Fernando
Medina: "Seria descabido impedir um estrangeiro de comprar casa
no bairro de Alfama"
Entrevista
a Fernando Medina (parte I). Mudança na lei das rendas está a ser
negociada com António Costa
Entrevista
02 DE ABRIL DE 2016
01:28
André Macedo e Inês
Banha
DN online
Fernando Medina
substituiu António Costa na Câmara de Lisboa faz quarta-feira um
ano. O que mudou na cidade entretanto e o que mudará até ao fim do
mandato, em 2017? Como gerir a tensão provocada pela chegada de
turistas e a necessidade de moderar o impacto que, dizem os críticos,
ameaça transformar as zonas históricas numa espécie de parque
temático, sem vida (como ela é) e cor, com poucos moradores
lisboetas, embora ainda com fadistas e miradouros? Ou haverá nestas
opiniões algum exagero? E ainda: as obras eternas na cidade, aqui ou
ali, a desertificação da Baixa e também a nova vida da Baixa, o
estacionamento, as rendas, a especulação imobiliária. Uma
entrevista ao presidente da câmara para ler hoje - a segunda parte
já amanhã. A cidade voltou a ser assunto para os lisboetas.
Como é que o
presidente da câmara vive a cidade? Quando passa numa rua, vê mais
problemas do que coisas bonitas, provavelmente.
A forma como se vive
a cidade é, de facto, diferente. Às vezes, estou com amigos ou com
a família, andamos pela cidade, e estou sempre a reparar naquilo que
é preciso fazer, nalguma ideia ou em algo que não está bem e então
dizem-me: "Para lá de trabalhar!"
"Tiro
fotografias e envio, às vezes às mais altas horas da noite, ou
quando passeio de bicicleta, para os diretores e vereadores"
Tira fotografias das
coisas que não estão bem?
Sim, em permanência.
É uma das vantagens destes telemóveis, embora seja também uma
desvantagem para as equipas que trabalham aqui. Eu tiro fotografias e
envio, às vezes às mais altas horas da noite, aos fins de semana ou
quando passeio de bicicleta, e mando-as para os diretores e
vereadores. Chamo a atenção para vários assuntos.
Que problemas tem
encontrado mais em Lisboa nesses passeios?
Tenho uma uma grande
preocupação. Tem que ver com a manutenção da cidade. Tudo aquilo
que mexe com a qualidade do espaço público, desde os passeios aos
sinais mal colocados ou ao excesso de sinalética nas ruas. Temos de
ter uma cidade preparada para as pessoas usufruírem do espaço
público, a ideia base é esta. Além disso, uma parte importante da
população de Lisboa é mais velha, precisa de ter condições para
circular em segurança. Estou muito atento a isso.
As pessoas
queixam-se diretamente a si?
Sim, vêm falar
comigo. A relação com o presidente da câmara é única. As pessoas
têm uma grande intensidade na reclamação, mas também grande
generosidade e compreensão. São bastante reivindicativas sobre o
problema que as perturba.
Falam de problemas
muito concretos ou mais estruturais?
Muito concretos.
Problemas muito intensos, porque para elas a questão é única, não
é? E tem de ser resolvida, porque lhe causa um prejuízo pesado.
E esse é o tipo de
contacto direto que tem com os munícipes?
São encontros que
acontecem espontânea e fortuitamente. Acontece também porque
procuramos tê-los. Na programação da nossa agenda, sabemos que é
importante dedicar parte do trabalho ao terreno, a visitar as
freguesias, a ir ao território ouvir os presidentes de cada uma
delas. Não ouvimos apenas os presidentes das juntas, ouvimos também
a população, as associações locais, as forças de cada freguesia,
os moradores. Participam todos nesse debate. Há ainda uma prática
que foi instituída pelo António Costa: as reuniões públicas
descentralizadas.
O que são?
São reuniões em
que o executivo todo só tem um ponto único na ordem de trabalhos:
ouvir os munícipes de determinada freguesia ou de determinado
conjunto de freguesias.
