segunda-feira, 11 de abril de 2016

Crítica e violência – breve arqueologia das bofetadas


OPINIÃO
Crítica e violência – breve arqueologia das bofetadas
ANTÓNIO GUERREIRO 10/04/2016 - PÚBLICO

A crítica implica muitas vezes alguma violência legítima, mas distingue-se do ataque. No entanto, as convenções do discurso crítico mudam historicamente, e o que era admissível numa época deixa depois de o ser.

O acto crítico que se exerce na esfera pública por pessoas com responsabilidades públicas pode prescindir de conceitos, mas supõe uma história e uma retórica. As bofetadas de João Soares são um tópico, um lugar-comum dos preceitos retóricos de uma crítica que teve o seu auge na segunda metade do século XIX, que se transformou em violência verbal nas vanguardas do início do século XX, mas que declinou – como todo o confronto polémico no meio cultural, literário e artístico – no último meio século.

O modelo é evidentemente a crítica literária. Ela foi desde o início um campo de batalha. Foi assim que Baudelaire decretou a urgência “contra a canalha” e utilizou a metáfora da esgrima. A luta, o duelo, o corpo-a-corpo estão sempre presentes na sua imaginação. E Proust, em 1897, convocou um feroz crítico, Jean Lorrain, para um duelo, depois de este ter evocado num artigo a homossexualidade do escritor. A violência era naturalmente constitutiva da actividade crítica e podia mesmo cruzar-se com o ódio. Baudelaire insistiu até na necessidade de economizar os seus ódios, de não os desbaratar, de os administrar com uma racionalidade táctica: o ódio é um tesouro, “um veneno mais caro do que o dos Borgia”, para ser usado com parcimónia. A ideia de crítica baseia-se na referência à instância da Razão (visa um universal), mas a “crítica venenosa” anula essa referência e dirige-se ad hominem, à pessoa que se torna um alvo abominado, objecto de uma profunda aversão. Este tipo de crítica mata o pensamento, mas desencadeia o discurso. Por isso exerce uma tão grande atracção. Veja-se o que Almada Negreiros fez a Júlio Dantas.

No campo da crítica, os duelos são hoje uma reminiscência metafórica, mas no século XIX foram uma prática e muito comum: os autores desafiavam os seus críticos para a luta ou a esgrima

Em todos os campos da actividade cultural e artística esta conflitualidade diminuiu drasticamente na segunda metade do século XX e os códigos da boa conduta crítica são hoje outros. A violência quase se retirou. Aquilo que em tempos seria quase inócuo é hoje visto como um gesto ofensivo. A crítica, nas várias disciplinas artísticas, interiorizou sobretudo uma interdição: nada deve ser dito que ultrapasse as fronteiras da obra e atinja uma zona pessoal, a pessoa do escritor ou do artista. E isto foi acompanhado por uma domesticação do espírito crítico, que mal tem um deslize fica logo sujeito a uma suspeita de agressividade ou mesmo de ressentimento.

João Soares reagiu ao crítico Augusto M. Seabra, dirigindo as suas palavras ad hominem e recorrendo a um tópico retórico, o das bofetadas. A sua reacção leva-nos a estabelecer uma diferença entre ser criticado e ser atacado. Ele dirá que reagiu a ataques, sejam eles evidentes ou dissimulados. O problema é que essa distinção nem sempre é fácil de fazer, e sabemos muito bem como há quem não consiga ver outra coisa em qualquer crítica que lhe é dirigida senão um ataque. E se essa confusão, mal se usa um tom mais severo, está muitas vezes presente na crítica literária e artística, a crítica a um ministro e a um político dificilmente escapa a esta ambiguidade. Porque, neste caso, o que é objecto de crítica é um ethos, uma acção que pode não se objectivar numa obra, mas apenas em intenções veladas ou manifestas. Um político e um ministro não são autores, como são os escritores e os artistas (a não ser nos sonhos delirantes dos dirigentes dos regimes totalitários). A “obra” deles é o que resulta das suas decisões colectivas, dos seus discursos, dos efeitos que produzem por se situarem no lugar por excelência da performatividade. Um autor tende para o anonimato, um ministro está sempre apanhado na lógica da pessoalização. Daí que possamos dizer sem grandes preocupações que um ministro foi muito atacado (no sentido de “muito criticado”), mas não dizemos que um escritor foi atacado, numa circunstância em que um livro seu tenha sido criticado com severidade ou mesmo violência.

