"A noite de Lisboa é de exclusão social"
Jordi Nofre, investigador que estuda a noite lisboeta há
oito anos, critica a inexistência de um plano estratégico para a vida nocturna,
acusa a câmara de passividade perante os problemas, fala da discriminação
racial em discotecas e propõe formação contínua para seguranças.
JOÃO PEDRO PINCHA 11
de Novembro de 2017, 8:30
O LxNights,
grupo de investigação académica sobre a noite de Lisboa e as transformações urbanas
que ela provoca, existe há quatro anos. Em Abril, o grupo composto por
investigadores da Universidade Nova e do ISCTE criou o Observatório do Lazer
Nocturno em Lisboa, que ainda procura financiamento.
Jordi
Nofre, o catalão que é o principal investigador do LxNights, explica como essa
estrutura pode ajudar a mudar para melhor a vida nocturna na cidade. E propõe
um plano de acção focado na saúde pública, na segurança, na mobilidade, na
cultura e no combate à exclusão social e ao patriarcalismo.
Com que
objectivos foi criado o Observatório?
Por um
lado, monitorizar a noite através da recolha de informação quantitativa e
qualitativa. Criar indicadores que possam ser utilizados para analisar a
evolução da noite. Não só em relação ao consumo de álcool e drogas, mas também
relativamente à habitabilidade dos bairros com forte presença de lazer
nocturno. Ou em relação à coexistência de diferentes grupos sociais na noite,
que às vezes pode acabar em episódios violentos. A monitorização destes
indicadores permitiria fazer relatórios, trimestrais por exemplo, que seriam
discutidos com todos os actores envolvidos na noite, que serviriam também para
fazer propostas de novas políticas públicas para uma noite mais inclusiva, mais
saudável e mais sustentável.
Esses
indicadores não existem?
Não. Nós
achamos que há essa necessidade. Temos vindo a trabalhar neste assunto nos
últimos quatro anos, como grupo, alguns de nós há oito de forma individual. E
temos identificado que há impactos negativos de âmbito social e espacial, de
saúde pública, de governança. Não há um plano estratégico. Ou seja, a vida
nocturna em Lisboa é um dos elementos centrais da estratégia de turismo da
região, mas não há um plano. Se não há, como é que os agentes envolvidos podem
avançar? Como é que pode ser criada uma mediação entre os actores se não há um
regulamento definido? Portanto, criam-se situações a que nós chamamos
“governança liminar”, em que cada um faz o que quer. Isto porque não há
mediação, como por exemplo tem Berlim, Londres, Nova Iorque e muitas outras
cidades.
Devia haver um vereador na câmara com este pelouro?
Tem de ser
independente. Porque a câmara é um actor. Os actores têm de estar no mesmo
plano horizontal, com uma pessoa na coordenação. A câmara é um actor
fundamental na noite, assim como os clientes, os moradores, os proprietários de
bares. Uma estrutura vertical, do nosso ponto de vista, não seria a melhor.
"A
vida nocturna em Lisboa é um dos elementos centrais da estratégia de turismo da
região, mas não há um plano estratégico para ela"
Teria de
ser, portanto, uma pessoa ou um gabinete sem ligações à câmara?
Sim, a
nossa proposta é que se crie uma Lisbon Nightlife Commission ou algo do género.
Face ao contexto tão particular de Lisboa, sobretudo em relação à divisão
administrativa, seria interessante ter essa comissão, mas também cada junta de
freguesia, nomeadamente aquelas do centro, ter a sua própria comissão. Os
problemas da noite do Cais do Sodré podem ser diferentes dos do Bairro Alto,
podem ser diferentes dos de Alfama e até dos da nova zona de lazer nocturno que
está a surgir na Graça, no Intendente, etc. Permitia mais agilidade, ganhar
tempo de resposta. Na revisão do regulamento de horários de funcionamento dos
estabelecimentos nocturnos [aprovada há um ano] está escrito, no ponto 3 do
artigo 16, que “o conselho de acompanhamento da vida nocturna reúne
ordinariamente uma vez por ano”. Uma vez por ano? Com os problemas que há? Os
problemas que temos hoje precisam de mais agilidade.