São sempre as
mesmas pessoas que frequentam esses debates?
Algumas repetem, mas
há sempre participantes novos. Alguns problemas resolvem-se, depois
surgem novos problemas. Outros, infelizmente, arrastam-se. Mas entre
a preparação e a reunião e, depois, a sequência da reunião, dá
para sentir o pulso do que se está a passar e dá para resolver um
conjunto de questões . É importante perceber que a cidade é muito,
muito, diferente. Quando falamos de uma freguesia como as da coroa
norte...
... Que freguesias
são essas?
Lumiar, Carnide, São
Domingos de Benfica... São freguesias com uma população muito
significativa. Estamos a falar das maiores freguesias da cidade, onde
reside a maior parte da população urbana, mas onde, por exemplo,
não trabalha uma parte importante da cidade de Lisboa. Não é aí
que está a maioria dos empregos.
Está a falar dos
serviços, das sedes das empresas?
Exatamente. Quando
chegamos, por exemplo, aqui à zona da Baixa, as grandes questões
que se colocam são outras. Há muito menos pressão do ponto de
vista da população residente, que é muito menor... Mas a pressão
do ponto de vista da população que vem aqui trabalhar e da
população que, todos os dias, usa a cidade é muito grande.
"Só
refleti sobre a hipótese (de ser presidente da câmara) quando o
António Costa me convidou para número dois"
Nunca pensou,
provavelmente, ser presidente da Câmara de Lisboa. Aconteceu estar
integrado no executivo com António Costa e depois acabou por assumir
esta função. É assim?
Nunca pensei no
assunto, é verdade. Não pensei que isto me fosse acontecer. Só
refleti sobre a hipótese quando o António Costa me convidou para
ser número dois dele.
Ficou com a área
financeira.
Com as finanças,
sim. Nessa altura é que as coisas se puseram e eu perguntei-lhe:
"Bom, mas tu vais sair?" E ele disse-me: "Sim, eu
terei sempre de sair!" Porque com a lei da limitação dos
mandatos este seria sempre o último de António Costa. Então
disse-lhe: "Isso significa...?" E ele riu-se e disse: "Isso
significa que ficarás como número um e terás de levar o barco a
bom porto."
Pensa, portanto,
recandidatar-se?
Isso será a seu
tempo [risos]. Quer dizer, não quero fazer disto... as questões têm
o seu tempo. Acho que durante este ano, até ao final deste ano, tudo
ficará clarificado. O que posso dizer agora é que gosto muito
daquilo que estou a fazer. É um lugar fascinante. Acordo todas as
manhãs com vontade de vir trabalhar.
Mesmo quando há
inundações?
Vamos lá ver, isto
é uma função muito exigente, muito complexa.
Há muitas
emergências. É uma pessoa que centraliza as decisões ou já
consegue delegar mais?
Depende das áreas e
depende também do estado dos dossiês. É natural que algumas áreas
precisem de mais iniciativa e mais controlo político, logo, tenham
de ser assumidas por mim.
Por exemplo?
Todos os assuntos
novos. Numa câmara como a de Lisboa lidamos, basicamente, com dois
tipos de problemas: aqueles que nos entram pela porta dentro, as
emergências...
... As inundações,
os buracos...
As inundações, a
proteção civil, a manutenção geral da cidade, também problemas
mais prementes do ponto de vista da política de habitação, coisas
muitos concretas que mexem com a vida das famílias e dos bairros. E
ainda os eventos em que a Câmara de Lisboa está presente, como as
receções aos chefes de Estado estrangeiros. São acontecimentos
pontuais que mexem com o ritmo da cidade, provocam transtornos e
alterações, e é preciso estar atento, porque implicam a ocupação
do espaço público. Eventos desportivos, os concertos, os
festivais... Quer dizer, tudo isso é o dia--a-dia da cidade, é
aquilo que nos entra pela porta aqui da câmara e nos obriga a dar
resposta rápida. Depois há uma outra parte: a nossa agenda de
transformação da cidade.
