Alice já não mora aqui
Lisboa passou a viver de e para o turismo, fomentando a destruição de
toda a zona central da cidade.
MARGARIDA SAAVEDRA
4 de Maio de 2018, 6:19
https://www.publico.pt/2018/05/04/local/opiniao/alice-ja-nao-mora-aqui-1824205
A casa onde Alice morava foi transformada em muitas casas
pequenas e o Francisco diz que o prédio ficou cheio de figurantes. É assim que
chamam aos vizinhos que chegam e logo partem, malas a arrastar e mapa na mão.
Procura uma casa para a Alice poder voltar a brincar com
ele. Aponta para o lote em frente à minha casa:
– Não, aí não!
– Mais figurantes? – respondo que sim
Vejamos: o turismo é um bem! Animou a economia e fez
renascer o casco histórico onde fogos de exíguas dimensões (que por vezes não
chegam a ter 25 m2), depois da casa de banho que não existia e de uma
kitchenette com o mínimo, ficam reduzidos a um exíguo T0 ou T1, se houver
janela. Estes fogos, pouco vocacionados para longas estadias, são o alvo
daqueles que procuram Lisboa, única na encruzilhada de civilizações milenárias,
numa memória exclusiva. Veio trazer desafios de qualidade e criatividade
fazendo rejuvenescer o pequeno comércio local. O problema é que se tornou
invasivo e, ao invés de fortalecer uma relação simbiótica com os habitantes,
começou a expulsá-los.
Com o apoio do PS e dos independentes liderados por Helena
Roseta, a câmara passou a viver de e para o turismo, fomentando a destruição de
toda a zona central da cidade, outrora residência da classe média, inundando-a
de hotéis e serviços, permitindo que habitações familiares se desdobrassem em
dezenas de T0 e T1, fazendo subir em flecha, pela escassez, apartamentos com
mais de 80 m2.
A câmara poderia ter contrabalançado este desequilíbrio
fixando habitações familiares na Praça de Espanha, Entrecampos, Restelo, etc.,
onde detinha enormes superfícies. Mas não: veio aumentar este deficit lançando
em hasta pública, a quem pagar melhor, mais hotéis, mais serviços, aquilo que
mais rende, como qualquer especulador. A Alice também já não deverá ir para
Benfica, uma vez que o plano foi alterado de forma a que T2 e T3 dessem lugar a
T0 e T1.
Estes mesmos que agora despem as vestes nos telejornais,
proclamando o direito à habitação e ameaçando os proprietários que se
aproveitam da escassez que eles incentivaram. Com a prática de especuladores,
vêm reclamar contra a especulação numa cidade cheia de figurantes, que lhes são
simpáticos, porque não votam, fazem disparar o IMI, relançam o comércio. Não
precisam de buracos tapados nas ruas, de sarjetas limpas, de creches, de
escolas, de apoios que a Alice precisa... mas a Alice já não mora aqui!
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