Mas esse
conselho existe?
Existe no
papel. Precisamos que esteja operacional. Tem de haver uma decisão concreta:
avançamos ou não avançamos? Implementamos o modelo europeu ou não? Ou
escolhemos outro? Não estou a dizer que temos de ter o modelo de Berlim ou de
Londres, mas tem de se fazer alguma coisa.
Sabe se
esse conselho já reuniu?
Ninguém
sabe.
Este debate
sobre a vida nocturna está suficientemente alargado?
O debate
existe, porque a areia desse debate é fornecida pela comunicação social. Para
todos os efeitos, há pessoas que opinam, contrariam a opinião dos outros. Ou
seja, há um debate. Mas esse debate tem ser mais focado para que tenha um
resultado de reformulação das políticas públicas. Temos de direccionar toda
essa energia para um benefício comum, novas políticas públicas que não fiquem
só no papel. E isso passa pela abertura a um modelo de governança
co-participativa. Isto quer dizer que a pessoa pode participar activamente no
controlo e fiscalização das políticas implementadas. Daí que a nossa proposta
de Nightlife Commission esteja estruturada para ela funcionasse como ponte
entre comissões territoriais e a câmara. Há problemas muito particulares em
Santa Maria Maior e na Misericórdia que não têm nada que ver com os que existem
em Benfica, por exemplo.
Num artigo
que publicou recentemente, a propósito das mudanças no Bairro Alto, fala da
“neoliberalização da cidade”. O que é que isto significa?
A questão
da neoliberalização da vida nocturna em Lisboa faz parte de um debate ainda não
resolvido e que é essencial. Por um lado, há o direito ao lazer. Por outro, há
o direito ao descanso, que é reconhecido pela Constituição e por um conjunto de
leis a nível nacional e local. São dois direitos que não colam um com o outro.
Podiam colar, caso existisse uma política de conciliação e mediação. Assim, o direito
ao descanso está num plano inferior ao do direito ao lazer. Mas que não é um
verdadeiro direito ao lazer, mas sim a sua mercantilização. Todas as
actividades de lazer nocturno estão monetizadas: tens de pagar. Não existe um
plano de iniciativa pública que vise fornecer espaços de lazer aos seus
cidadãos. Não existem espaços para fazer desporto à noite ou locais para
concertos de músicos mais novos, por exemplo. Está tudo monetizado e,
evidentemente, isso serve para fazer uma higienização social do espaço da
cidade.
Para
afastar um certo tipo de população?
Sim. E
quando chegam pessoas dos subúrbios há tensões: nas portas de acesso aos
locais, com a polícia. A noite de Lisboa é de exclusão social, quando poderia
ser um espaço-tempo de inclusão.
Mas quando
diz que a câmara não disponibiliza espaços, está a falar de quê exactamente? A
câmara tem o cinema São Jorge, agora o Capitólio, tem teatros…
O facto de
ter não quer dizer que os disponibilize. Podes ter os espaços, mas a existência
desses espaços chega a quantas pessoas? Ou seja, porque é que a câmara prefere
publicitar que a noite de Lisboa é a mais vibrante do mundo, através do site da
Associação de Turismo de Lisboa, mas não diz que tem um cinema, que há uma
tradição de ir ao cinema, ao teatro, à revista à portuguesa? É uma opção. É a
escolha de um modelo que dá dinheiro à câmara, através dos impostos. A câmara
fez a escolha de se juntar a um parceiro privado, como é a Associação de
Turismo de Lisboa, e outros tipos de lazer nocturno, que não seriam tão
mercantilizados, ficaram afastados da política pública, que está a favorecer um
lobby privado. Não estou a dizer que sou contra o turismo, porque em Lisboa é a
única coisa que existe. Ponto. Sem turismo, não há mais nada. É uma desgraça,
mas é assim. As elites locais e nacionais demitiram-se de pensar um projecto
para Lisboa no futuro.