Neste primeiro ano
de mandato mudou muito a sua visão de Lisboa?
Estamos sempre a
aprender coisas novas e a ver novas complexidades na cidade. O
António Costa disse-me uma vez que a questão fundamental da gestão
de uma cidade era saber gerir os conflitos. E, de facto, é muito
isso. Saber entender a cidade é saber entender que estamos sempre a
lidar com escolhas.
Conflitos de
pessoas, conflitos de interesses, conflitos de vizinhança, conflitos
políticos...
Desde os assuntos
mais simples aos mais complicados. Dos mais genéricos aos mais
pessoais. Quando desenhamos uma ciclovia, estamos a arbitrar o que é
o espaço que vai para o automóvel, o que fica para o pedonal, o que
vai para o novo meio de transporte. Quando tomamos uma decisão sobre
qualquer licenciamento é isso que está em causa também. Quer
dizer, quando eu digo "conflitos" é nas diferenças que
estou a pensar, não significa que sejam mesmo choques com
visibilidade. Muitas vezes são diferentes sensibilidades sobre a
cidade. Por exemplo quando discutimos a questão do ruído, que é
das mais importantes na vida da cidade...
... A relação
entre moradores e bares, discotecas, é isso?
Há a necessidade de
compatibilizar dois objetivos diferentes. A necessidade do sossego,
ou seja, o descanso das pessoas, a que todos têm direito, mas também
o facto de a cidade precisar de vida noturna, intensa, vibrante e
dinâmica. Não queremos uma cidade chata.
Lisboa passou a
estar no roteiro turístico. Isso expôs a tensão entre moradores
das zonas antigas (ou talvez os lisboetas que olham de fora para
estes bairros históricos) e o espaço que hotéis, hostels e etc.,
vão ocupando. O que lhe parece este debate?
Em primeiro lugar, é
importante sublinhar que não haverá bom desenvolvimento turístico
sem que a cidade esteja equilibrada do ponto de vista dos residentes.
Eu não acredito que haja desenvolvimento turístico sustentável
feito de costas voltadas para os moradores.
Até para os
próprios turistas interessa que Lisboa não se transforme num parque
temático.
A questão está em
saber se somos ou não consequentes com essa preocupação.
"Com
a mudança do governo, temos finalmente condições para mudar a lei
das rendas e afinar a reabilitação urbana"
O programa Lojas com
História, que deveria proteger algumas atividades que ainda
resistem, tem andado a passo de caracol. É só fogo-de-vista?
O programa vai ter
uma importância grande do ponto de vista da proteção desse
comércio e da proteção da identidade da cidade. Estamos muito
empenhados em que isso aconteça. Agora, o ponto central para a
eficácia desse programa está em dois elementos: em primeiro lugar,
um processo de classificação das lojas - identificar, com um
conjunto de critérios, quais as que necessitam dessa proteção. Os
critérios já estão aprovados pela câmara, foram propostos pela
comissão de acompanhamento. O trabalho já está iniciado e, em
breve, avançará.
Estamos a falar de
quantas lojas? Trezentas?
Menos do que isso,
mas o critério pode ser alargado. Em minha opinião, é possível
que venha a ser alargado. Estamos nessa discussão há mais de um
ano. Mas há outro ponto importante: a classificação dá direito
exatamente a quê, a que tipo de salvaguarda? Isso tem de ficar
claro. Além disso, é preciso perceber qual tem sido o grande fator
de ameaça a estes negócios, para o corrigir. Para mim, não há
dúvida: a causa está na lei das rendas. Neste momento, tenho a
fundada expectativa de que, com a mudança do governo, temos
finalmente condições para promover a mudança da lei do
arrendamento e também a afinação da lei da reabilitação urbana.
Em que sentido?
