OPINIÃO
A
putrefacção saiu da clandestinidade
MANUEL CARVALHO
04/04/2016 - PÚBLICO
Agora deixou de ser
possível tergiversar, de empurrar o problema com a barriga, de o
eternizar com os limites da soberania ou com os custos inevitáveis
da globalização
A dimensão do
escândalo revelado pelos Panama Papers apareceu aos olhos de todos
nós já não como uma ferida mas como uma gangrena que ameaça
amputar a já de si frágil transparência do sistema financeiro, mas
também a legitimidade que resta às democracias ocidentais. Se a
quarta maior sociedade do mundo na gestão de negócios com paraísos
fiscais é capaz de trazer à luz negócios duvidosos de uma dúzia
de governantes, de centenas de políticos, de milhares de
celebridades ou de centenas de milhar de empresas, o que estará
debaixo do manto do segredo das suas concorrentes? Ou há uma réstia
de decência para atacar de frente este esterco que torna o mundo um
lugar imundo, ou tarde ou cedo acabaremos afectados pelos vírus da
sonegação fiscal, da corrupção ou dos lucros do crime violento e
organizado.
O grande legado do
trabalho do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação
é essa mola que faz disparar a indignação e a coloca no centro do
debate público. Quando há denúncias de negócios duvidosos entre
multinacionais e um Estado, como aconteceu no Luxemburgo, pode-se
tentar asfixiar o assunto nas habituais justificações da
contabilidade criativa, do planeamento fiscal agressivo ou da
cobertura legal que, por excelsa generosidade dos Estados,
normalmente protege a banca. Mas quando se chega a uma galáxia com a
dimensão dos 11.5 milhões de ficheiros gerados pelos escritórios
da Mossak Fonseca, deixa de haver sentido para a desculpa ou a
explicação.
Governos, Comissão
Europeia, FMI, OCDE, G-8 ou G-20 há muito que conhecem a real
dimensão do problema. A fuga aos impostos na Europa foi estimada
como correspondendo a 2000 euros/ano por cada um dos 500 milhões de
cidadãos da União. As perdas para os países pobres ascendem a 125
mil milhões de euros por ano, uma verdadeira sangria de recursos
indispensáveis para, em muitos casos, erradicar doenças endémicas
ou garantir níveis nutricionais mínimos a dezenas de milhões de
pessoas. Ao todo, o dinheiro depositado em paraísos fiscais pode
representar até o dobro da riqueza anual produzida pelo bloco
económico mais rico do mundo, a União Europeia. Sem poderem
esconder a grandeza da putrefacção, quem governa ou quem lidera
organizações internacionais lá foi colocando o problema na agenda.
O que não quer dizer que o problema tenha alguma vez sido atacado de
frente.
Com os Panama
Papers, o cancro dos offshore sai definitivamente da esfera mansa do
poder (e dos partidos da esquerda, que o têm ajudado a manter na
actualidade) e instala-se na preocupação geral. O bom jornalismo
voltou a prestar um inestimável serviço às sociedades abertas.
Daqui para a frente, deixou de ser possível assobiar para o lado. A
evasão fiscal e a corrupção dos mais poderosos está por todo o
lado. O cidadão comum fica afinal a perceber que é ele e os que não
dispõem de dinheiro para alimentar cadeias de fuga para paraísos
fiscais quem alimenta as funções sociais e de soberania do Estado.
Pode suspeitar que, afinal, o estado social não está em crise
apenas por causa da demografia ou do aumento dos custos com a saúde
ou a educação. É capaz até de entender por que razão países que
enriqueceram tanto no pós-guerra dispõem hoje de Estados cada vez
mais pobres e deficitários. Mais do que um problema de desigualdade
na distribuição de rendimentos, a existência de uma rede tão
vasta de pessoas e empresas que se eximem às suas responsabilidades
sociais é um retrocesso que destrói essa magnífica e poderosa
construção civilizacional que nos diz todos iguais perante a lei.
A luta a favor da
transparência dos offshore será longa e incerta. Os interesses dos
seus beneficiários são poderosos. A venalidade do poder político e
financeiro é imensa. Haverá sempre um Estado falhado ou uma
república das bananas pronta a tapar os olhos para beneficiar do
afluxo de capitais. E nenhum país isolado consegue atacar uma doença
com tantas metástases. Mas, se nos últimos anos houve uma
oportunidade para o tentar, essa oportunidade está à nossa frente.
A teia clandestina foi trazida à luz. O conforto da opacidade
rompeu-se. Quem tem dinheiro nas Ilhas Virgens Britânicas ou no
Panamá tem razões para ter medo. Vai haver centenas de inquéritos
judiciais baseados nos ficheiros agora conhecidos. O fio da meada
pode, enfim, começar a ser puxado.
Não há
alternativa. Todos os riscos são preferíveis ao risco de aceitar
que o vírus da fraude e do crime tenha direito a paraísos. Essa é
a grande lição dos Panama Papers. Passado o primeiro impacto do
asco, fique-se pois com a satisfação de ver que talvez tenha
chegado a hora se atacar as suas causas.
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