"As
elites locais e nacionais demitiram-se de pensar um projecto para Lisboa no
futuro"
Como é que,
então, a noite se pode tornar um espaço de inclusão social?
Um exemplo:
porque é que, hoje, em 2017, já perto de entrar em 2018, temos a vergonha da
Rede da Madrugada da Carris? Que foi pensada há vinte anos. Porque é que o
metro não abre 24 horas aos fins-de-semana como em muitas cidades europeias?
Temos o mesmo modelo de há vinte anos, mas o contexto é muito diferente. As
políticas públicas ainda hoje são pensadas para a cidade de dia. Os
trabalhadores nocturnos e pessoas que estudam à noite, por exemplo, nunca
tiveram os mesmos direitos que os cidadãos de dia. Se tu estás a promover uma
cidade 24 horas aberta, tem de haver cidade 24 horas. Porque não funcionam os
barcos para a Outra Banda? Somos uma cidade ou somos uma área metropolitana?
Parece-lhe
uma boa ideia promover uma cidade que está aberta 24 horas por dia?
A cidade,
na verdade, já está 24 horas aberta. Por isso façam o favor de fazer políticas
para uma cidade 24 horas.
A
higienização social de que fala também se processa assim, sem essas políticas?
Em Lisboa temos os dois modelos de higienização. O modelo de apropriação de um espaço
que acontece por pessoal que tropeça naquele espaço. Há uma negociação entre
grupos sociais que não é mediada pela câmara municipal nem por outros actores.
Isso aconteceu no Bairro Alto, no Erasmus Corner, que antes era um sítio onde
andavam skins e punks. O caso do Cais do Sodré é muito diferente. Há uma
estratégia promovida pela câmara de higienizar o espaço em termos sociais.
Promoveu a intervenção no espaço urbano, que foi a pintura de cor-de-rosa [da
Rua Nova do Carvalho]. A rua tinha duas metades: para um lado e para o outro do
arco da Rua do Alecrim. O pessoal que começou a frequentar uma parte, em
2012/2013, era muito diferente do pessoal do outro lado. Naquela esquina, ao pé
do Viking, ainda estavam as prostitutas de sempre. Já não estão. Já só há duas.
Foi um processo. Agora o que vende Lisboa como cidade de lazer nocturno já não
é o Bairro Alto, é o Cais do Sodré. A pink street.
"Os
trabalhadores nocturnos e pessoas que estudam à noite, por exemplo, nunca
tiveram os mesmos direitos que os cidadãos de dia"
Mas,
supostamente, a intenção era que os bares e discotecas passassem para o lado do
rio.
Há duas
opções. Tens um modelo de lazer nocturno, segregado da cidade, em que, na
frente ribeirinha, crias uma espécie de “parque temático”. Isto é, um espaço
orientado ao lazer, 24 horas: teatro ao ar livre, cinema ao ar livre, circo,
actividades da indústria criativa e artística. Outro modelo é o lazer nocturno
inserido no tecido urbano, que é o que temos hoje. O modelo “parque temático”
tem problemas no controlo de massas, por exemplo, e este tem essencialmente o
problema do convívio com os moradores. Há um terceiro caminho, que é a mistura
dos dois. Ter a zona ribeirinha para um lazer de 24 horas, com discotecas
grandes, cinemas, tudo, até desporto; e ter um lazer nos bairros históricos,
mas reorientado para as indústrias criativas artísticas, para a gastronomia,
etc. E com a proibição forte e efectiva de actividades como os pub crawl e as
atitudes de hooligan nocturno: aqueles grupos que, não sei porquê, gritam como
se estivessem numa claque de futebol. Esse é um comportamento que não pode
acontecer na noite destes bairros históricos.
Estamos
mais perto de que modelo?
