Os centros
das cidades estão a ser reconstruídos ao ritmo de T0 e T1
A
"financeirização" da habitação urbana está a impor tipologias
pequenas nos prédios reabilitados. Arquitectos pedem cuidados na reabilitação e
defendem que tem de ser possível regressar a estas fracções quando o boom do
turismo abrandar.
LUÍSA PINTO
14 de Novembro de 2017, 6:30
Em Lisboa, no último ano e meio, surgiram
centenas de projectos dedicados ao alojamento de turistas, entre hotéis e casas
A
estratégia do Governo que está actualmente em consulta pública e preconiza uma
“Nova Geração de Políticas de Habitação” defende “a promoção da reabilitação do
edificado” e a dinamização “do mercado de arrendamento para fins habitacionais
permanentes” nos centros urbanos. Surge numa altura em que a dinâmica da
reabilitação está em alta e a colocação de fogos no mercado também. Contudo,
estas casas não são para o arrendamento de longa duração, mas antes para o
turismo e o alojamento local. E as tipologias que estão a ser colocadas, quase
sempre de dimensões mínimas, a insistir nos T0 e T1, também parece adequarem-se
pouco ao regresso das famílias aos centros das cidades. E os que aí procuram
habitação permanente esbarram com grandes dificuldades.
Hoje, é
possível encontrar um T0 com 15 metros quadrados em plena Rua de Cedofeita, no
Porto, a custar 1200 euros de renda mensal. Em Lisboa, um T1 em Alfama custa
facilmente 2200 euros por mês. O discurso de quem procura é sempre o mesmo: o
que existe disponível ou está em muito mau estado ou tem rendas altíssimas, e
há muito pouca oferta para arrendamento de longa duração. “Enquanto o turismo
estiver com esta força toda no centro da cidade, vai ser muito difícil
convencer um proprietário a tirar casas do alojamento local em troca de
benefícios fiscais”, resume Adriana Floret, fundadora de um dos primeiros
gabinetes de arquitectura dedicados à reabilitação urbana no Porto, em 2001.
Fundos para
a Reabilitação já chegaram à banca comercial
O
alojamento de curta duração, as pequenas tipologias que permitem colocar
maiores números de fracções no mercado, e obter rentabilidade imediata é,
ainda, demasiado apetecível. “Corremos o risco de estarmos a perder diversidade
cultural e social dentro da cidade, de estarmos a criar uma cidade com cafés,
restaurantes e hotéis. Uma monocultura”, avisa Adriana Floret.
Contar a
história de Adriana Floret, no Porto, é contar um pouco a revolução [“não há
outro nome para nos referirmos ao tanto que mudou em tão pouco tempo”, refere]
que viveram os centros históricos das cidades de Lisboa e Porto. Adriana
começou a trabalhar na reabilitação em 2001, fez os primeiros levantamentos
patrimoniais para a Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) do Porto e lembra-se
de haver quarteirões inteiros, como um na Rua do Almada, em que havia apenas
uma habitante, num quinto andar de um prédio envelhecido e sem elevador. E
lembra-se de telefonar para um proprietário de três prédios na rua Mouzinho da
Silveira para pedir autorização para fazer esse levantamento e este começar por
negar que ali tivesse alguma propriedade - “Aquilo estava de tal modo esquecido
que os proprietários nem se lembravam que ali tinham património que hoje em dia
vale milhões", ilustra.
A
reabilitação urbana demorou a chegar. Entre 2000 e 2014, o atelier de Adriana
esteve envolvido em cerca de 60 projectos. “Foi preciso uma espécie de
evangelização”, acrescenta David Araújo, marido de Adriana, também arquitecto,
dizendo que eles próprios tiveram de se acomodar. Tinham um edifício na Rua
de Entreparedes (bem perto da Praça da
Batalha): o escritório em baixo, a casa de ambos por cima. “Comprámos há cinco
anos, uma casa para recuperar, achávamos que era um projecto para a vida”,
relata David. Só que não: precisaram de alargar o atelier (hoje já trabalham 11
pessoas na Floret Arquitectura) e o preço que lhe ofereceram para comprar o
imóvel foi irrecusável. Acabaram por se afastar do centro, mudaram-se para mais
perto do Marquês, onde encontraram o espaço adequado a preços comportáveis. O
edifício de Entreparedes vai albergar um projecto turístico.
Preços
aumentaram 88% em cinco anos
Uma
consulta aos números da Confidencial Imobiliário, uma empresa que se dedica à
estatística do sector revela que só no último ano e meio surgiram 129 hotéis em
Lisboa e no Porto. Projectos turísticos, onde entram guesthouses ou alojamento
local, fortalecem estes números: em Lisboa 38 em construção nova, 62 em
edifícios reabilitados; no Porto 34 projectos de construção nova, 66 em
edifícios reabilitados.
Mas estes
números não dizem tudo, porque há muitos projectos que são licenciados para
habitação e só depois colocados no mercado do alojamento local. Olhando só para
as obras de reabilitação, entre o primeiro trimestre de 2016 e o segundo de
2017 entraram na ADENE, a entidade que faz a obrigatória certificação
energética no âmbito do licenciamento de obras, mais de 3200 projectos que vão
colocar no mercado 7400 fogos. A oferta tem aumentado, mas a procura parece ser
bem superior: nos últimos cinco anos os preços subiram 88% na Baixa do Porto e
56% no centro histórico de Lisboa.
