Ainda se fossem cães
Helena Matos
5/11/2017, 7:11714
Vivemos bloqueados entre a apatia daqueles que passavam
diante daquele homem a ser espezinhado e o perigosíssimo arrebatamento destes
outros que se declaram dispostos a tudo pelos animais
Durante um minuto e trinta e nove segundos as palavras
sucedem-se: “Filma! Ai! Coitado. Como é que é possível? Eu vou processar aquele
gajo. Ele vai bater-lhe. Filma. Ai! Bateu com a cabeça no chão. Ele ‘tá morto
ali. Não vale a pena. É uma gaja. Ainda vai levar mais. Agora vai levar o
outro.”
No chão, um corpo é espancado. Espezinhado. Entretanto os
jovens da geração mais preparada de sempre passavam ao lado, fazendo-se
transparentes. Há gente mascarada como a rapariga de cabelo roxo que parece ter
desenhado uma cicatriz nas costas quiçá para o Halloween (as feridas na
cosmética nunca doem, não é?) Um casal olha e abraça-se como quem se refugia
num casulo.
O outro vídeo é mais curto. Não tem lugar em Lisboa mas sim
em Coimbra. Não estamos à porta de uma discoteca mas sim na rua de uma zona
habitacional.
Também aqui um corpo caído é espezinhado e pontapeado.
Mais uma vez é uma voz de mulher que sobressai no vídeo: ‘Ó
pá! Parem com isso. Matam o gajo, pá! Chamem a polícia. Assassinos! Ai! Ó pá!
Socorro! Ó seu anormal pára! Saiam daí! Eu ‘tou a filmar tudo. Isto vai já para
a polícia. Pelo amor de Deus chamem a polícia. Eu vou lá abaixo. Chama a
polícia. Mas não está ali ninguém?”
Entretanto algumas pessoas aproximam-se. Os agressores
partem.
Tudo isto aconteceu em Portugal, esta semana. Em ambos os
casos temos homens quase em silêncio a assistir e mulheres que comentam,
decidem filmar e divulgar (os estudiosos do género sabem explicar isto?)
Note-se que ambos os casos só existem porque os filmes foram
feitos e divulgados.
A partir daqui os casos divergem: a agressão de Lisboa
mantém-se nos títulos, juntam-se dados, investiga-se e denuncia-se a
passividade das autoridades policiais. (Infelizmente ainda não vejo que se
questione o estado de estupidificação subjacente àquelas filas que se formam à
porta das discotecas com dezenas de pessoas que esperam num misto de ansiedade
e submissão que os ditos seguranças lhes aprovem o vestuário e o aspecto para
finalmente lhes permitirem a entrada). O estabelecimento onde trabalhavam os
agressores foi encerrado e os agressores detidos.
Já o caso de Coimbra desapareceu das notícias e dos
agressores também nada se sabe porque estão em parte incerta. Serão irmãos e
conhecidos das autoridades graças ao seu passado violento. E mais nada. Porquê?
Porque não é só perante a violência e a barbárie que estamos tolhidos pelo
medo. Na própria hora de expressarmos a nossa indignação o medo condiciona-nos.
E assim em Lisboa como os agressores estavam no paradigma
daqueles de que se pode e agora é mediaticamente imperioso dizer mal – os
empresários donos da discoteca, mais os seguranças e respectivas empresas – a
sociologia do enquadramento foi às malvas, a psicologia da desculpabilização
esfumou-se e as autoridades desdobram-se em diligências, medidas e declarações,
a onda de indignação cresce e qualquer intervenção só pode ir no sentido da
exigência de uma maior dureza penal.
Já em Coimbra à ausência de empresas e actividades em que se
possa fulanizar o odioso da questão junta-se o facto de os agressores serem
apresentados como ciganos em vários comentários nas redes sociais e isso torna
o sucedido num daqueles temas de que todos fogem não vá dar-se o caso de se
acabar a ser acusado de racismo.