Deste
último. A câmara deu passos para este último modelo, com a liberalização de
horários na zona ribeirinha. O que acontece é que vemos o regulamento dos
horários para a vida nocturna inserida no tecido urbano, nos bairros históricos
e ficamos: “Então os locais podem estar abertos até às 2h, às 3h, 4h?” A
Constituição e todo o conjunto de leis nacionais e internacionais protegem o
direito ao descanso. Eu não posso fazer barulho em casa a partir das dez, mas o
clube ali do lado pode estar aberto até à uma ou duas? Como é que é isso?
Há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda?
“Jordi, que
seja a última vez que vens acompanhado por estes”
A noite de
Lisboa é insegura?
É como em
todas as cidades. Insegura? Não, já foi muito mais insegura. Muito mais. Que
roubem um telemóvel, acontece em todas as cidades. É insegura para alguns
frequentadores, que são os negros. Para eles sim, é inseguro.
Notam isso
no vosso trabalho? Para lá do que sai nas notícias, notam mais violência para
com negros?
Há diversos graus de violência. Aquelas cenas de polícias a
espancar miúdos negros dos subúrbios já não, mas existe uma violência
subjacente, que não é muito visível, que tem códigos próprios. Muitas vezes não
podem entrar em locais de diversão nocturna. Quando os negros dos subúrbios,
com estética hip-hop, que querem curtir, dar uma volta, se aproximam da entrada
do bar ou da discoteca, já há uma dialéctica visual com os seguranças. Entre 2010 e 2016 fiz uma
experiência, que era sair à noite com indianos ou negros. Num dos sítios
disseram-me “Jordi, que seja a última vez que vens acompanhado por estes”.
Portanto,
inclusão social na noite é uma ilusão.
É encarada
como um discurso teórico, académico e até utópico. Ninguém te pode
impedir de entrar, com a lei na mão. Mas ninguém cumpre isto. E na lei não há garantias face à discriminação
racial, não há nada.
A noite
ainda tem uma lei própria, então?
Sim, sim. Atenção: trabalhar na noite é duríssimo. Fazer controlo de massas quando
estão bêbedas ou drogadas não é fácil. Nestes episódios do Urban e do Cais do
Sodré, por exemplo, que gritem contra a discriminação racial, tudo bem. Mas não
gritem contra os trabalhadores, porque eles estão a cumprir uma política da
casa, da gerência. Se realmente é assim, então vamos criar um plano
estratégico, vamos reformular estes decretos-lei, que fique tudo claríssimo,
com garantias para os clientes, para os proprietários e para os trabalhadores.
Sim, os clientes estão desprotegidos – mas os trabalhadores ainda mais. Muitos
dos seguranças que estão a trabalhar na noite não são trabalhadores a tempo
inteiro naquela empresa de segurança. Muitos deles não têm a formação que
deviam. E precisam de uma formação muito específica. Na Catalunha, por exemplo,
todo o pessoal que faz segurança em discotecas é formado pelo Instituto de
Segurança Pública. Tem de haver um plano de formação profissional para os
seguranças, que diga o que podem fazer, o que não, com que garantias, com que
direitos, com que obrigações.
A maioria
dos seguranças não está preparada para a noite?
Aqui há uns anos houve uma lei que disse que os bares com
espaço de dança tinham de ter segurança na porta, e que esse segurança tinha de
ser de uma empresa. Do nada,
apareceram empresas de segurança. De um dia para o outro. Qual foi a formação?
E foi uma formação certificada, por exemplo pelo Ministério da Administração
Interna? Há uma formação continuada face a novos riscos? Por exemplo, há
formação em relação a um eventual ataque terrorista num espaço de lazer
nocturno? Não. E há outra coisa interessante. No Cais do Sodré, até ao
aparecimento da rua cor-de-rosa, a ordem no espaço público era competência da
PSP. Hoje, a segurança na rua é responsabilidade dos seguranças de empresas
privadas. A segurança do espaço público foi privatizada. Assim sendo, quais são
as garantias que os meus direitos reconhecidos pela Constituição estão
garantidos?
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