O desprezível Carrilho e o nosso
silêncio
Se isto não são questões para serem
debatidas em jornais de referência, então não sei para que servem os jornais de
referência.
João Miguel Tavares
2 de Novembro de 2017, 6:40
O primeiro processo intentado contra Manuel Maria Carrilho
por violência doméstica terminou com a sua condenação a quatro anos e meio de
prisão, com pena suspensa. Lamento a suspensão da pena, mas não está excluída a
hipótese de o ex-ministro da Cultura ainda vir a ser preso: corre um segundo
processo nos tribunais relativo a factos ocorridos durante o casamento com
Bárbara Guimarães — este apenas julgou acontecimentos posteriores ao divórcio
—, e se Carrilho for aí condenado (já tem duas condenações anteriores, por
ameaça e difamação) é provável que o cúmulo jurídico ultrapasse os cinco anos,
obrigando à aplicação automática de pena de prisão efectiva.
Aquilo que a Justiça deu como provado é uma galeria de
horrores, que ultrapassa em muito os maus-tratos a Bárbara Guimarães. Além de
“humilhar e maltratar” a ex-mulher, Carrilho manifestou “total indiferença pela
integridade física e psicológica dos filhos”, utilizou-os para atacar a mãe,
simulou agressões que nunca sofreu (daí também ter sido condenado por denúncia
caluniosa), acusou falsamente Bárbara Guimarães de bater nas crianças, expôs a
sua vida nos jornais e, sobretudo, manipulou os filhos, ao ponto de o mais
velho — que está neste momento a viver com Carrilho — insultar violentamente a
mãe e se ter transformado, segundo uma perícia psicológica ordenada pela juíza,
numa criança “muito agressiva”, com “pouca empatia” e incapaz de “distinguir a
verdade da opinião”. Reagindo à sentença à porta do tribunal, já depois de
condenado, Manuel Maria Carrilho voltou a invocar os filhos e a lançar
acusações à ex-mulher. Bárbara Guimarães optou, como sempre, pelo silêncio.
Se o caro leitor for daqueles que leu os dois parágrafos
anteriores e pensou “por que é que eu estou a ler isto aqui, se sou leitor do
PÚBLICO e não do Correio da Manhã”, fique a saber que foi exactamente para
combater esse obtuso preconceito que escrevi este texto. A violência doméstica
é um crime público. A violência doméstica não é um assunto da vida privada de
um casal. E embora nós sintamos um pudor natural perante a exposição da
intimidade de duas figuras públicas, estes são os casos em que não podemos
virar a cara, fechar os olhos ou deixar de expor publicamente o quão
desprezível tem sido o comportamento de Manuel Maria Carrilho ao longo de todo
o processo, numa tentativa sistemática de destruir a ex-mulher, mesmo que para
isso tenha também de destruir a vida dos seus dois filhos.
Carrilho é uma pessoa perturbada e perigosa, e as reflexões
sobre a justiça não se podem limitar aos acórdãos delirantes do senhor Neto de
Moura. Também aqui há muita matéria de reflexão, que eu não vejo ser feita
pelos jornais — à excepção do i, onde destaco os excelentes textos de Ana Sá
Lopes, e do Correio da Manhã, a notícia da condenação foi modestamente tratada
em todo o lado —, ou sequer em plataformas activistas tão badaladas como as
Capazes, na qual não encontrei qualquer texto sobre a sentença. E, no entanto,
muito há a dizer sobre as práticas da justiça portuguesa nesta matéria, do
número de penas suspensas em casos de violência doméstica, ao facto de a tutela
dos filhos menores não ficar estabelecida no decorrer destes processos. Que
sentido faz Carrilho continuar a ter a guarda do filho mais velho após uma
sentença deste calibre? Nenhum. E se isto não são questões para serem debatidas
em jornais de referência, então não sei para que servem os jornais de
referência.
Jornalista
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