Hoje somos todos Charlie Hebdo
José Manuel
Fernandes / 8-1-204 / OBSERVADOR
A tragédia não é só do Charlie Hebdo, nem só dos parisienses ou dos
franceses. É do jornalismo mundial. É de todos os homens livres. Tenhamos pois
coragem, não cedamos à intimidação e ao medo.
O título desta
crónica não é muito original – mas é o que me apetece escrever. É mesmo o que
devo escrever. Não porque aprecie especialmente o Charlie Hebdo. Na verdade,
nunca gostei muito da publicação, cujo humor roça por vezes a boçalidade e onde
se chegava a desenhar com um sentido pornográfico não muito diferente do nosso
desaparecido José Vilhena. Mas isso não interessa. O que interessa é que as
balas hoje disparadas na redacção do Charlie Hebdo foram balas disparadas
contra todos os jornalistas, contra todos os que defendem a liberdade de
expressão, contra todos os que apenas desejam viver numa sociedade aberta,
tolerante e plural.
A tragédia não é
só do Charlie Hebdo, nem só dos parisienses ou dos franceses. É do jornalismo
mundial. É de todos os homens livres.
Na verdade
estamos todos de luto. Luto pelos que morreram, os jornalistas e também os
polícias. Luto por termos ficado todos menos livres. Isso mesmo: menos livres. No
dia de hoje, por todo o mundo, vamos estar solidários e indignados; amanhã
muitos pensarão duas vezes antes de escreverem, de filmarem, de reportarem. E
depois de amanhã até pode acontecer que surjam mais leis anti-blasfémia, que
mais gente veja na crítica a certas práticas dos islamistas uma condenável
“islamofobia”. Já aconteceu, está a acontecer, é possível que aconteça ainda
mais.
Recordo-me bem do
debate em torno dos cartoons de Maomé, publicados por um jornal dinamarquês. Lembro-me
bem de quantos condenaram mais depressa a provocação – e era uma provocação –
do que as ameaças de morte proferidas um pouco por todo o mundo muçulmano.
Recordo-me também
do assassinato de Theo Van Gogh, o cineasta holandês assassinado por realizar
um documentário sobre a condição da mulher nas sociedades muçulmanas, mas
recordo-me sobretudo como, pouco tempo depois, a mesma Holanda cedeu às
pressões e obrigou Ayan Hirsi Ali, uma somali que fugira do seu país e
renunciara à fé islâmica, tendo sido a argumentista do filme de Van Gogh, a
trocar o país das tulipas pelos Estados Unidos. Na altura ela, que até chegara
a ser deputada, escreveu que “o islamismo radical não é apenas contra mim, é
contra todos. Ao ter conseguido expulsar-me, os terroristas ganharam, o que
torna a situação mais perigosa para todos”.
É por isso que o
nosso choque (um choque porventura maior em todos os que viram o vídeo da forma
como os terroristas assassinaram, com um tiro na cabeça, um dos polícias) e a
nossa indignação não pode ficar por proclamações como a do título desta
crónica.
As manifestações
de intolerância dos radicais islâmicos, que numa altura de sobressalto todos
condenamos, não podem levar-nos, passada a indignação, a tratar de encontrar
explicações, desculpas ou remédios. Temos de poder ser livres de nos pronunciar
sobre a religião islâmica com o mesmo grau de liberdade com que nos pronunciamos
sobre outras religiões. Quem escreve tem de poder escrever com liberdade, não
pode andar escondido, como Salman Rushdie andou anos a fio depois de ter sido
alvo de uma fatwa. Quem escreve só deve ter como limites o bom senso e o
respeito pelos sentimentos alheios, sendo que saber onde se situam os limites
desse respeito é exclusivamente matéria de debate público, não de leis ou
normas destinadas a prevenir “blasfémias”.
Tenhamos pois
coragem. Esta é uma linha da frente da batalha pela civilização que somos. Porventura
a mais importante de todas as linhas de batalha. Se não formos capazes de
defender, até às últimas consequências, a liberdade de expressão, a liberdade
de imprensa, então ficaremos mais perto da França apática (e islamizada)
imaginada por Houellebecq. Até porque há ficções que às vezes são mais reais do
que a realidade.
Honremos as
palavras de Stéphane Charbonnier, aliás Charb, desenhador e director do Charlie
Hebdo, hoje assassinado: “Prefiro morrer de pé do que viver de joelhos”
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