EDITORIAL
Uma
clara falta de sentido de Estado
DIRECÇÃO EDITORIAL
08/04/2016 - PÚBLICO
As ameaças de João
Soares não amedrontam. Mas quem não sabe ser ministro não lhe
vista a pele.
Ontem, um estudante
universitário de 26 anos que publicava mensagens no Facebook contra
o islamismo foi assassinado na capital do Bangladesh. Um assassinato
selectivo: barraram-no na rua, agrediram-no com catanas e, já no
chão, mataram-no com um tiro. No mesmo dia, Portugal discutia
ameaças publicadas por um ministro no Facebook (é por aqui que tudo
passa, hoje em dia) contra críticas ao seu ministério e à forma
como o gere. Ora o ministro em causa, João Soares, que tutela a
Cultura, perante um texto onde o crítico Augusto M. Seabra tecia
considerações políticas sobre a sua pessoa enquanto ministro,
escreveu no seu Facebook pessoal isto: “Em 1999 prometi-lhe
publicamente um par de bofetadas. Foi uma promessa que ainda não
pude cumprir. (...) Ele tinha, então, bolçado sobre mim umas
aleivosias e calúnias. Agora volta a bolçar, no "Publico".
(...) Estou a ver que tenho de o procurar, a ele e já agora ao Vasco
Pulido Valente, para as salutares bofetadas. Só lhes podem fazer
bem. A mim também.” A palavra “bolçar” já denota só por si
um estilo deplorável em quem tutela a Cultura, mesmo num desabafo
momentâneo. Mas a ameaça das “salutares bofetadas”, mesmo que
possam ser entendidas como figura literária e não como intenção
de agredir, é completamente inadmissível num ministro em funções,
em particular na área que tutela – e as críticas que lhe foram
dirigidas situam-se estritamente nessa área. Ele não ameaçou,
enquanto cidadão, um delinquente que lhe riscou o carro ou que lhe
partiu os vidros de uma janela da sua casa; ameaçou um crítico e um
cronista (lembrou-se de uma crónica de Vasco Pulido Valente a
propósito do caso Lamas-CCB) que lhe fizeram acusações políticas,
e por isso só pode tê-lo feito enquanto ministro, ainda que no seu
Facebook pessoal. Aliás, João Soares mostra, com isto e com a forma
como tem usado o Facebook após ter sido empossado no cargo, que
ainda não percebeu que o “cidadão João Soares”, a partir do
momento em que tutela a cultura e fala dela, não existe; existe,
sim, o ministro João Soares: quando enaltece, critica, acusa ou
ataca alguém da área cultural, é o ministro que o faz, não o
cidadão João Soares. Da mesma maneira que, quando diz bem ou mal de
um espectáculo ou de determinado autor, é o ministro que fala, ao
assinar João Soares no Facebook. Talvez isto lhe custe a entender,
mas no cargo de ministro não há espaço para um “Mr. Hyde”
quando está o Dr. Jekyll no comando.
O PS também devia
perceber isto, mas, nesta matéria, tem pés de barro. Há a célebre
frase “quem se mete com o PS leva”, o próprio primeiro-ministro
já teve problemas com jornalistas, e, em geral, há demasiada
permissividade para com um trauliteirismo verbal que nada dignifica a
política. Afastar João Soares do governo podia, por isso, trazer
mais dissabores do que sossego a António Costa. Claro que não
estamos no Bangladesh e este tipo de ameaças não amedronta ninguém.
Por isso, João Soares escusava de vir dizer, como um adolescente
apanhado em falta, “Peço desculpa se os assustei”. Mas o
problema não é esse, é de sentido de Estado. Ninguém é obrigado
a ser ministro. Mas quem não sabe ser ministro não lhe vista a
pele. É isso que se exige, em democracia.
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