OPINIÃO
Não
temos nenhuma razão para aceitar a chantagem de Luanda
TERESA DE SOUSA
02/04/2016 - PÚBLICO
Seremos
assim tão vulneráveis aos ditames de Luanda? Creio que não.
1. A condenação de
17 activistas angolanos pelo “crime” de estarem a ler um livro e,
ao mesmo tempo, a planear uma “rebelião” contra o Estado
angolano, veio remexer numa ferida aberta há muitos anos que
sistematicamente se infecta pelas razões mais lamentáveis. Para
qualquer cidadão de uma democracia é absolutamente condenável esta
forma de tentar erradicar qualquer crítica ao regime, por mais
inócua que seja. Para o Estado português, as coisas não são assim
tão óbvias, por boas mas também por muito más razões. O chefe da
diplomacia portuguesa divulgou um comunicado curto, evitando muita
retórica mas falando dos direitos da oposição e apelando ao
respeito pelos trâmites legais que ainda podem minorar as duras
penas aplicadas aos dissidentes angolanos. O Presidente subscreveu a
mesma posição. Foi, mesmo assim, um pouco melhor do que o costume.
Já o mesmo não se pode dizer do Parlamento, que rejeitou dois votos
de protesto, um do PS em termos idênticos aos do Governo, outro do
Bloco de Esquerda com a sua habitual retórica radical, na qual a
realidade nunca tem lugar. Foi chocante a facilidade com que o PSD e
o CDS votaram contra, argumentando a favor da não ingerência nos
assuntos internos de Angola. O PCP é outro caso, triste mas
absolutamente natural num partido que ainda pensa que vive no tempo
da União Soviética e para o qual o MPLA é “de esquerda”, tal
como o regime norte-coreano que, enfim, exagera um pouco. Ouvimos
gente séria argumentar a favor dessa atitude da direita, não tanto
com as razões económicas, mas porque seria pouco avisado interferir
na Justiça angolana, quando a justiça portuguesa também interfere
com cidadãos angolanos, normalmente com grandes investimentos em
Portugal, por não respeitarem o Estado de Direito democrático
português. Misturar as duas coisas parece um pouco exagerado. Cá é
por razões que se prendem com os grandes negócios. Lá é por
razões bem mais graves: o simples direito cívico e político de ter
opinião diversa da do Governo angolano.
2. Mas a história
das nossas relações com Angola não pode ser vista apenas do ponto
de vista da “ingerência” ou dos negócios. Vem muito de trás,
quando, nos finais dos anos 80 e início dos anos 90, Portugal (com
os EUA e a Rússia) se envolveu numa negociação (Acordo de Bicesse,
Maio de 1991) entre MPLA (em clara perda de influência) e UNITA,
ainda no molde optimista do pós-guerra fria (a democratização como
caminho para a conciliação), que haveria de falhar um ano depois.
Seguiram-se outras tentativas de reconciliação para pôr termo à
devastadora guerra civil, que sobreviveu a todos os acordos (com a
comunidade internacional a envolver-se cada vez menos e a fazer cada
vez mais vista grossa) e que apenas acabou com a morte de Savimbi em
2002. A história é longa e complicada, mas foi relevando sempre uma
clara preferência portuguesa pelo MPLA, o que nunca é bom para quem
quer intermediar seja o que for. Foi esta preferência que também
ajudou criar esta “doença angolana” (como lhe chama Pacheco
Pereira) de subserviência, que chegou a ter episódios
verdadeiramente lamentáveis e ainda bem recentes. É verdade que o
MPLA representava uma elite angolana que era muito próxima da elite
portuguesa, que estudou por aqui, que cruza amizades e cumplicidades
antigas (sobretudo à esquerda) e mais recentes (sobretudo à
direita). O PS chegou a defender o estatuto de observador para o MPLA
na Internacional Socialistas. A UNITA vinha de uma cultura muito mais
africana, criada pelas ligações às missões protestantes ou à
China, durante a Guerra Fria, e muito mais distante do “convívio”
luso-angolano. Agora, juntou-se mais um factor de “dependência”
(se lhe podemos chamar assim), graças ao investimento angolano em
Portugal na última década. Muitas empresas portuguesas encontraram
em Angola um mercado alternativo aos mercados europeus mais afectados
pela crise. Estão lá desde ramificações de universidades até
delegações dos grandes escritórios de advogados e muita gente que,
à falta de emprego aqui, rumou de novo para lá. Mas nada disto é
suficiente para justificar a tendência irresistível para levar a
sério os editoriais “ameaçadores” do Jornal de Angola, em vez
de reflectir sobre qual deve ser o nosso papel de democracia europeia
no conjunto da CPLP.
