “o público
está farto do Estado social [Welfare State] e gostaria de regressar a um
americanismo racional”.
[Uma das
últimas entrevistas de Ayn Rand, com Louis Rukeseyer, em 1981]
Pode
perguntar-se o que sabe Rand sobre o sentir do “público” americano que a
autoriza a falar em nome dele, mas não deixa de ser verdade que há largos
sectores do eleitorado americano que vêm o Estado social como um incentivo ao
parasitismo – nalgumas manifestações do Tea Party viam-se cartazes que exigiam
“Free markets, not freeloaders”, um trocadilho intraduzível cujo sentido é
“mercados livres, não parasitas”, sendo “freeloader” uma expressão que designa
quem desfruta de algo (comida, alojamento) de borla, à custa de outrem.
Também está
amplamente disseminada junto de muitos eleitores a ideia veiculada por A
revolta de Atlas de que Washington e o governo federal são antros de políticos
e funcionários incompetentes e corruptos e de lobbistas, que funcionam como
sorvedouros de dinheiro e ameaças à livre iniciativa e às liberdades
individuais e que o Estado é ineficiente a desempenar muitas das suas funções,
pelo que é urgente diminuir a esfera de intervenção do Estado (o conceito de
“menos Estado é melhor Estado”, também com voga na Europa).
Washington,
12 de Setembro de 2009: a Marcha dos Contribuintes (Taxpayer March), promovida
pelo Tea Party, protesta contra o “Big Government” e a sua interferência
nefasta na vida dos cidadãos, nomeadamente a tentativa de criar uma aproximação
a um Sistema Nacional de Saúde (o chamado Obamacare)
Tem também
ampla expressão – não só na América – a ideia – claramente transmitida em A
revolta de Atlas – de que o capitalismo sem freio é a forma mais eficaz de
gerar riqueza e que esta, mesmo que beneficie mais os capitalistas, acaba por
espalhar as suas bençãos a toda a sociedade, enquanto o socialismo (entendido
aqui no sentido lato de qualquer ideologia política com consciência social) é
tão obcecado com a redistribuição e a igualdade que acaba por coarctar e minar
as iniciativas dos empresários visionários e debilitar a economia, condenando
toda a sociedade à pobreza – uma pobreza que oferece o dúbio consolo de ser
igualitária.
E,
finalmente, deve considerar-se que o ambiente de decadência e retrocesso
civilizacional que permeia A revolta de Atlas corresponde, de alguma forma, à
imagem que Trump e os seus estrategas de campanha conseguiram impingir a um
eleitorado pouco esclarecido sobre assuntos económicos e financeiros: o país
estava a definhar a olhos vistos – quando na verdade, Obama deixou a economia
americana bem mais pujante do que a recebeu das mãos de George W. Bush – e para
fazer “America great again” era preciso votar Trump.
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