Antes disso,
deixe-me sublinhar o seguinte: estamos a falar de uma ameaça ao
comércio que tem viabilidade económica. São lojas que faturam e
funcionam, têm clientes e mercado. Na lei do arrendamento ainda em
vigor ficou [definido] que o arrendamento comercial pode ser
denunciado no prazo de cinco anos, mediante indemnização, qualquer
que seja a situação e a classificação das lojas. Estamos,
portanto, a falar da loja mais moderna ou da loja histórica. Nenhuma
se safa. Esta fragilidade faz com que qualquer loja, mesmo as que têm
condições para pagar as rendas atuais, possam ser despejadas por
simples conveniência do proprietário, como se não houvesse um
outro valor a preservar: a autenticidade da cidade.
Não é justo que o
dono possa dispor do seu património, ainda por cima indemnizando?
No caso das lojas
com história, o pagamento da indemnização nunca pagará aquilo que
é o seu valor intrínseco, o valor para o conjunto da cidade, a tal
preservação da autenticidade de Lisboa. A mesma coisa acontece na
lei de reabilitação urbana. Na atual lei, a reabilitação integral
dos edifícios dá logo direito à resolução do contrato de
arrendamento.
O proprietário que
decide reabilitar por inteiro o edifício fica com o poder de afastar
o inquilino.
Tal qual. E
afastá-lo não só temporariamente mas definitivamente. Resolve o
contrato. Ora, o que nós propusemos a este governo é que é preciso
encontrar uma forma de garantir que nas lojas que os municípios
classifiquem como históricos não haja lugar à resolução do
contrato. Isto permitirá salvaguardar aquilo que o município venha
a definir como o património da cidade, que transcende, de certa
forma, o mero âmbito da propriedade privada e que merece ser
protegido.
Protege-se o
património físico e protege-se o património cultural, mas o
cria-se um entrave ao proprietário, que deixa de ter incentivo para
gastar dinheiro na obra do edifício. Voltamos ao antigamente?
É uma situação
mais limitadora do que a atual, é verdade, mas neste caso é
essencial fazê-lo, porque a total liberalização significará o fim
de elementos essenciais de autenticidade de Lisboa, elementos que
ajudam a definir e a preservar a nossa identidade quer como cidade
quer como ativo turístico. A nossa cidade não será a mesma se
estas lojas não forem protegidas.
Lisboa é uma cidade
muito degradada. Logo aqui à frente, na Praça do Município, tem um
edifício abandonado. Não está a condicionar o mercado cedo de mais
quando ainda há tanto a fazer?
O imóvel aqui à
frente vai ser adquirido pela câmara... Repare, não me parece que
haja o perigo de condicionar em excesso nada. Estamos a falar de um
conjunto limitado de entidades. São 150, 200 lojas que serão
classificadas. E esta proteção não impede que se faça um hotel em
cima. Não vejo que isso seja incompatível. Pode haver coabitação.
De qualquer maneira, repito: não estamos a falar de uma medida
generalizada, estamos a falar de um conjunto limitado de edifícios
numa zona específica de Lisboa.
Nas zonas
históricas.
Sim, está
fundamentalmente concentrado nas freguesias históricas. Julgo que
esta medida valorizará os imóveis, valorizará a zona, solidificará
por isso o investimento de médio prazo, o que ajuda a cidade.
Lisboa está longe
de atingir a saturação turística de cidades como Barcelona?
Do ponto de vista
dos números isso é uma evidência. Nós não temos o direito de
desperdiçar o contributo de um setor económico, o turismo, para o
emprego e para a riqueza da cidade. Não temos esse direito! O que
nós temos é a obrigação de não pôr em causa os equilíbrios de
Lisboa. Veja a regulação dos tuk-tuks. A partir de 1 de janeiro de
2017 serão todos elétricos.
Demorou mas
aconteceu.
A regulamentação
foi aprovada, creio eu, quando devia ter sido aprovada. Vamos lá
ver. Tudo tem de ser feito com ponderação, não é? Também havia
quem dissesse que deveríamos acabar com os tuk-tuks e outros que
achavam que tudo devia ficar como está. O que nós fizemos foi
aprovar regulação que me parece sensata do ponto de vista do
desenvolvimento. Isto é, a atividade deve manter-se, porque ela é
procurada e é vista como uma ativo, apesar de não ser um produto
tradicional, mas deve funcionar com certas balizas.
