OPINIÃO
Resposta
a Miguel Sousa Tavares
JOÃO MIGUEL TAVARES
07/04/2016 - PÚBLICO
Para
prender ou libertar Sócrates, é preciso esperar pelos tribunais.
Para analisar e criticar Sócrates, basta ler jornais.
No último Expresso,
Miguel Sousa Tavares (MST) criticou o meu texto intitulado “Os
interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?”. Eu defendi que
sim, em primeiro lugar, por estarem em causa crimes envolvendo um
ex-primeiro-ministro no exercício das suas funções; em segundo
lugar, por esse ex-primeiro-ministro ter afirmado inúmeras vezes que
não existem motivos para estar a ser investigado. MST discorda de
mim. E embora tenha a simpatia de não me incluir no grupo daqueles
que “conviveriam sem problemas com os métodos instrutórios da
PIDE”, acusa-me, em compensação, de não me ter dado “ao
trabalho de pensar a sério antes de escrever”.
Ora, o meu
pensamento pode estar errado, viciado ou ser simplesmente estúpido,
mas eu pus nele a máxima seriedade ao meu alcance, na medida em que
este tema revela à exaustão as tremendas fragilidades do nosso
espaço público e a existência de uma cultura de respeitinho no
escrutínio da actividade política. Tal deve-se, em boa parte, à
forma como insistentemente se exportam as regras do sistema judicial
para o palco mediático, por razões de estratégia e de retórica. A
presunção de inocência e o segredo de justiça são um interruptor
que se liga ou se desliga consoante a nossa simpatia e a nossa
distância geográfica em relação aos envolvidos. Se eu não gosto
do político A e dele me sinto ideologicamente distante, comento as
fugas ao segredo de justiça e suspendo o meu amor à presunção de
inocência. Se eu gosto do político B ou dele me sinto
ideologicamente próximo, acendo o meu amor à presunção da
inocência e deploro as fugas ao segredo de justiça.
Repare-se como a
exigência muda substancialmente consoante estamos a falar de
Portugal ou da Rússia. Em Portugal, mesmo depois de tudo aquilo que
já lemos e ouvimos, há quem defenda que é preciso esperar pela
decisão dos tribunais para concluir se o dinheiro é de Carlos
Santos Silva ou de José Sócrates. Mas quando olhamos para aquilo
que os Panama Papers revelam sobre a Rússia, não duvidamos nem por
um momento que o dinheiro do violoncelista milionário seja, na
verdade, de Putin. É uma presunção de inocência com
geolocalização.
Nove vezes em cada
dez, a invocação da presunção de inocência esconde o desejo de
frear o debate público – “há que esperar pelo que dizem os
tribunais”, protestam os defensores de Sócrates. Não, não há.
Nenhum de nós tem de colocar nas mãos de um tribunal aquilo que
deve pensar sobre um político, ou suspender a sua capacidade de
juízo até a sentença transitar em julgado. E isto, lamento, não
pode ser confundido com qualquer espécie de desejo de “justiça
popular” – é um desejo, isso sim, de debater na praça pública
aquilo que se sabe sobre o processo e sobre a actuação de um
ex-primeiro-ministro. Para prender ou libertar Sócrates, é preciso
esperar pelos tribunais. Para analisar e criticar Sócrates, basta
ler jornais.
Escreve MST: “Os
meios são justificados pelos fins que anseiam – no caso, a
liquidação política e moral de Sócrates ou Lula da Silva.” Essa
é uma boa formulação acerca daquilo que nos divide. Não sou eu
que estou a atribuir uma “função judicial” ao jornalismo. É
MST que está a atribuir uma função jornalística aos tribunais.
MST aguarda que a justiça lhe dê autorização para liquidar
Sócrates política e moralmente. Lamento, mas esse não é o
trabalho da justiça. Esse é um trabalho nosso, enquanto cidadãos.
É, aliás, por termos demorado tanto tempo a realizá-lo que
Sócrates chegou onde chegou.
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