"Se
isto não mudar no Tejo, tudo vai morrer, tudo"
O Tejo está
a morrer em Espanha, dizem activistas de defesa do rio, especialistas e
autarcas. A seca é apenas mal menor. Os 600 mil milhões de litros de água
transvasados para regar os campos agrícolas de Múrcia e a elevada contaminação
são o mal maior. Se morre onde nasce não chegará onde desagua.
LUCIANO
ALVAREZ (Texto) Toledo, NUNO FERREIRA SANTOS (Fotografia) e FREDERICO BATISTA
(Vídeo) 19 de Novembro de 2017, 5:59
A
construção, em 1958, da Barragem de Entrepeñas, na província espanhola de
Cuenca a cerca de 100 quilómetros a sudoeste de Madrid, deu à pequena vila de
Sacedón uma magnífica praia fluvial. Os cerca de três quilómetros de água mais
afastados do paredão da barragem percorriam todo o lugarejo, com as águas
limpas do rio Tejo a quase tocarem a primeira linha de casario e estendendo-se
muito para lá dele. O lugar ganhou fama e gente que ali começou a ir de férias
ou passeio. Chamaram-lhe então "mar de Castela".
Cresceu a
vila, cresceram as casas de veraneio, abriram hotéis, quartos para alugar,
restaurantes, negócios ligados aos desportos náuticos. Fotos dos finais dos
anos de 1970 mostram a praia cheia de gente e autocarros de turismo nas
estradas junto à água.
Mas, a
partir daí, ano após ano, o volume de água começou a baixar e a afastar-se de
Sacedón. Em 1995, num período de grande seca, já não havia qualquer praia no
lugar. Restava apenas uma linha de água que ligava a antiga zona balnear à
albufeira da barragem. As chuvas de Inverno recuperam algum do volume do rio,
mas nunca a praia.
Este ano,
há cerca de quatro meses, desapareceu pela primeira vez toda a água da antiga
zona balnear. Resta uma poça junto à albufeira, também ela em níveis mínimos.
Resta também, em jeito de monumento anedótico à tragédia, um ancoradouro onde
se mantém um barco amarrado.
O resto são
terras gretadas pelo calor, quase sem vida animal no solo, lixo, conchas secas
dos moluscos que por ali existiram, num deserto que revela os antigos caminhos
de terra antes da construção da barragem e que se estende por cerca de três
quilómetros de comprimento e cerca e 1,5 de largura. Ao "mar de
Castela" os locais chamam agora simplesmente "pântano". E da
margem dele desapareceram pessoas, especialmente jovens, fecharam hotéis,
restaurantes, comércio, desportos náuticos e é proibido tomar banho e pescar
onde ainda existe água na albufeira da Barragem de Entrepreñas. Uma proibição
que se estende a quase todos os locais onde em Espanha corre 68% da extensão
total dos 81.477 metros quadrados do Tejo.
Transvase
polémico
Como se
chegou aqui? Os períodos de seca nas últimas décadas, nomeadamente as mais
recentes, como a deste ano, pesaram para a diminuição significativa do caudal
do rio – no século XX, segundo vários estudos espanhóis, a diminuição do caudal
na zona cabeceira do rio foi de 47%. Mas a seca é, para as populações locais,
uma gota de água na tragédia. O principal problema chama-se Tejo-Segura. Um
sofisticado projecto de engenharia hidráulica de barragens, estações
elevatórias de água, tubagens e canais que começou a funcionar em 1981 (ver
texto nestas páginas), desviando a água do Tejo desde as províncias de Cuenca e
Guadalajara, na região Autonómica de Castela-La Mancha, até uma das barragens
do rio Segura, na região de Múrcia, por um percurso de quase 300 quilómetros.
Esse
transvase pode levar por ano até 600 hectómetros cúbicos (hm3) desde as
barragens do médio Tejo espanhol em direcção a uma das represas do rio Segura,
mas já chegou a poder levar 1000 hm3 num passado recente. Os 600 hm3 são mais
do que duas cidades de Lisboa consomem.
