Levantamento
das necessidades de habitação devia ser tarefa das freguesias”
POR O CORVO
• 15 NOVEMBRO, 2017 •
Preocupada
com os desequilíbrios no mercado de habitação, Helena Roseta, presidente da
Assembleia Municipal de Lisboa, está empenhada na criação de mecanismos legais
para reverter a situação. Peça central nessa estratégia, diz em entrevista por
escrito a O Corvo, será a criação de uma lei de bases para o sector, em cujo
anteprojecto está a trabalhar, como deputada na Assembleia da República. Ante a
crise da falta de casas a preço acessível, Roseta defende a “criação de
mecanismos legais, fiscais e de transparência de preços que permitam ao Estado
intervir no mercado”. E sugere que as cooperativas deveriam voltar a ser tidas
em conta como uma solução ao nível da habitação jovem. Reconhece, no entanto,
que o aumento da reabilitação urbana trouxe consigo muitas vantagens, pois
muitos prédios estavam a cair.
Texto: Sofia Cristino Fotografias:
David Clifford
Lisboa está a perder população. E os
inquilinos estão a sofrer pressão dos senhorios para saírem. Os dois problemas,
distintos mas interligados, devem ser olhados da mesma forma?
O aumento
da reabilitação urbana trouxe consigo todo um conjunto de desequilíbrios e
incómodos, com impactos na economia da cidade e das famílias, no património
edificado e até, como refere, em muitas casos, na saúde e bem estar das
pessoas. Mas também trouxe vantagens, Lisboa tinha muitos prédios a cair e
espaço público muito mal tratado. A nova lei do Regime de Obras em Prédio
Arrendados dá mais protecção aos moradores, mas a questão de fundo – o
desajustamento crescente entre os rendimentos das famílias e o preço da
habitação – não se resolve só assim.
Precisamos
de políticas públicas que promovam a aproximação entre a oferta e a procura,
combatam a especulação e condicionem os investimentos, nomeadamente os
investimentos estrangeiros, às políticas urbanas de coesão social e
territorial. Não vai ser fácil, mas é o único caminho para um desenvolvimento
urbano sustentável.
A Câmara
Municipal de Lisboa propõe 10 mil casas, através do Programa Renda Acessível,
para os jovens e a classe média. Onde ficam os restantes?
O
levantamento sistemático das necessidades habitacionais devia ser uma tarefa
das freguesias. É uma realidade dinâmica, está em constante evolução e carece
de ser avaliada de forma permanente e não apenas através dos dados censitários
que ocorrem de 10 em 10 anos. Este levantamento deve ser acompanhado pelo
modelo demográfico (que inclui a tendência para o envelhecimento e a alteração
profunda dos modelos familiares) que deve informar as políticas de urbanismo,
reabilitação urbana e habitação do município.
É uma linha
de trabalho a desenvolver pela Câmara, para se poder perceber até que ponto
cada programa, incluindo o Programa de Renda Acessível, a que se refere,
responde às necessidades habitacionais prioritárias que subsistem ou se
prevêem.
A constituição diz que o Estado tem obrigação
de garantir o acesso à habitação. O número de despejos, contudo, continua a
subir. Ninguém se responsabiliza por isto?
O direito à
habitação está consagrado no artigo 65º da Constituição da República
Portuguesa, que impõe deveres ao Estado e às autarquias. Ao contrário do que
aconteceu com outros direitos sociais constitucionais, como a saúde, a educação
e a segurança social, a habitação nunca teve uma lei de bases que desenvolva e
concretize as várias dimensões do direito à habitação, nomeadamente estipulando
com clareza os deveres do Estado e os deveres dos municípios, bem como os
instrumentos legais, fiscais e financeiros que devem ser aplicados.
É por isso
que tenho vindo a defender a necessidade de uma lei de bases da habitação, em
cujo anteprojecto estou a trabalhar como deputada, com apoio do grupo
parlamentar do PS, e que brevemente será tornado público, juntamente com o
processo participativo que o deverá acompanhar.
Sem esta
lei, o artigo 65º da CRP fica como meta moral, mas não vincula directamente as
entidades públicas, tornando muito difícil pedir responsabilidades, por exemplo
por via judicial, por incumprimento. Outra coisa são as responsabilidades
políticas, que em democracia podem sempre ser pedidas aos órgãos autárquicos e
nacionais.