Quantos tuk-tuks há
em Lisboa?
Mais de cem. Não é,
repito, um produto tradicional português [risos].
Passou a ser.
Ainda não ganhou
essa categoria. Mas é algo que tem ganho expressão e por isso não
deve ser extinto. Agora, a atividade deve estar regulada do ponto de
vista dos seus impactos, daquilo que é visto pelas pessoas como
tendo consequências negativas no dia-a-dia. O ruído e a poluição,
por exemplo. Foi por isso que limitámos algumas zonas em que não
permitimos o acesso aos tuk-tuks e criámos a obrigatoriedade, a
partir de janeiro de 2017, de serem todos elétricos. Por que razão
é que fizemos em 1 de janeiro de 2017? Porque houve pessoas que
investiram nessa atividade. Não seria sensato, de um dia para o
outro, dizer: "Acabou, desculpem lá. Tem de ser de outra
maneira." Temos de respeitar quem investe na cidade. E acho que
foi um bom ponto de equilíbrio. Resolvendo estes pontos, o que
também implicou a introdução dos horários de circulação e
colocação de zonas de paragem para recolha e largada de
passageiros, os turistas aproveitam, os empresários também, e os
lisboetas não sofrem efeitos negativos.
Há pouco falámos
do ruído e dos bares. Vêm aí regras apertadas para a noite, isso
não ameaça o turismo?
As regras são mais
apertadas do ponto de vista das condições dos bares e de todas as
unidades em certas zonas da cidade. Mas, por outro lado, são mais
flexíveis relativamente à zona ribeirinha, onde há menos conflito
com os moradores.
Portanto, incentiva
o desenvolvimento da noite de Lisboa para essas zonas e cria um
condicionamento nos centros históricos, como o Bairro Alto.
Um condicionamento
maior, sim.
Mas aí também
houve gente a investir e agora mudam as regras...
A diversão noturna
nesses bairros onde há habitação funcionará num determinado
regime, mas continuará a ter relevância. Tem apenas de haver
equilíbrio. É uma escolha política, claro, mas criamos
alternativas. Além disso, temos outra preocupação: percebemos que
a diversão noturna está a mudar. Hoje, muito do que se passa
acontece na rua e envolve muito o circuito de lojas de conveniência.
Ora, o regime das lojas de conveniência vai ser mais apertado do
ponto de vista da venda de bebidas e dos horários, com as colocações
dos referenciais de horas entre as 22.00 e a meia-noite. Isto depois
terá de ser afinado com cada junta de freguesia, com cada zona de
loja de conveniência, porque elas servem propósitos diferentes umas
das outras: há algumas que estão em zonas tipicamente de diversão
noturna e outras servem os residentes.
Nas zonas de bares e
discotecas é provável que essas lojas tenham de fechar mais cedo...
Não, a venda de
álcool é que fica limitada, é essa a ideia.
Os donos dos bares
ganham com isso, não é?
Aqui a questão
central é a do ruído e a questão da compatibilização do ruído
com o descanso. Quer dizer, se a fonte do ruído, hoje, já não se
regula exclusivamente através dos horários dos bares, passa por
aquilo que acontece na rua. Então temos de intervir aí.
"Tenho
bastante convergência de opiniões com o ministro da Cultura, João
Soares, relativamente a vários pontos"
Voltemos atrás. O
turismo hoje em Lisboa está muito centrado em certas zonas. A oferta
para os turistas é limitada ou está bem assim?
O turismo de Lisboa
concentra-se em três grandes zonas: Baixa, Castelo e Chiado; zona de
Belém e Expo. A grande parte do alojamento turístico está
concentrada na zona do Marquês de Pombal para cima. Cerca de 70% das
camas estão entre o Marquês de Pombal e a Praça de Espanha. A
maior parte não está aqui, na Baixa. Parece-me importante que
tenhamos uma estratégia que desenvolva novas centralidades
turísticas que estejam para lá destas que referi. Vou dar alguns
exemplos. Nós apoiamos o projeto de expansão do Museu Nacional de
Arte Antiga. Acho que era importante termos um projeto de valorização
da zona dos palácios da Junqueira. Era importante termos um projeto
de desenvolvimento do Palácio da Ajuda. É importante valorizar o
centro histórico de Carnide como local de atração turística.