Quando o
transvase está a funcionar na sua máxima força suga 33 mil metros cúbicos de
água por segundo e é ejectada com uma pressão tal que, por vezes, bate na
turbina e é projectada de volta. A água do Tejo transformou Múrcia, onde antes
do projecto a água escasseava, na hoje chamada “horta de Espanha” e um dos
maiores produtores agrícolas da União Europeia.
A revolta
contra o Tejo-Segura é visível nas varandas das casas de várias cidades,
grandes e pequenas, nos edifícios de algumas autarquias, nos autocolantes em
viaturas e em grafitis nas paredes que “gritam” frases como “não nos roubem a
água”; “a água é nossa” ou “Tejo-Segura nem uma gota mais”.
“A máfia da água”
J., um
activista da associação Rio Tejo Vivo, marca encontro no Miradouro do Alto de
San Julian, à entrada de Sacedón (com cerca de 1.500 habitantes) e com vista
privilegiada para o “pântano”. Aceita falar sobre a sua associação se lhe
garantirmos o anonimato. “A máfia da água persegue todos os que a denunciam.
Tentam identificar-me a mim e aos meus colegas. Se descobrirem quem somos, vão
chover processos em tribunal. Se estiveres empregado vais perder o emprego. Já
fizeram a vida negra a muita gente e vão continuar a fazer”, justifica o homem
com pouco mais de 30 anos.
A Rio Tejo
Vivo actua através de uma página no Facebook onde denunciam “transvases
ilegais” e “descargas de todo o tipo de lixo no rio”. Na página há vídeos
feitos na parte portuguesa do Tejo. A “máfia da água”, ou os “murcianos do
transvase” são, segundo J., “os poderosos que lucram com a água que é do povo”,
os que “estão a matar o rio para encherem os bolsos, os políticos corruptos.”
“Estão a
matar o rio e eles sabem que o estão a fazer, mas enquanto houver água no Tejo
vão sugá-la, transformá-la em euros e têm poder suficiente para mandar abaixo
todos os que se atravessarem no caminho”, afirma.
J. aponta
para o “pântano”. “Aqui já houve um mar de água, mas a seca e, principalmente
roubo da água deixou isto. Já tinha havido uma situação idêntica em 1995, mas
depois choveu e com ela voltou alguma água, embora nunca como quando havia uma
praia, muito longe disso. Agora foi toda.”
A guerra da
água
A cidade de
Aranjuez, com cerca de 65 mil habitantes e desde 2001 Património de Humanidade
da UNESCO, é uma das mais afectadas pela falta de água e carro da frente pelo
fim do Tejo-Segura.
Patrícia
Moreno, a socialista que preside à camara da cidade, recebe-nos no seu gabinete
com um sorriso largo e de braços abertos. “Bem-vindos, bem-vindos, é bom que
Portugal saiba o que se está a passar.”
“O
principal problema do Tejo na nossa região é só um: não há água”, afirma logo
no início da conversa. Para a autarca, o transvase Tejo-Segura “está a matar
definitivamente o rio” e “está a matar a nossa paisagem que é protegida pela
UNESCO”.
“Sem rio
não existe vida. Se não há rio não há paisagem, não há bosque, não há animais.
Não há nada e nós nada podemos proteger. Isto é o que está a fazer o transvase
Tejo-Segura. Está a destruir tudo, a nossa essência, a nossa agricultura, o
nosso desporto aquático, que aqui é o principal desporto, o nosso turismo, as
nossas festas populares que festejam o rio, a nossa cultura e a nossa
economia”, salienta.
“O
transvase tem de parar já”, afirma, acrescentando que é necessário “um grande
pacto pela água”, entre o estado central e “os municípios afectados pelo
transvase, que resolva o problema de maneira territorial e não política.”
Garante mesmo que todos os municípios, independentemente da sua cor política,
“estão unidos contra o roubo da água.”