3. Portugal é um
país de pequena dimensão, com uma economia desenvolvida mas
relativamente frágil, que tem como parceiros na CPLP um colosso como
o Brasil e um grande país africano com pretensões a potência. Não
somos a França ou o Reino Unido, cujo poder económico lhes dá uma
posição muito mais confortável na Francofonia ou na Commonwealth.
A nossa única diferença está no facto de sermos uma democracia
europeia, com os seus valores que representam também o espaço
europeu a que pertencemos. Ora, é aqui que temos falhado
rotundamente. Se restassem dúvidas, o caso lamentável da Guiné
Equatorial deveria ter servido de alerta. A imposição veio do
Brasil e de Angola, interessados num país que, além de ser uma das
mais vergonhosas ditaduras africanas, é produtor de petróleo. Tudo
o que conseguimos foi uma moratória sobre a pena de morte (já deve
estar revogada) e um triste papel em Timor, na cimeira que abriu as
portas ao ditador, à qual nem Dilma nem o Presidente de Angola se
dignaram comparecer. Onde estamos agora, 20 anos passados sobre a
criação desta comunidade de língua portuguesa? A “Nova Visão
Estratégica” para o futuro da CPLP, que vai ser aprovada na
próxima cimeira, inclui a não-ingerência, mas também valores como
a democracia, a justiça social, “os Direitos Humanos e o Estado de
Direito”, como lembrava o ministro Santos Silva recentemente. Se
valer alguma coisa, devemos levar mais à letra as palavras que lá
estão incluídas.
4. Finalmente,
seremos assim tão vulneráveis aos ditames de Luanda? Creio que não.
O investimento angolano em Portugal não pára de crescer, porque é
hoje um mercado de compras muitíssimo favorável, graças à crise
que afastou outros investidores. As empresas portuguesas têm hoje um
peso muito grande em Angola. A queda abrupta do preço do petróleo,
numa economia dependente dele em quase tudo, leva o Governo angolano
a não se poder dar ao luxo de desprezar as empresas e os negócios
portugueses, quando o crescimento da economia se aproxima do zero e
as divisas escasseiam para pagar as importações. Mas não é só
isto. Dizia na SIC Notícias Fernando Jorge Cardoso, um conhecedor
profundo da África lusófona, que, ao contrário de muitos outros
regimes africanos, o regime de Luanda quer ter uma boa imagem perante
os EUA e a Europa e, por isso, reage tão mal a qualquer “ingerência”
portuguesa. Washington e Bruxelas também condenaram o julgamento dos
17 jovens angolanos. A diplomacia também serve para encontrar uma
resposta a Luanda que não seja vista como apenas nossa. Além disso,
teria sido perfeitamente possível negociar um texto entre o PS e o
PSD e, talvez, o CDS (apesar da proclamada fidelidade de Portas a
Angola), no qual se recorresse a uma linguagem ainda mais
diplomática, “apelando” ao bom Governo de Luanda para que
provasse a sua bondade, deixando nas entrelinhas uma advertência
mais dura do que a das linhas. Não houve nada disso. E resta ainda
um ponto fundamental: a miséria em que vive uma grande parte do povo
angolano não nos devia deixar indiferentes. Porque ela contrasta de
forma insuportável com a riqueza de uma elite que se atribui a si
própria todos os luxos e que sabe que, numa democracia, isso seria
absolutamente impossível.
Jornalista
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