Não faço a menor ideia se os agressores de Coimbra são ou
não ciganos (aliás, na prática não percebo como se identifica alguém como
cigano) mas sei que em Coimbra várias agressões graves lhes têm sido imputadas
perante o silêncio generalizado. Um silêncio difícil de quebrar mesmo quando o
agredido é alguém com participação na vida da cidade e que resolve dar o seu
testemunho, como aconteceu aquando da grave agressão em 2011, a Manuel Rocha,
director do Conservatório de Música de Coimbra e membro da Brigada Victor Jara.
Manuel Rocha tinha ido à estação de Coimbra-B esperar um amigo quando, segundo
então relataram os jornais, “foi espancado sem razão aparente por um grupo de
jovens. Manuel Rocha, 48 anos, ficou ferido com gravidade, fracturando uma
perna”.
Na língua de pau usada para relatar os casos que contêm
referências étnicas recorre-se a termos como jovens para iludir a realidade.
Como o próprio Manuel Rocha descreveu no PÚBLICO, em Abril de 2011, foi
agredido por ciganos jovens mas também por adultos e crianças. Homens e
mulheres: “De repente, eram várias pessoas a bater-me, a pontapear-me. O
primeiro pôs as mãos à volta do meu pescoço e tentou estrangular-me – uma
sensação esquisita, muito esquisita… Para me proteger virei-me de barriga para
baixo. O resto foi o meu amigo que me contou: havia mulheres e crianças a
bater-me e foi uma mulher que quebrou a minha perna. Agarrou-a com as duas
mãos, torceu-a e quebrou-a: tlac!”
Entretanto as várias pessoas que se encontravam na estação
faziam de conta que não viam nada: “Mas que gritassem. Pelo menos, que
gritassem.” – vai dizer Manuel Rocha ao PÚBLICO. Claro que não gritaram.
Calaram-se pela mesma razão porque vários daqueles que o visitavam no hospital
lhe iam contando casos semelhantes ao seu: “Veio um amigo e contou uma
história, outro fez uma confidência, depois veio um conhecido e falou-me do
assunto, a seguir um colega e até um médico – cada um com um caso novo, uma
perspectiva diferente.” Uma razão chamada medo.
Depois dos tempos em que o agressor não era um agressor mas
sim uma vítima da sociedade acabámos no grotesco de ser o perfil do agressor a
determinar se a vítima, que tem de estar sempre isenta de mácula, pode ou não
ser vítima. Afinal é a diferença do perfil do agressor que determina que em
Lisboa tenhamos um caso e em Coimbra um facto da semana passada. E em ambas as
cidades o telemóvel tornado na testemunha do que oficialmente não existe.
Gostaria de estar errada mas acredito que a reacção teria
sido outra se em vez de homens os agredidos fossem cães pois os animais. livres
que estão da grelha com que avaliamos a humanidade acabaram a tornar-se o
último pretexto para fazermos o que achamos que deve ser feito.
E assim nos mesmos dias em que víamos como (muito
particularmente em Lisboa) grupos de pessoas assistiam tolhidas a agressões a
outros da sua espécie, era publicada no Observador uma reportagem que dava
conta dos excessos de que algumas pessoas são capazes para defender os animais:
“O que vamos fazer hoje é um sequestro de um animal. Se chegarmos lá e o dono
tiver dado sumiço ao animal, poderemos fazer um sequestro do dono até ele nos
contar onde está o animal. “ Atente-se nesta frase: “fazer um sequestro do dono
até ele nos contar onde está o animal.” O que é isto? Qual é o limite? Quem o
define?
Vivemos num tempo bloqueado entre a anomia daqueles jovens
que passavam diante daquele homem a ser espezinhado e o perigosíssimo
arrebatamento destes outros que declaram “as nossas ações justificam os fins que
pretendemos: o bem-estar animal”.
Quando temos medo de ser o que somos, quando abdicamos dos
nossos valores porque tudo é relativo, sobram os animais a lembrar-nos aquilo
de que somos capazes. Os humanos esses só servem para ilustrar a nossa
impotência.
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