Questionada sobre os efeitos que a paragem da transferência
de água teria nas populações de Múrcia, Patrícia Moreno diz que há outras
soluções para abastecer aquela região, como a dessalinização da água do mar, ou
encontrá-la nos aquíferos subterrâneos
de Múrcia onde diz estar “provado cientificamente que há muita água.”
“Acabem com as cada vez mais canalizações ilegais de água,
em edifícios igualmente ilegais, acabem com os campos de golfe, com cultivo
intensivo e cada vez mais extensivo no meio de um deserto. Num deserto não se pode cultivar, por isso não
podem continuar a ampliar as zonas de cultivo. Façam isto e têm parte do
problema resolvido”, diz, em jeito de recado, aos dirigentes políticos de
Múrcia.
Diz saber
que Múrcia é “a horta de Espanha” e garante que o seu município e todos os
outros afectados pelo Tejo-Segura “sempre foram solidários com Múrcia”. “Quando
se se começa a matar tudo não podemos ficar calados. Aqui há zonas do Tejo que
se podem atravessar a pé. Eu sempre digo, o Tejo nasce em Albarracín e desagua
em Múrcia.”
Patricia
Moreno diz “haver uma guerra da água em Espanha”, entre os municípios afectados
pelo transvase e Múrcia. “Uma guerra onde há interesses económicos muito
poderosos, com muito dinheiro. Há gente a ganhar muito dinheiro nesta guerra da
água, a fazer negócio com ela. Já há casos de corrupção a serem julgados
ligados ao negócio da água. Por trás deste transvase há muito dinheiro e muito
dinheiro oculto”.
A autarca
diz ainda não ter dúvidas que “Portugal também vai sentir os efeitos nefastos
do transvase.” “Se é que não está já a sentir.”
Uma
“guerra” Espanha-Portugal
Manuel
Ganãn, presidente da Assembleia de Defesa do Tejo Aranjuez, assistiu à conversa
com a autarca e diz “partilhar a 100 por cento” as preocupações de Patrícia
Moreno. “O que se passa é o seguinte: houve um acidente e alguém está a morrer.
Tu dás o teu sangue para lhe salvar a vida, mas tiram-te o sangue todo e
morres.”
Também ele
fala de uma guerra da água, mas vai mais longe. “A guerra hoje é em Espanha,
mas não duvides, um dia, quando houver ainda menos água aqui, a guerra vai ser
entre Portugal e Espanha. Acreditas que Espanha vai deixar passar para Portugal
a água que passa hoje se precisar urgentemente dela? Só um tolo pensaria tal.
Preparem-se, os portugueses também vão sofrer o que nós estamos a sofrer”,
acrescenta em jeito de aviso.
Jarama,
mais um grave problema
No lugar de
Las Cabezadas, a uma dúzia de quilómetros do centro de Aranjuez, junto a um
campo de cultivo e rodeado por floresta, o rio Jarama junta-se ao Tejo. O
abraço das águas é visível, com castanho claro do Jarama a unir-se ao verde
escuro do Tejo.
Aqui, a
juntar ao transvase e à seca, nasce outro problema muito grave: o já poluído
Tejo recebe uma nova carga poluente de enormes dimensões. É que o Jarama
atravessa Madrid antes de se juntar ao Tejo e com ele traz detritos de 6,5
milhões de pessoas, em que as depurações da água são muitas vezes ineficientes.
Daqui para baixo o Tejo vai passar a transportar detritos e “venenos” de muita
ordem.
“Venenos” e
má gestão
A ponte
medieval de San Marti é central entre o vasto monumental património
arquitectónico de vários séculos que fazem com que a cidade de Toledo seja há
30 Património da Humanidade da UNESCO.
No final da
tarde da passada quarta-feira, muitos turistas passeavam ainda pela ponte. No
ar há um cheiro intenso a lixivia. Olhando para o caudal do Tejo que ali corre
percebe-se que o cheiro vem das muitas manchas da espuma branca que navega
sobre o rio.