É mais ousada, essa
proposta.
É mais ousada, sim.
Vou dar-lhe o exemplo do Paço do Lumiar. Temos aquele tesouro, mas
não é colocado no mapa como centro de atratividade turística. Ou,
por exemplo, um caso mais próximo: a reconfiguração da Praça de
Espanha. A ligação direta da Avenida de Berna à Calouste
Gulbenkian e da António Augusto de Aguiar à Avenida dos Combatentes
permitirá que haja um grande jardim. Isto cria uma centralidade
cultural de grande importância.
E isso tem de ser
feito em coordenação com o governo. Coordena-se com o ministro João
Soares?
Sim, sim. Várias
vezes. E há bastante convergência de opiniões relativamente a
vários pontos destes projetos.
O conflito e a
demissão no CCB foram tratados consigo na altura pelo ministro da
Cultura? O afastamento de António Lamas foi decidido também com a
câmara?
É preciso separar.
A opinião da câmara, que transmiti ao ministro da Cultura, é de
que a existência da Estrutura de Missão para a zona de Belém-Ajuda
devia ser extinta. Já o tinha dito numa Assembleia Municipal. Aquilo
era um absurdo. No nosso país estamos sempre a inventar estruturas
para duplicar trabalho.
Mas tem vantagens,
acaba por acelerar os projetos.
Este é, aliás, um
excelente exemplo de como apenas se perdeu tempo. Nada acelerou.
Criar um novo conselho de administração, com gestores públicos,
para depois, mais tarde, criar uma empresa para gerir uma parte do
território de Lisboa, com franqueza... era tudo o que nós não
precisávamos.
"O
turismo na Baixa não afasta os residentes, porque eles já cá não
estavam. Há um profundo problema de desertificação"
Fez referência ao
facto de a maior parte dos hotéis estarem na zona do Marquês de
Pombal. Significa que a construção de novas unidades noutras zonas
deixa-o confortável?
Convém
distinguirmos as realidades de Lisboa. Em primeiro lugar, a Baixa de
Lisboa, da Rua da Madalena à Rua do Crucifixo: são quarteirões
onde se vive há décadas um profundíssimo problema de
desertificação. Por isso, quando ouço determinado tipo de vozes a
clamar contra esse risco, o problema do excesso de hotéis e
hostels... Com franqueza, a minha preocupação é outra. A minha
preocupação não é olhar para os prédios que estão reabilitados
e que eventualmente já são unidades hoteleiras. A minha preocupação
é olhar para os prédios que ainda não estão reabilitados e para a
necessidade que temos de que essa obra acelere. Não creio que haja
qualquer risco de expulsão de pessoas. Não há lá residentes!
Há ainda assim há
alguns moradores, pessoas mais velhas.
Em algumas zonas,
noutras nem isso, o que tínhamos era mesmo desertificação
completa. Sinto que tenho a felicidade de estar a ocupar funções
neste novo tempo mais dinâmico e com mais investimento privado.
Porque todos os meus antecessores viveram todos com uma grande
ambição: a recuperação da Baixa. Era um desígnio da cidade há
décadas. Tivemos estruturas de missão, equipas de missão, chegámos
a ter empresas... e não resultou.
O turismo serviu de
alavanca?
Existem outros
fatores. A política monetária que hoje estamos a viver tem um
impacto grande do ponto de vista do parque imobiliário. Não só
estimula a compra de casa como também incentiva o investimento
imobiliário. Depois há ainda outras ajudas, como a redescoberta de
Lisboa, a que se associam questões de natureza fiscal e geopolítica.
