OPINIÃO
O
turismo? Que detestável
ANTÓNIO GUERREIRO
01/04/2016 / PÚBLICO
Há um fenómeno da
nossa civilização, o mais importante do nosso tempo, que merece ser
criticado, pelos efeitos devastadores que tem, mas não é fácil de
criticar (e não exactamente por termos de lhe reconhecer também
importantes efeitos benéficos). Esse fenómeno é o turismo. Quem
mora no centro histórico de uma cidade com grande densidade de
turismo (Lisboa já pertence a uma categoria bem situada na escala)
acaba por se sentir expatriado e ver dificultados muitos aspectos da
sua vida material. Mas a verdade, que ele não ousa confessar a si
próprio porque raramente a reconhece, é esta: é que a cidade de
que ele se sente expropriado e que ele lamenta perder não é aquela
que existia antes do turismo (a essa cidade triste e cristalizada ele
nem sonha regressar), mas a cidade formada e conformada ao turismo. O
autóctone, no fundo, quer viver nesta condição impossível: numa
cidade turística, mas sem turistas, ou numa cidade com turistas mas
não turística. O autóctone mais sofisticado, treinado na crítica
da ideologia, evita ter uma atitude racista, xenófoba ou de
superioridade em relação aos turistas, mas esse cuidado é difícil
de manter porque estes acabam por o irritar. Se não o irritam pelo
que são e fazem, irritam-no pelo que significam. É que,
involuntariamente, e sem o saberem, restituem-lhe, como um espelho, a
imagem que ele deu a autóctones como ele nos momentos e nos lugares
em que foi turista. O autóctone que se sente denunciado a si próprio
é porque tem um alto grau de autoconsciência e pode decidir nunca
mais fazer turismo, decisão que só vai agravar o seu ódio
silencioso aos turistas. Já que as viagens não lhe estão
reservadas em exclusivo, como ele implicitamente reclama, o melhor é
desistir delas. Ele é um desencantado do turismo, mas não daquele
desencantamento que quase todo o turista conhece, quando se dá conta
de que a sua maravilhosa viagem serviu para lhe inocular o vazio e o
tédio e tudo o que lhe estava prometido não passa de uma fraude.
Pode ser que o autóctone mais ou menos culto, procurando ler teorias
e histórias do turismo (um género muito menos abundante do que os
livros de viagens), descubra num livro de um escritor alemão muito
conservador, chamado Gerhard Nebel, um excerto onde se dizem coisas
que só um alemão contemporâneo de Heidegger consegue dizer: “O
turismo ocidental é um dos maiores movimentos nihilistas, uma das
grandes epidemias do Ocidente, que no seu grau de nocividade está
apenas abaixo das epidemias do Centro e do Leste, mas ultrapassa-as
em silenciosa perfídia. Os enxames dessas bactérias gigantes
chamadas turistas recobrem as substâncias mais diversas da
viscosidade uniformemente cintilante que dá pelo nome de Thomas
Cook, de maneira que acabam por não distinguir bem o Cairo de
Honolulu e Taormina de Colombo”. E, a rematar, Nebel, que não
conheceu o turismo de massas actual, tem uma frase que parece vir do
círculo sinistro do grande vate Stefan George, onde se celebrava
poeticamente uma “Alemanha secreta”: “Um país que se abre ao
turismo fecha-se metafisicamente – oferece um cenário, mas já não
a sua mágica potência”. O problema é que esta denúncia do
turismo é apenas mais enfática e empolada do que aquelas que são
produzidas com frequência. Mas, tirando isso, há um ar de família
neste discurso. O autóctone insensível aos fechamentos metafísicos
continua ainda assim com uma enorme vontade de fazer uma crítica do
turismo. Este bem merece, e muito, mas não é fácil. Mal começa a
fazê-la, o autóctone já está a cair em armadilhas. Até por isto
o turismo é um fenómeno detestável.
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