“Aquilo é
fosfato e muitas outras porcarias que o Tejo transporta desde que se lhe juntou
o Jarama”, explica Alejandro Cano, presidente da Plataforma de Defesa do Tejo.
Cano, 61
anos, dedica-se, desde que se viu obrigado a uma “reforma antecipada forçada”,
há cerca de 10 anos, a estudar os problemas do rio. Fala do Tejo com paixão.
“O Tejo
está em permanente agonia. É um rio morto, não tem o caudal adequado, está
sujo, muito sujo, não tem a plantação nativa, nem os seus peixes
característicos, porque, excepto o barbo, todos desapareceram. Nem as aves que
o sobrevoam são as nativas do rio. O Tejo está morto”, afirma.
Sob a ponte
estariam a passar naquele momento 35 metros cúbicos de água por segundo. “Só
seis ou sete são do Tejo, o resto são águas residuais de Madrid”, salienta.
A culpa,
acrescenta, é “da má gestão do rio que é feita pela hidroeléctricas” e “pelos
poluidores que lançam todo o tipo de porcaria para o rio e a quem compensa mais
pagar as multas que tratar do lixo”.
207
represas só em Espanha
Cano diz
mesmo para que não nos deixemos “impressionar pelas fotos que mostram o rio
vazio culpando a seca”. “Claro que a seca é um problema, mas a Península
Ibérica está habituada aos períodos de seca. Sempre as houve. Mas não é a seca
que tira a água do rio, é a má gestão. Está-se a jogar com a seca para esconder
tudo o resto, a contaminação do rio, e a má gestão, em que as hidroeléctricas
gerem o ritmo das águas do rio de acordo com os seus interesses e
desrespeitando o seu ritmo normal.”
Só na
demarcação espanhola da bacia do Tejo existem 207 barragens, com capacidade
total de mais de 11.000 hm3. São usadas para produção eléctrica e irrigação.
Uma gestão
que, diz, faz com que o Tejo “não seja um rio vivo e tenha um caudal fraco”,
que “não respeita as suas dinâmicas”, que o “transforma”. “Os interesses
económicos sobrepõem-se aos interesses do rio e, como tal, aos interesses das
pessoas.”
“O Tejo
hoje já não é um rio, é uma ria, em alguns locais não passa mesmo de um
riacho”, acrescenta.
Desde 1972
que, em boa parte do troço do rio naquela região é proibido nadar e pescar.
Alejandro Cano faz uma pergunta: “Viram algum cartaz, algum aviso, a revelar a
proibição?” E dá a resposta pronta: “Não, porque não os há. É mau para o
turismo. É mais uma vez os interesses económicos a sobreporem-se aos das
pessoas.”
Este
activista de defesa do Tejo levou-nos pelas margens do Rio Toledo, “há uns anos
cheias de vida e hoje abandonadas de gente”. Onde "o caudal baixou de
forma significativa o rio perdeu força e alma”. Mostrou-nos, desde o cimo da
serra, a albufeira da barragem de Castregon, em Cuenca, a primeira a receber as
águas depois do Tejo e Jarama se juntarem. Ali o Tejo corre entre enormes ilhas
castanhas, “montanhas de matéria orgânica, lixo e gases nocivos à saúde".
A ponte
romana de San Martin de Montalbán, com os seus 20 arcos, tem 200 metros de
comprimento, que era a largura do caudal na altura da construção. Hoje, o leito
está entupido de lixo e o caudal não tem mais de 1,5 metros de largura. Ao lado
da ponte, há um enorme matadouro e no que resta do rio são encontrados
"com frequência, vísceras de diversos animais".
“Claro que
esta poluição chega a Portugal, não assim como a vemos aqui porque a água vai
passando por várias barragens, mas quando chega a Portugal claro que vai
contaminada. O veneno está lá. Em Portugal, como em Espanha, são as
hidroeléctricas que fazem a gestão do rio. Se isto não mudar no Tejo, tudo vai
morrer, tudo”, diz Cano.
tp.ocilbup@zeravla.onaicul
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