LISBOA
Os artesãos
(ainda) estão no centro histórico
Mais de
metade dos 125 artesãos lisboetas inscritos na Rede de Artes e Ofícios estão
nas freguesias do centro histórico. Mas já há casos de jovens artífices cujo
crescimento da actividade e o preço das rendas em Lisboa obrigaram à saída para
oficinas fora da capital.
RITA
MARQUES COSTA 20 de Novembro de 2017, 8:48
É no quarto
transformado em atelier com vista para o Rio Tejo, na zona de Xabregas, que
Alessandra Romani relembra que a cerâmica entrou na sua vida de forma gradual.
Quando já trabalhava como designer de interiores, no início dos anos 2000, fez
um curso, depois outro, e mais tarde teve um atelier com outras colegas onde
praticavam a produção de peças em cerâmica. Entretanto, vieram os filhos,
apaixonou-se pelo surf e tudo ficou em pausa por alguns anos. Até ir a uma
exposição de pintura na Gulbenkian.
Foi a
partir daí, em 2014, que Alessandra decidiu dedicar-se a tempo inteiro a este
ofício, com o objectivo de recriar objectos presentes em pinturas –
essencialmente de artistas associados ao Cubismo.
No pequeno
espaço onde trabalha, estão algumas das suas peças. São a materialização de
objectos pintados por Picasso, Braque, Matisse, Amadeu de Souza Cardoso, entre
outros. Como “não são coisas reais, é fascinante trazer isso para a realidade”,
diz Alessandra.
O plano da
ceramista, cujo espaço de trabalho é um quarto na casa da mãe, é ter um atelier
próprio. Mas por enquanto essa transição ainda não é possível “porque é caro”,
justifica.
A
tipografia reinventada
Também a
poucos metros do Tejo, mas do outro lado da cidade, em Santos, Luís Henriques,
um dos responsáveis pela associação cultural O Homem do Saco, dá conta da
“pressão” feita por alguns agentes imobiliários que querem informação sobre
casas disponíveis para venda ou para arrendamento naquela zona.
O espaço
ocupado pela associação é um rés-do-chão numa zona recolhida da Avenida Dom
Carlos I. Essa configuração “não é muito boa como loja, mas estarmos recolhidos
até é uma vantagem porque este é um espaço de oficina”, atesta Luís Henriques.
Na O Homem
do Saco, a tipografia já não é levada a cabo pelos artesãos tradicionais, que
começaram na profissão ainda crianças. Em vez disso, um grupo de dez pessoas
interessadas em impressão reúne-se ali para fazer este tipo de trabalhos e
partilhar ideias.
As
formações profissionais são quase tão diversas quanto o número de pessoas
envolvidas. Há um osteopata, um matemático e uma historiadora de arte dentro
deste grupo. São todos “biscateiros”, no sentido em que esta não é a sua única
fonte de rendimento. Estas pessoas com um espírito “entre o amador e o
profissional” são muito diferentes “das pessoas que praticaram o ofício durante
anos a fio”.
Nesta
oficina, “pegamos nos materiais e tiramos proveito dos erros”. Luís explica que
“não estamos preocupados com a aplicação da regra correcta”. Mas apesar da “mutação”
em relação aos processos e técnicas originais, “há um lastro histórico que
aparece”. “Nós gostamos bastante da marca material e, por isso, permitimo-nos
brincadeiras que são pouco ortodoxas do ponto de vista de uma impressão mais
cuidada.”
Sair de
Lisboa para crescer
O
crescimento da actividade de Joris Lacombe, da Boato, e de Tiago Garcia, da
Craftwood, obrigou os responsáveis pelos dois projectos a sair do centro de
Lisboa onde tinham as suas oficinas.
Joris,
natural de França, era engenheiro mas a rotina numa grande unidade fabril não
lhe agradava. Decidiu “mudar de vida” e optou pela marcenaria e carpintaria.
Foi num dos cursos que fez na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, uma das
instituições que se dedica ao ensino destes ofícios, que conheceu o sócio, um
professor de espanhol que também tinha outras ambições. Foi assim que
iniciariam actividade num rés-do-chão no Bairro Santos. Mas a “má configuração”
do espaço e o facto de se localizar num prédio residencial, limitava as horas
de trabalho e dificultava a execução de trabalhos maiores.
Com o
tempo, a necessidade de encontrar um novo espaço tornou-se inadiável. Ainda
procuraram no centro de Lisboa, mas Joris recorda que “é um negócio que ocupa
bastante espaço”, pelo que o preço das rendas para uma oficina de 200 metros
quadrados na cidade era um “problema”. Assim, mudaram-se para a Margem Sul.
Actualmente, os constrangimentos da distância parecem ter sido ultrapassados.
“Comunicamos através das redes sociais e, quando é necessário, vamos a casa dos
clientes”, explica o carpinteiro.
Na
Craftwood, onde dois jovens se dedicam à conservação e restauro de mobiliário e
arte sacra, a mudança foi necessária pelas mesmas razões. A empresa de
conservação e restauro surgiu pelas mãos de Tiago Garcia, de 30 anos, e do seu
sócio Igor Fonseca. Ainda antes de saírem do curso de Conservação e Restauro de
Madeiras, da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, já faziam trabalhos de
restauro e, passado algum tempo, decidiram criar a marca e abrir empresa.
Tudo era
feito a partir de um pequeno espaço na Rua do Machadinho que rapidamente se
tornou insuficiente. Assim, a partida para fora da cidade também se tornou
inevitável. “Ainda tentei perceber se tínhamos margem para um sítio ali no
Marquês de Pombal, mas era uma renda de três ou quatro mil euros”, lembra Tiago
Garcia.
