OPINIÃO
A
substância política da bofetada
MANUEL CARVALHO
10/04/2016 - PÚBLICO
Pode
ser romântico, mas a existência de personagens novecentistas como
João Soares na política igualitária e dessacralizada do século
XXI é um anacronismo que só podia acabar como acabou: numa
demissão.
1. Há quem julgue
que a ameaça de João Soares a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido
Valente não passou de uma simples declaração de deselegância ou
de falta de chá. Não é o caso. Muitos pensam que a promessa de
umas “salutares bofetadas” são apenas um impropério vulgar de
uma pessoa que há muitos anos se afirma em público pela grosseria
travestida em desassombro ou em coragem política. É pouco para
explicar o lamentável episódio que conduziu à sua abençoada
demissão. João Soares deu-se ao luxo de armar em cavalheiro do
tempo das cartolas e das bengalas para se dedicar à justiça por
mãos próprias porque faz parte de uma certa classe de políticos
que se julgam investidos de um direito divino a viver e agir acima
dos mortais.
É essa convicção
de déspotas iluminados pelo passado e pela intransigência
ideológica que os leva a confundir a ameaça com a liberdade de
opinião, o direito de resposta com o castigo aos que os ousam
questionar. Um plebeu da política, tipo Passos Coelho ou Jorge
Coelho ou Mário Centeno ou Augusto Santos Silva, seria fuzilado se
alguma vez ousasse sequer meter um estalo no discurso; um aristocrata
da política, como João Soares, pode prometê-los a quem bem
entender porque, vindo de quem vem, não é ameaça, nem insulto, nem
deselegância, nem terceiro-mundismo. É direito à palavra.
Pode ser romântico,
mas a existência de personagens novecentistas como João Soares na
política igualitária e dessacralizada do século XXI é um
anacronismo que só podia acabar como acabou: numa demissão. Na
sexta-feira, quando o país se ria ou indignava com a ameaça
patética do ministro, tornou-se premente saber como iria o
primeiro-ministro reagir. Costa, porém, esteve bem. Não precisava
afrontar uma ala poderosa do seu partido, e não o fez. Não
precisava de se assumir como um espalha brasas que vocifera à
primeira contrariedade de um elemento cuja escolha foi da sua
responsabilidade, e não o fez. Revelando a sua meticulosa arte de
aranha política, capaz de construir teias à medida para qualquer
estratégia, limitou-se a deixar o isco envenenado. Dizendo que um
ministro é um ministro até no café. E pedindo desculpas aos
visados. Dificilmente um diplomata experiente seria capaz de produzir
um ultimato com tanta subtileza e eficácia.
Quando um ministro
se digna prometer bofetadas a críticos numa página de uma rede
social, a suspeita de que perdeu a noção das coisas torna-se
pertinente; quando é forçado a demitir-se e não é capaz de
perceber o erro em que caiu, a certeza de que vive num mundo
paralelo, na qual uma qualquer cultura de valores jacobina e elitista
ainda reina, ganha consistência. Ao cair, João Soares arrasta
consigo um pouco dessa corte que se julga ter direito a tudo e a ser
capaz de tudo por ter um passado e ideias irredutíveis que o
testemunham. O PSD há muito que aboliu os baronatos e desceu ao país
das pessoas comuns. É boa notícia que o PS esteja a seguir o mesmo
caminho. Como dizia Paulo Rangel, está na hora de acabar com os
doutores. Os que se julgam tão sábios e tão etéreos que até
acham que as bofetadas podem ser “salutares”.
2. Antes de Mário
Draghi ter vindo a Lisboa participar no primeiro Conselho de Estado
da era Marcelo, pouco se ouviu sobre a ideia. Mas, logo depois de
presidente do Banco Central Europeu ter apanhado o avião de
regresso, as críticas surgiram em catadupa. Do PS, através do
deputado Ascenso Simões, mas principalmente do Bloco e do seu eterno
guru intelectual, Francisco Louçã. Entre o antes e o depois, porém,
há uma pergunta que convém fazer: alguém estava à espera que
Draghi dissesse uma coisa diferente do que disse em relação ao
Governo actual e ao anterior? Ora imagine-se que o convidado seria
Iannis Varoufakis: alguém imaginaria um discurso diferente do que
tem feito contra a “austeridade” por essa Europa a fora.
Registada a
evidência, o que importa é determinar a razão que levou o novo
presidente a convidar Draghi para falar aos conselheiros. E aí só
há uma resposta óbvia: Marcelo quer manter na agenda política a
pressão das autoridades europeias sobre a política financeira do
Governo. Na sua versão de “Marcelo paz e amor”, o presidente não
está disposto a rasgar o ecumenismo nem a tirar o capacete azul da
ONU com que iniciou o seu mandato. Mas alguém por ele há-de vir a
cena dizer o que o ardente desejo de mudança dos portugueses e a
monumental capacidade do Governo em construir narrativas não deixam
dizer: que Portugal permanece numa situação frágil, que numa
mudança de governo não é boa ideia deitar fora o bebé com a água
do banho, que o país tem de estar preparado para aceitar eventuais
medidas difíceis. Era isso que o presidente queria que se dissesse e
ouvisse. E Draghi fez-lhe o jeito com naturalidade e satisfação.
3. Dizia esta semana
ao Jornal de Negócios o ministro do Planeamento, Pedro Marques: “Não
acredito que algum português pense que o Estado, por ter xis por
cento dos direitos económicos, não exercerá estrategicamente o seu
papel de maior accionista” da TAP. Com o devido respeito, senhor
ministro, há pelo menos um: o autor desta coluna. O que o
confrangedor episódio do esvaziamento do aeroporto do Porto mostra
sem margem para dúvidas é que o Governo não passa de um patinho
sentado na administração privada da companhia. Porque o que está
em causa desde o princípio é uma pergunta à qual nem Pedro
Marques, nem António Costa nem a administração da TAP respondem:
se a renacionalização de parte do capital tem como objectivo
garantir a defesa do interesse nacional, por que razão se desinveste
num aeroporto que, pela facilidade de acessos à principal região
exportadora do país, tanto contribui para esse interesse? Se fosse
por falta de clientes, nós percebíamos; mas com taxas de ocupação
tão altas nos voos extintos, o que fica claro é que o Governo
trocou o interesse nacional pela maximização dos resultados dos
interesses particulares.
Pedro Marques pode
dar-se ao luxo de tornar público um discurso assim incoerente e
vazio porque o Porto e o Norte tornaram-se um rebanho manso de
associações empresariais e autarcas. Com Rui Moreira a falar
sozinho e a arriscar-se ao papel de D. Quixote cheio de razão, o
Governo põe e dispõe dos interesses de uma das principais
infra-estruturas do Norte e do Centro porque sabe que fala para uma
plateia calada pelos interesses mesquinhos do protagonismo ou pelo
medo de perder boleias do poder público. Muitos desses protagonistas
amuados pela rivalidade de egos ou pelo receio de ter de esperar pela
agenda do poder hão-de continuar por aí a falar do centralismo e
das assimetrias que tornam o país injusto, desequilibrado e pobre.
Mas, como bem sabe Pedro Marques, os omissos deputados ou ministros
do Porto e do Norte, com esses é fácil lidar. Palavras, palavras,
palavras. Que quando chegam combates a sério, como o da TAP, é
vê-los retirar de mansinho.
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