Voltando ao
exemplo do atelier de Adriana Floret, um dos muitos que trabalham na cidade do
Porto, a empresa tem actualmente em mãos tantos projectos como aqueles em que
esteve envolvida durante 14 anos: tem mais de 65 projectos em curso, sendo que
mais de metade dos proprietários são investidores estrangeiros. ”A grande
maioria dos programas que estão a ser trabalhados pelo atelier é para a
reabilitação de edifícios de apartamentos cuja venda já esta concretizada ainda
antes do imóvel estar (re)construído”, garante.
“O que
sentimos é que o turismo tem permitido, para o bem e para o mal, reabilitar os
edifícios. Mas é preciso ter algum cuidado, porque têm vindo a ser muito
alterados, e descaraterizados até, com a introdução de tipologias de pequena
dimensão, e para dar resposta aos actuais níveis de exigência térmica e
acústica. Daqui a uns anos vamos precisar de regressar a estes T0 e T1, para os
reabilitar, para os fazer crescer. Mas o pior, para mim, é estarmos a demolir o
que existe para reconstruir imitações. Estamos a perder o genuíno para criar o
pitoresco”, adverte.
Flexibilidade
precisa-se. E existe
Teresa
Nunes da Ponte, arquitecta em Lisboa, concorda que há uma tendência para a
ocupação das áreas do centro histórico com fogos T0 e T1 para utilização
essencialmente turística, para actividades do tipo de short renting. “Talvez
seja a forma mais rentável, não sei se será uma inevitabilidade. Mas o que é
certo é que são programas com muito sucesso neste momento, o que torna difícil
contrariar a sua implementação”, acrescenta. Argumentando ser difícil ao
arquitecto ter margem de manobra para alterar esse tipo de programas, defende
que o projecto “pode prever formas futuras de juntar apartamentos e tentar
justificar as distribuições de espaços nesse sentido”. “Penso que há argumentos
sólidos capazes de convencer um promotor, com base na possível evolução da
cidade, que esta é um organismo vivo”, defende.
Carlos
Azevedo, de Coruche, João Crisóstomo, de Coimbra, e Luís Sobral, da Guarda,
fundadores do gabinete de Arquitectura Depa, defendem que os arquitectos devem
ter sempre todos estes problemas em mente, e tentar convencer os proprietários
a apostarem na flexibilidade das propostas.
Conheceram-se
na faculdade de arquitectura em Coimbra e foi no Porto que decidiram colocar
todas as fichas profissionais. Apesar de serem uma realidade relativamente
recente enquanto empresa, têm já no seu portefólio de projectos vários exemplos
do que teimam em defender. A Casa do Rosário, que mereceu um prémio de
reabilitação, é uma moradia unifamiliar do século XIX, em pleno Quarteirão das
Artes. Quando foi comprada, já estava dividida em três casas, com um inquilino
por piso. A obra foi feita sempre com a moradora do rés-do-chão, de 90 anos, a
viver no edifício. Entretanto, a inquilina faleceu, há duas famílias a residir
ali de forma permanente, e há dois apartamentos colocados no alojamento local.
“Pensamos num intervenção pouco destrutiva, para que essa flexibilidade exista.
A todo o momento pode ser uma moradia unifamiliar, de novo”, esclarece Luís Sobral.
Carlos Azevedo acrescenta que esta pressão na Baixa está a criar oportunidades
para alargar as áreas de intervenção, que hoje em dia já chegam à zona oriental
da cidade, como Campanhã e o Bonfim.
As
motivações dos global homebyers
Sandra
Marques Pereira, investigadora do Centro de Estudos sobre a Mudança
Socioeconómica e o Território do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa
sublinha que é importante acautelar os excessos do turismo, mas sublinha que a
extrema visibilidade que merecem na reocupação funcional do centro não pode
ocultar outras realidades muito importantes.
“Os
investidores internacionais têm um peso crescente nos centros das cidades. São
os global homebuyers têm motivações diferentes que não passam exclusivamente pelo
investimento no turismo, concretamente o alojamento local. Alguns estabelecem
residência na cidade, mais ou menos permanente, e outros fá-lo-ão, por exemplo,
como estratégia facilitadora de entrada na Europa”, acrescenta a sócióloga
urbana.
João Crisóstomo,
no Depa Arquitectura, dá um exemplo que ajuda a explicar porque é que os preços
são tão elevados: os terrenos são transaccionados várias vezes antes de serem
intervencionados e há sempre um especulador a cobrar a sua margem. “As
construções na baixa são sempre feitas de calculadora na mão. Fazem-se as
contas de quanto se vai cobrar por noite por cada T0 para mais rapidamente
recuperar o investido”, refere.
A
investigadora Sandra Marques sintetiza o problema referindo-se à “nova
realidade da habitação urbana” que está omissa nos documentos do governo: a
"financeirização" e internacionalização do investimento imobiliário
“que introduz uma disrupção total entre a oferta a procura”. “Isto é uma
realidade em muitas cidades, a nível internacional, mas que, no caso português,
é ainda mais grave pois o rendimento médio da população está muito aquém do
europeu”, sublinha, defendendo por isso que “não faz sentido o cálculo da renda
a preços acessíveis ser feito a partir da oferta”.
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