Pela minha
parte, costumo dizer que “quando acabam as competências começam as
incumbências”. Defender o direito à habitação foi a grande causa da minha vida,
mesmo durante a ditadura. Infelizmente, constato que estamos ainda muito longe
do sonho do 25 de Abril de habitação para todos, mas não desisto.
Pela parte
do actual Governo, registo os novos programas na área da habitação, aprovados
por resolução de Conselho de Ministros para uma “Nova Geração de Políticas de
Habitação”, em 4 de outubro passado. Esta resolução está em consulta pública
até 16 de dezembro no portal do governo.
Como se pode travar esta situação, num momento
em que está a atingir proporções inesperadas? É um desafio impossível?
Não
acredito em desafios impossíveis. Durante décadas, ouvi dizer que era
impossível acabar com os bairros de lata em Lisboa. Mas com os programas PIMP
(Plano de Intervenção a Médio Prazo para a Habitação Social de Lisboa) e PER
(Plano Especial de Realojamento), desde 1985 até 2011, a autarquia conseguiu
17.000 fogos para realojar famílias que viviam em núcleos e bairros precários
na cidade, que foram demolidos.
O que é
preciso é que as prioridades políticas e orçamentais coincidam. E que haja
vontade política para inovar, por exemplo ao nível da habitação jovem, com
soluções cooperativas que saíram de moda, mas podem e devem voltar a ser um
instrumento não especulativo para dar resposta à procura de habitação.
O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU),
lançado em 2012 por Assunção Cristas, tem sido responsável por milhares de
despejos. Estão previstas mais alterações ao NRAU ou há essa vontade?
Foi
alterado nesta legislatura o NRAU e o Regime de Obras em Prédios Arrendados, no
sentido de dar um pouco mais de protecção a inquilinos, em especial aos
contratos antigos, quer habitacionais, quer não habitacionais. Foi também
criado um novo regime legal de protecção legal às entidades de interesse
histórico e cultural ou social reconhecidas como tal pelos municípios.
Face à
vertiginosa alta especulativa do preço das rendas, depois da liberalização das
rendas levada a cabo pelo governo PSD/CDS, é necessário revisitar o NRAU e criar
mecanismos legais, fiscais e de transparência de preços que permitam ao Estado
intervir no mercado e alcançar os objectivos inscritos no artigo 65º da CRP,
nomeadamente a adoção de “uma política tendente a estabelecer um sistema de
renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”.
Recentemente, disse que “se tem andando a pôr
‘botox’ em leis velhas, quando se deveria apostar num instrumento que desse uma
estrutura geral à área da Habitação”. A que instrumento se referia?
Remeto para
a resposta anterior, onde explicito a necessidade de uma lei de bases da
habitação inexistente até agora no ordenamento jurídico português. Mas também é
preciso que as prioridades orçamentais do Estado e dos municípios acompanhem a
prioridades políticas da agenda da habitação.
O “boom” turístico contribuiu indirectamente
para o aumento dos despejos. Como se regula esta situação?
Estão
pendentes na AR várias iniciativas legislativas sobre a matéria. Vamos ter de
promover a sua discussão, com audição dos vários agentes do sector da habitação
e do alojamento local, para promover as alterações legislativas necessárias.
Entre estas, defendo a possibilidade de os municípios urbanos estabelecerem
limites à quantidade de alojamentos locais admissíveis nas zonas onde se
verifica maior pressão turística e, simultaneamente, maior carência de
habitação permanente. É uma medida já em prática em várias cidades europeias e
americanas, mas em Portugal não é possível, com a legislação vigente.
Como se permite que os sectores imobiliário e
turístico se sobreponham a um dos direitos fundamentais? Porque é que a
travagem deste fenómeno tem sido tão lenta?
Quem
defende o Estado mínimo tende a defender que não haja qualquer regulação
pública do mercado de habitação ou do mercado turístico. Não é a minha posição,
mas também não ignoro que a globalização dos mercados financeiros, imobiliários
e turísticos atingiu uma escala que torna as cidades mais indefesas. É uma luta
de David contra Golias, no caso português agravada pela rapidez das mudanças
nos últimos anos.
Mas as
cidades, se tiverem apoio da população e da opinião pública, e se trabalharem
em rede, podem e devem ter um papel de regulação e intervenção da maior
importância, na linha, aliás, do que foi aprovado pelas Nações Unidas no ano
passado no âmbito da Nova Agenda Urbana.
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