Contudo,
esta não será uma solução definitiva para os jovens artesãos. “Ainda vivemos
dos clientes que temos em carteira e do boca a boca”, por isso, regressar à
capital, nem que seja com uma pequena loja, é um dos objectivos para o futuro.
O saber
antigo
“Reclames
luminosos”. É o que se lê em grandes letras vermelhas pintadas na porta do
número 6B da Rua Diogo do Couto, a poucas centenas de metros da estação de
Santa Apolónia. Lá dentro, Jorge Neves faz o que fez a vida toda. Trabalha
tubos de vidro para lhes dar forma de letras ou objectos e depois aplica os
passos necessários para que se iluminem com a cor pretendida. Parece fácil,
tendo em conta a agilidade com que o vidreiro molda a letra A, mas aos 69 anos,
Jorge tem mais de 50 neste ofício. Começou aos 12 como aprendiz numa empresa
lisboeta especializada na produção de néones e nunca mais parou.
Foi aí que
Jorge Neves conheceu o seu actual patrão, António Reis. O electricista veio do
Fundão aos 13 anos para aprender a profissão e hoje é o dono do único espaço,
segundo o próprio, que produz néones em Lisboa. António ainda teve uma empresa
e mais uma oficina que funcionava ali perto, mas o espaço da Rua Diogo do Couto
é tudo o que resta desse tempo.
Os clientes
dividem-se entre os donos de restaurantes antigos que há muitos anos operam na
zona da Baixa e os jovens empresários e artistas que estão a começar a
interessar-se por esta arte. “Hoje em dia, os principais clientes são esta
gente nova”, conta António Reis enquanto mostra no telemóvel fotografias do
trabalho feito recentemente para a exposição da artista e ilustradora Wasted
Rita, na galeria Underdogs. Entre o portefólio contam-se ainda novos
restaurantes, bares e hostels da Baixa lisboeta.
Apesar do
sucesso entre os jovens, o futuro da actividade parece estar em risco. É
difícil dominar o ofício e há poucos interessados. O genro de António Reis é a
esperança da continuidade do negócio. Mas ainda está a aprender.
Mais
adiante, num quarto andar da Rua dos Douradores, Mário Ferreira dedica-se à
relojoaria. Aos nove anos, recebeu do avô um relógio de sol que ainda hoje tem
exposto junto de outros exemplares na sua pequena loja. Aos 15, veio sozinho de
Santarém para aprender esta arte. Além da obrigatória passagem pela tropa, na
forma de ida ao "Ultramar", Mário Ferreira sempre se dedicou à
reparação de relógios. Foi trabalhando em várias ourivesarias até assentar no
espaço próprio, há cerca de dez anos. A sua vida profissional foi quase toda
passada em ourivesarias da Baixa de Lisboa, onde “está o que resta das
profissões antigas”, conta.
Da rua para a rede
Apesar das
diferenças há algo em comum entre estes artesãos. Todos podem ser
encontrados na plataforma da Rede de Artes e Ofícios. O projecto, desenvolvido
em 2016 por duas arquitectas lisboetas, Lucinda Correia e Ana Jara, tem como
objectivo inventariar todos os artesãos da cidade (segundo um conjunto de
critérios) e disponibilizar os seus contactos e localização a quem precisar
destes serviços. No total, 125
ofícios espalhados pela cidade estão inscritos na rede. Só nas freguesias que
compõem o centro histórico – Penha de França, Campo de Ourique, Estrela,
Misericórdia, Santa Maria Maior e São Vicente – são 70. A Câmara Municipal de
Lisboa foi questionada quanto à existência de dados oficiais sobre o número de
artesãos lisboetas, mas o PÚBLICO não obteve resposta.
A missão
das arquitectas é “regenerar a cidade a partir de dentro”. Afirmam que não têm
uma perspectiva “conservadora”, mas
avisam que a regeneração do centro histórico “precisa” destes ofícios.
O projecto, financiado pelo programa BIP/ZIP – para os
Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária em Lisboa, promovido pela Câmara
Municipal de Lisboa –, não é o primeiro das arquitectas. Em 2013, começaram por mapear as carpintarias e
marcenarias existentes na cidade. Rapidamente se aperceberam que era preciso
“criar algo mais abrangente” e assim surgiu a rede. Em breve vão fazer algo
semelhante, mas para todos os construtores civis.
“Não há
arte sem ofício”
Quando as
arquitectas pensaram o projecto “este tipo de trabalho inscrevia-se numa
condição social de trabalhadores manuais, que no nosso país não eram muito
valorizados”. Hoje já não é bem assim. Um dos aspectos positivos que adveio da
criação das duas redes foi “um maior conhecimento sobre estas áreas”. Lucinda
Correia diz que “as pessoas estão mais sensíveis” ao trabalho dos artesãos.
Por sua
vez, o director do Instituto de Artes e Ofícios da Universidade Autónoma, João
Pancada Correia, olha para as mudanças nesta área da perspectiva do ensino. “As
pessoas mais novas que estão a dedicar-se ao ofício estão a fazê-lo de forma
mais sistemática e escolar”, diz o arquitecto e pintor. Com o desaparecimento
gradual dos artesãos tradicionais “perde-se imenso”, mas é algo “temporário”.
Quanto ao
turismo, João Pancada Correia não o vê como um inimigo no espaço que estes
artesãos podem ocupar. Acredita antes que “vai potenciar o artesanato em
Lisboa”. Entretanto, é necessário continuar a investir no ensino destas
profissões, defende. Até porque “não há arte sem ofício”.
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