Houellebecq faz capa do Charlie
Hebdo no dia em que sai novo romance
MÁRIO LOPES
07/01/2015 – PÚBLICO
O célebre e polémico escritor imagina a França dirigida por um Presidente
muçulmano. O semanário põe Houllebecq a afirmar: "Em 2015, perdi os
dentes,em 2022, cumpro o Ramadão".
Na manhã, esta
quarta-feira, em que foi publicado Soumission, saiu para as bancas a nova
edição do semanário satírico Charlie Hebdo, com Houellebecq na capa. "Em
2015, perdi os dentes, em 2022, cumpro o Ramadão", lê-se no cartoon que
fazia a manchete. Horas depois, a redacção da revista foi alvo de um ataque
terrorista do qual resultaram, até ao momento, 12 mortos.
Na edição, que
tem como tema principal as previsões do chamado "mago Houellebecq",
lê-se no editorial assinado por Bernard Maris: "Suprimam a polícia uns
dias e verão que o temor a Deus não impedirá grande coisa". Páginas à
frente, num cartoon assinado por Charb, uma das vítimas do atentado, que ganha
agora uma trágica ressonância, um jihadista armado, perante o cabeçalho
"ainda sem atentados em França", comenta: "Escutem, temos até ao
fim de Janeiro para vos endereçar os nossos votos de Bom Ano".
O Charlie Hebdo é
um semanário célebre pelo humor que desenvolve em forma de cartoon, sem poupar
ninguém. Nas suas páginas são e foram satirizados todo o tipo de religiões,
políticos, actores, músicos e outras figuras públicas.
Horas antes, numa
entrevista à emissora France Inter dedicada ao seu novo romance Michel
Houellebecq defendeu-se das acusações de racismo e islamofobia de que
Soumission vem sendo acusado. “Não julgo que isso seja evidente neste livro”,
declarou.
Terça-feira à
noite, convidado no noticiário nocturno do canal televisivo France 2, o
escritor foi confrontado com a declaração, por parte do dirigente de uma
associação anti-racismo, de que Soumission é o melhor presente de Natal que
Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional, poderia ter
desejado. Ripostou não existir “nenhum romance que tenha alterado o rumo da História”,
acrescentando que “Marine Le Pen não precisa disto. As coisas estão a
correr-lhe muito bem neste momento”.
A narrativa de
Soumission decorre em 2022 e imagina um cenário em que Marine Le Pen e o
fictício Mohammed Bem Abbes, candidato de um partido formado por muçulmanos
franceses, a Irmandadde Muçulmana Francesa, se defrontam na segunda volta das
eleições presidenciais. A vitória deste último, apoiado por todos os partidos à
esquerda da Frente Nacional para impedir a sua vitória, conduz a várias transformações
em França (as mulheres largam os seus empregos para cuidar dos filhos em casa;
as universidades tornam-se centros de ensino islâmicos) e na Europa (a Turquia
e vários países norte-africanos juntam-se à União Europeia).
Soumission tem
sido qualificado como irresponsável por propagar as ideias da Frente Nacional
(disse-o, por exemplo, Laurent Joffrin, director do Libération) mas também
descrito como “sublime, de uma extraordinária consistência romanesca” pelo
escritor Emmanuel Carrère, que o alinha na tradição da literatura profética de
1984, de George Orwell, ou de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Em entrevistas
anteriores Houellebecq defendera-se invocando a neutralidade do seu gesto
criativo. “Não estou a escolher um lado, não defendo qualquer regime. Declino
qualquer responsabilidade, reivindico até total irresponsabilidade”, afirmou,
citado pelo Telegraph. Confrontado com declarações suas no passado, nas quais
referira o Islão como “a mais estúpida das religiões”, confessou ter entretanto
mudado de opinião: “O Corão revelou-se bem melhor do que pensava, agora que
reli, ou melhor, que o li”. Na entrevista desta quarta-feira à France Inter,
afirmou: “A parte do romance que assusta é acima de tudo a anterior à chegada
dos muçulmanos ao poder. Não podemos dizer que isso, esse regime [imaginado em
Soumission], seja aterrorizador”. Segundo o autor, "as coisas não correm
assim tão mal [no livro]" - excepto "se for feminista".
Soumission é alvo
de uma primeira edição de 150 mil exemplares e está já no topo da lista de
best-sellers da Amazon francesa, algo pouco surpreendente tendo em conta o
estatuto do autor de As Partículas Elementares, que acumula os títulos de mais
polémico e mais célebre romancista francês da actualidade. Soumission, porém,
parece estar a ultrapassar polémicas anteriores. A AFP escreve que a “avalanche
de comentários” gerados pela obra na imprensa e nas redes sociais é, “segundo
vários peritos”, algo “nunca visto em França a propósito de um romance”.
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