DGPC
chumbou projecto que prevê demolição da Vila Martel
JOSÉ ANTÓNIO
CEREJO 03/04/2016 - PÚBLICO
Quando a Câmara de
Lisboa se preparava para autorizar a destruição do espaço onde
viveram e trabalharam alguns dos principais artistas portugueses dos
últimos 120 anos, a Direcção-Geral do Património Cultural obrigou
a que o projecto volte à estaca zero.
A directora-geral do
Património Cultural, Paula Silva, inviabilizou há duas semanas o
projecto que previa a substituição da quase totalidade da Vila
Martel por um edifíco semi-enterrado, com 12 pisos para
estacionamento e dois para hotelaria. O projecto, que conta com o
apoio dos responsáveis dos serviços de Urbanismo da Câmara de
Lisboa, terá agora de ser revisto, embora tenha ficado aberta a
porta a um aumento da altura da construção existente.
A Vila Martel
compreende um conjunto de 9 habitações térreas, parte delas
habitadas, contíguas e todas iguais — como na generalidade das
antigas “vilas operárias” de Lisboa —, e quatro casas anexas,
duas em cada extremidade, com características distintas. Estas
últimas serviram de atelier, desde 1883 até 2015, a pintores como
Columbano, José Malhôa, Carlos Reis, Eduardo Viana, Jorge Colaço e
Nikias Skapinakis, que lá trabalhou até há cerca de um ano. Também
o escultor Francisco Franco lá concebeu muitos dos seus trabalhos,
entre os quais a estátua do Cristo Rei, em Almada.
Situada na encosta
que desce do Jardim de São Pedro de Alcântara e da Rua D. Pedro V
para a Av. da Liberdade, a Vila Martel encontra-se num espaço
fechado, só visível da encosta fronteira, designadamente do jardim
do Torel, e com um único acesso por um discreto portão de ferro
existente na Rua das Taipas, perto da Praça da Alegria.
No interior do mesmo
logradouro, mas na sua parte superior, acessível exclusivamente por
um pequeno túnel localizado sob um edifício da Rua D. Pedro V, está
em fase final de construção um hotel com 40 quartos, cuja
construção a Câmara de Lisboa e a Autoridade Nacional de Protecção
Civil (ANPC) autorizaram em 2014. A existência da vila Martel a
atravessar a propriedade a meio da encosta e o acentuado declive
desta — com mais de trinta metros de diferença entre as ruas D.
Pedro V e das Taipas — fazem com que todo o vasto logradouro
constitua um espaço semi-encravado, com dois únicos acessos,
através de pequenos túneis: um na zona alta e outro na zona baixa,
sem possibilidade de ligação entre si.
Na apreciação
técnica dos serviços dependentes do vereador do Urbanismo, Manuel
Salgado, a questão da localização do hotel em construção foi
praticamente ignorada, bem como o facto de se tratar de uma zona de
elevado vulnerabilidade sísmica. A ANPC, por seu lado, emitiu um
parecer favorável já depois de Salgado ter aprovado o projecto de
arquitectura. E emitiu-o, apesar de sublinhar que o único acesso
disponível, através do túnel para a D. Pedro V, não cumpre os
regulamentos de segurança.
Para justificar esta
decisão, a ANPC entendeu que a instalação de um sistema automático
de extinção de incêndios (sprinklers) resolvia o problema do
acesso por um local onde só cabem pequenos veículos de emergência.
Projecto implica
demolição
Fora do projecto do
hotel, cuja arquitectura tem sido alvo de várias referências
elogiosas na Câmara de Lisboa, ficou a zona baixa da encosta, com a
Vila Martel a atravessá-la e a ligação à Rua das Taipas a
fazer-se por um pequeno túnel e uma íngreme escadaria. Foi para
este espaço que a empresa proprietária do hotel em construção na
parte alta apresentou à câmara, no final do ano passado, um Pedido
de Informação Prévia (PIP) que, se for aprovado, viabilizará a
construção no local de um bloco de 14 pisos, oito dos quais
enterrados e seis acima do solo.
Destes 14 pisos, 12
servirão para criar um parque de estacionamento robotizado, com 186
lugares, enquanto que os dois de cima servirão para ampliar o hotel
vizinho com mais 24 quartos. A unir os dois blocos haverá uma
galeria envidraçada, criando-se uma ligação pedonal de uso público
entre a Rua das Taipas e a Rua D. Pedro V, através de escadas e
elevadores.
A concretização
deste projecto implica no entanto a demolição da quase totalidade
da Vila Martel, conjunto classificado como “bem de valor
patrimonial relevante” no Pano de Urbanização da Avenida da
Liberdade e Zona Envolvente (PUALZE). Na origem deste espaço
singular está uma iniciativa mecenática, também ela singular, de
José Martel, o republicano e fundador do jornal O Século que, por
volta de 1880, ali mandou construir aquela correnteza de casas e
ateliers para artistas.
De acordo com a
proposta apresentada à câmara, daquele conjunto patrimonial
relevante ficarão apenas dois ateliers, numa das extremidades, que
terão depois um uso “compatível com serviços e restauração”.