O Norte de África e Médio Oriente, destinos de investimento,
nomeadamente de investimento francês, agora têm a concorrência de
Lisboa. Tudo isso introduz uma dinâmica que a cidade não via há
muito tempo. Acho que não temos o direito de a desperdiçar. Dito
isto, pergunta-me: o turismo na Baixa afasta ou não aos residentes?
A resposta é evidente: não afasta, porque eles já cá não
estavam.
Não é o caso de
Alfama.
Onde é preciso,
digamos, maior delicadeza é de facto na zona de Alfama e talvez na
de Santo António. Agora, vamos lá perceber a complexidade do
fenómeno. O fundamental do alojamento local é feito na base de um
apartamento por prédio ou de dois apartamentos por prédio. Este
tipo de alojamento local teve uma importância muito grande em
suportar a cidade durante a crise. Há muita gente que tem casas em
alojamento local e que, num momento de aperto, teve de arrendar. Eu
falo até de uma situação mais prosaica: as pessoas que têm a sua
casa e que em determinada altura a alugam para alojamento local e vão
ficar 15 dias em casa dos pais ou dos amigos e utilizam isso como
fonte de rendimento. Esta situação é muitíssimo frequente em
Lisboa. O alojamento local não é só nem é maioritariamente um
negócio de investidores profissionais. É muito uma dinâmica de
investimento e de fonte de complemento de rendimento de proprietários
isolados. Aliás, basta ver os anúncios que estão colocados nos
sites e percebe-se imediatamente.
"Quando
o investimento chegou ao Algarve, não havia instrumento de
ordenamento e planificação territorial. E é o que se vê"
Essa é uma
dinâmica. Mas também há investidores institucionais...
O que está a ter
importância nos bairros históricos não é de todo essa, é a que
está a ser conduzida pelos próprios proprietários e pelos
residentes dos bairros históricos. Ora, numa primeira fase, isto até
pode afastar alguns moradores, no sentido de dizer que estas pessoas
viviam lá e saíram, temporária ou definitivamente. Mas a questão
é que isto tem um impacto social positivo do lado do proprietário,
do pequeno proprietário e, muitas vezes, do microproprietário que
nunca teve qualquer fonte de rendimento que não de despesa com uma
casa num bairro histórico. Já o disse: eu valorizo as preocupações
com a manutenção da autenticidade. Valorizo muito e levo-as muito a
sério. Porque não é só uma questão de preservação da nossa
cidade, é preservação do ativo turístico de Lisboa. Não tenho
uma visão nem de dramatismo nem uma visão simplista. Não podemos
impedir que hoje alguém compre uma casa em Alfama e que esse
investidor seja uma pessoa de maiores rendimentos ou, até, de outra
nacionalidade. Não se pode nem deve regular nesse sentido, é
impossível, seria descabido.
Chegam-lhe pedidos
desses?
Sim, vão chegando,
aqui ou ali... Tenho a sensibilidade para perceber as tensões de
quem vai vivendo isto no quotidiano. Tenho menor sensibilidade para a
expressão do saudosismo, só como elemento de saudosismo. Não seria
desejável impedir os proprietários de Alfama de venderem as suas
casas. Com franqueza! Além do mais, era socialmente mais injusto.
Nós estamos a falar, para alguns, da primeira geração que tem a
oportunidade de ter rendimentos com determinado tipo de imóveis. É
bom notar que há uma grande diferença no desenvolvimento do turismo
em Lisboa face àquilo que aconteceu noutras zonas do país.
Está a falar do
Algarve?
Estou a falar do
Algarve. Há uma enorme diferença, para melhor. Quando o
investimento chegou ao Algarve, não havia instrumento de ordenamento
e planificação territorial. E é aquilo que se vê. Aqui, os
instrumentos estão aprovados, estão delimitados e estão efetivos.
E é por isso que estamos a ver grande parte do investimento
canalizado para a reabilitação, uma reabilitação que nós
gostamos e que achamos bem. Penso que ninguém a questiona. Não é
tema de debate que a reabilitação não está a acontecer, que está
a ser mal feita, que estamos a desvirtuar o urbanismo da cidade.
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