sábado, 5 de maio de 2018

Vender a alma ao turismo





Vender a alma ao turismo

Como as beatas que velam pelas igrejas, muitos “agentes” do turismo vêem em cada crítica ao descontrolo do turismo uma ameaça, uma conspiração e um pecado. Falamos da identidade dos centros históricos e eles acenam com a fogueira dos hereges.

BÁRBARA REIS
4 de Maio de 2018, 6:45

O crescimento do turismo é o novo tabu do debate português. Como na discussão sobre o politicamente correcto ou a eutanásia, não se pode ser agnóstico, muito menos ateu.

Quem não vê um mar de rosas é antipatriótico. Quem defende mais regulação tem uma “agenda política”. Quem mostra preocupação com o esvaziamento dos centros históricos quer destruir a economia. Quem pede mais intervenção das câmaras e dos governos é insensível, irrealista e irresponsável. Quem não tem fé cega no mercado é ignorante. Quem fala do impacto negativo do turismo de massas noutras cidades europeias é manipulador. Quem critica é malicioso. Quem questiona faz propaganda. Quem defende travões esconde um lobby.

Como as beatas que velam pelas igrejas, muitos “agentes” do turismo vêem ameaças, conspirações e pecados a cada esquina.

Sobre o Algarve não se pode falar, talvez por ser demasiado doloroso. Passamos por Quarteira e Armação de Pêra com uma venda nos olhos e dizemos que ainda há “paraísos secretos” a um passo do caos. Atravessamos a Strip — é assim que, inspirados em Las Vegas, os turistas chamam à Rua da Oura em Albufeira — e lembram-nos que nos anos 1960 se passava “fome a sério no Algarve”. Olhamos com tristeza para a costa algarvia transformada numa Torremolinos semicontínua e perguntam se queremos mandar milhares para o desemprego. Ao ler o livro Turista Infiltrado (FFMS, 2017), de Bernardo Gaivão, descobri que o guia de viagens Lonely Planet descreve as “praias douradas” do Algarve com enlevo, mas a seguir acrescenta: “Sejamos honestos: o principal destino de férias de Portugal vendeu a sua alma ao turismo nos anos 1960.”

De Veneza também não se pode falar, porque isso é comparar alhos com bugalhos, dizem de imediato, esquecendo que Cícero, que ensinou o Ocidente a argumentar, falou assim para um amigo que estava a morrer: “Marcellinus, não te atormentes. Viver não é assim tão especial. Todos os teus escravos o fazem e também todos os animais.” Hoje parece estranho, mas no mundo a.C. essas eram categorias diferentes: cidadãos de um lado, escravos e animais do outro. Sim, olhemos para Veneza. É desconfortável e o exercício dá-nos uma única fonte de tranquilidade: foi o encanto extremo de Veneza que conduziu a soluções extremas (como fechar partes da cidade com barreiras de ferro). Sendo as nossas cidades menos exóticas, não vamos acabar com cancelas no Terreiro do Paço. Mas das réplicas dos outros efeitos nocivos do descontrolo do turismo não escapamos. A “expansão desenfreada do alojamento a curto prazo” é justamente uma das preocupações do Corporate Europe Observatory, que esta quinta-feira publicou um relatório sobre o lobby que o Airbnb faz junto das instituições europeias (investiu meio milhão nos últimos dois anos).

De Berlim e Barcelona também não se pode falar porque são países ricos e nós somos pobres e porque as legislações são diferentes. Das lojas distintivas que estão a desaparecer não se pode falar sem receber telefonemas “a título pessoal” de assessores da Câmara Municipal de Lisboa, incomodados com as críticas. Do alojamento local nos centros históricos não se pode falar sem abrir a jaula de leões. Dos tuk-tuk não se pode falar sem abrir a jaula ao lado. Da importância da identidade dos centros históricos não se pode falar porque isso é matar o empreendedorismo e desprezar as famílias que vivem desse negócio. Querem fazer-nos crer que há uma verdade única e quem tem dúvidas é herege e vai para a fogueira.

  

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