Na sequência de uma
análise preliminar por parte dos serviços de Urbanismo da autarquia
foram solicitados pareceres à Estrutura Consultiva Residente (ECR),
um serviço do município que se pronuncia sobre questões
relacionadas com bens patrimoniais, ao Turismo de Portugal e à
Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).
Câmara estava
prestes a aprovar
No interior dos
serviços camarários tudo corria a favor dos promotores até meio do
mês passado. Ainda que a proposta venha agravar a situação de
encravamento relativo do logradouro e do hotel em construção, uma
vez que aumenta consideravelmente o número de pessoas e veículos
sem assegurar uma ligação directa entre a cota alta e a cota baixa;
ainda que não tenham sido ponderadas questões como o risco sísmico,
a complexa natureza dos solos que ali provocou graves problemas
durante as obras de reabilitação do túnel ferroviário que liga o
Rosssio a Campolide; ainda que a vertical de parte da Vila Martel se
encontre a menos de 30 metros do túnel ferroviário e portanto
dentro da sua zona de protecção; ainda que as regras do PUALZE
determinem que qualquer intervenção nos bens de valor patrimonial
relevante “deve visar a preservação das características
arquitectónicas do edifício” — tudo se encaminhava para que o
processo terminasse com uma proposta de aprovação do PIP a submeter
depois ao executivo municipal.
Foi neste sentido
que no mês passado foram produzidas informações e despachos que o
gabinete de Manuel Salgado garantiu ao PÚBLICO que não existem, mas
que existem e a seu tempo se confirmará. E foi nesse mesmo sentido
que se pronunciaram os representantes da DGPC presentes na Comissão
de Apreciação criada pelo município e por aquela direcção-geral,
em 2007, para emitir parecer vinculativo sobre todas as obras
previstas para quase toda a cidade de Lisboa.
Para os
representantes da DGPC, tal como para a hierarquia municipal, a
proposta “permitirá reabilitar e valorizar uma área de logradouro
hoje profundamente degradada” e “é volumetricamente adequada ao
pewrfil da encosta”. Além disso, mas sem fazer qualquer referência
à demolição da quase totalidade da Vila Martel, salientam que ela
promoverá “a manutenção e reabilitação do atelier do mestre
Columbano Bordalo Pinheiro”, situado num dos seus extremos.
DGPC travou
demolição
Tudo mudou
entretanto, quando os representantes da DGPC, já depois de emitirem
o seu parecer, em 20 de Janeiro, se deram conta de que, por a
proposta ter a ver com uma intervenção numa zona especial de
protecção (neste caso de vários imóveis classificados na Av. da
Liberdade), a decisão competia não a eles, mas ao director-geral do
Património Cultural. Isto porque o anterior DGPC, Nuno Vassalo e
Silva resolveu avocar, em Outubro do ano passado, a apreciação de
todos as intervenções em imóveis classificados e nas respectivas
zonas de protecção.
Por esse motivo, o
projecto de parecer favorável foi enviado à DGPC, onde a nova
directora-geral, Paula Silva, a chumbou no dia 17 do mês passado.
“Considerando a excessiva volumetria proposta para o novo corpo de
unidades de alojamento e estacionamento do hotel, a solução
arquitectónica deverá ser revista, dado tratar-se de um conjunto
edificado com características próprias”, lê-se no despacho de
não aprovação.
A directora-geral
considera ainda que “deverão ser respeitadas essas mesmas
características morfológicas e tipológicas [da Vila Martel],
aceitando-se um aumento de cércea, assim como deverá ser respeitada
de uma forma geral a topografia da encosta”.
O parecer
vinculativo da DGPC já foi comunicado à Câmara de Lisboa, que terá
agora de indeferir o PIP em análise nos seus serviços. Face ao teor
do despacho da directora-geral, que se vai reunir em breve com os
promotores e os projectistas da obra, ficam abertas as portas a uma
nova proposta que será oportunamente avaliada.
Quanto à
localização e aos acessos ao hotel e à ampliação proposta, a
DGPC não se pronuncia, já que essa é uma competência exclusiva da
Câmara de Lisboa e da ANPC.
E quanto ao chumbo
do PIP pela DGPC, tudo poderia ter sido diferente se a proposta
tivesse sido objecto de parecer dos seus representantes depois de 16
de Fevereiro e não a 20 de Janeiro, como sucedeu. Isto porque,
tratando-se de uma obra numa zona de protecção, foi a data daquele
parecer que tornou obrigatória a intervenção da directora-geral,
ao abrigo da decisão de Outubro passado do seu antecessor.
Se o assunto tivesse
sido apreciado depois de 16 de Fevereiro tal não aconteceria, pelo
menos em princípio, porque nesse dia, a nova directora-geral
reiterou a decisão de Vassalo e Silva de avocar os pareceres
relativos a obras em imóveis classificados, mas excluiu desse
procedimento os projectos relativos às zonas de protecção.
Só nos casos em que
os representantes da DGPC na Comissão de Apreciação o entenderem é
que submeterão os seus pareceres à direcção, explicou Paula Silva
ao PÚBLICO, frisando que o volume de projectos nas zonas de
protecção não permitia que se mantivesse a solução em vigor nos
ultimos meses.
Sem comentários:
Enviar um comentário