sábado, 5 de maio de 2018

Alice já não mora aqui



Alice já não mora aqui

Lisboa passou a viver de e para o turismo, fomentando a destruição de toda a zona central da cidade.

MARGARIDA SAAVEDRA
4 de Maio de 2018, 6:19
 https://www.publico.pt/2018/05/04/local/opiniao/alice-ja-nao-mora-aqui-1824205

A casa onde Alice morava foi transformada em muitas casas pequenas e o Francisco diz que o prédio ficou cheio de figurantes. É assim que chamam aos vizinhos que chegam e logo partem, malas a arrastar e mapa na mão.

Procura uma casa para a Alice poder voltar a brincar com ele. Aponta para o lote em frente à minha casa:

– Não, aí não!

– Mais figurantes? – respondo que sim

Vejamos: o turismo é um bem! Animou a economia e fez renascer o casco histórico onde fogos de exíguas dimensões (que por vezes não chegam a ter 25 m2), depois da casa de banho que não existia e de uma kitchenette com o mínimo, ficam reduzidos a um exíguo T0 ou T1, se houver janela. Estes fogos, pouco vocacionados para longas estadias, são o alvo daqueles que procuram Lisboa, única na encruzilhada de civilizações milenárias, numa memória exclusiva. Veio trazer desafios de qualidade e criatividade fazendo rejuvenescer o pequeno comércio local. O problema é que se tornou invasivo e, ao invés de fortalecer uma relação simbiótica com os habitantes, começou a expulsá-los.

Com o apoio do PS e dos independentes liderados por Helena Roseta, a câmara passou a viver de e para o turismo, fomentando a destruição de toda a zona central da cidade, outrora residência da classe média, inundando-a de hotéis e serviços, permitindo que habitações familiares se desdobrassem em dezenas de T0 e T1, fazendo subir em flecha, pela escassez, apartamentos com mais de 80 m2.

A câmara poderia ter contrabalançado este desequilíbrio fixando habitações familiares na Praça de Espanha, Entrecampos, Restelo, etc., onde detinha enormes superfícies. Mas não: veio aumentar este deficit lançando em hasta pública, a quem pagar melhor, mais hotéis, mais serviços, aquilo que mais rende, como qualquer especulador. A Alice também já não deverá ir para Benfica, uma vez que o plano foi alterado de forma a que T2 e T3 dessem lugar a T0 e T1.

Estes mesmos que agora despem as vestes nos telejornais, proclamando o direito à habitação e ameaçando os proprietários que se aproveitam da escassez que eles incentivaram. Com a prática de especuladores, vêm reclamar contra a especulação numa cidade cheia de figurantes, que lhes são simpáticos, porque não votam, fazem disparar o IMI, relançam o comércio. Não precisam de buracos tapados nas ruas, de sarjetas limpas, de creches, de escolas, de apoios que a Alice precisa... mas a Alice já não mora aqui!

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