Nas últimas décadas surgiu e proliferou em Portugal um género de discurso a que chamamos geralmente “comentário político”. Há-os de várias espécies, e de um modo geral ele passou também a cumprir a função do entretenimento. É uma maneira de dar um carácter agónico à política e vê-la como um jogo ou uma representação com características de espectáculo, que o novo regime mediático potencializa. O resultado, bem visível, é que os políticos passaram a ser objecto de uma nomeação e sujeitos a uma visibilidade muito mais agressivas, mais imediatas e mais frequentes. Essa é uma das razões (mas não certamente a única) pelas quais, numa altura em que o Estado tem muito menos sentido do que outrora, haja um constante apelo ao “sentido de Estado”. João Soares caiu nesta armadilha: foi apanhado a quebrar as convenções, as regras da bienséance que dão pelo nome de “sentido de Estado” (que muita gente parece achar que são regras co-naturais ao exercício da função de ministro). Não foi o primeiro a cair por uma transgressão deste tipo. E sabemos hoje, porque já são muitas as lições, que um ministro pode aguentar-se no poder apesar de uma forte contestação política e até quando impendem sobre ele suspeitas de ilegalidades ou crimes, mas não resiste quando tem um gesto ou uma palavra, por inócuos que sejam, que não se adequam aos códigos não escritos do “sentido de Estado” (suscitando reacções que fazem um uso imoderado de um estilo hiperbólico: “insustentável”, “intolerável”, “inacreditável”, “indesculpável”, etc.).

Mas Augusto M. Seabra não é um comentador político. Para além de crítico de música e de cinema, as suas incursões na área política são muito mais especializadas do que a dos comentadores e colunistas: ele tem feito com alguma assiduidade crítica da política cultural (seja a dos sucessivos governos, seja a das instituições culturais). A crítica da política cultural não é a mesma coisa que crítica da cultura. Esta última é uma “disciplina” que também já teve o seu tempo e declinou quando a alta cultura e a cultura de massas começaram a não se diferenciar, quando se atenuou a crítica ideológica da cultura. A cultura como campo de batalha não se extinguiu, mas as mais fortes determinações da guerra perene passaram para o campo da política cultural. Daí que um crítico consagrado a essa área tenha uma acção muito mais poderosa do que aquilo que resta de uma crítica da cultura. É no domínio da política cultural que têm estado em jogo as grandes tensões, os grandes conflitos, as posições irredutíveis. A política cultural e as discussões em torno dela sobrepõem-se à cultura e até a rasuram. Já Vasco Pulido Valente, também visado nas ameaças retóricas de João Soares, é um colunista que se ocupa da política de um modo generalista. Ele é, aliás, o exemplo maior, na imprensa portuguesa, do colunista para quem a diferença entre a crítica subordinada à instância universal da Razão e a crítica ad hominem não se distinguem. E fez disso uma marca de “estilo” – o estilo anacrónico do século XIX. Aquilo que noutros seria intolerável, nele tornou-se um adorno: não faz mal porque é sistemático e os leitores (excepto João Soares) já aprenderam a ignorar ou a relativizar. Ele deixou de ser visto como um crítico terrorista (o tema do “terror” foi muito importante na crítica francesa antes da Segunda Guerra) e é lido de um modo geral como uma criança insolente. Divertido para uns, irritante para outros.

Mas este episódio que levou à demissão de João Soares não é apenas eloquente quanto ao modo de funcionamento das regras do campo político e da sua convivência com a crítica. Ele diz-nos também muito acerca daquilo que hoje ainda pode ser recebido como “violência intelectual” e sobre o que é uma violência do discurso. O acto crítico pode assim ser analisado sob o ângulo da violência legítima. Violência ilegítima seria então aquela em que a crítica, sem razão para tal, visa a pessoa e não a sua obra ou a sua acção política e entra numa forma tóxica de malevolência.


Mas a demissão de João Soares não deve ser apenas analisada do ponto de vista dos efeitos da actividade crítica e da relação com ela que o criticado, enquanto ministro, manifesta publicamente. Os jornais e as chamadas “redes sociais” (e tem cada vez menos sentido opor os primeiros às segundas) funcionam hoje como centros de captação e formação de ondas colectivas de força timótica. A palavra grega thymos designa o órgão de onde nascem os impulsos, as excitações, as afecções mais inflamadas. O filósofo alemão Peter Sloterdijk escreveu um tratado precisamente sobre a situação timótica da nossa época (na tradução portuguesa chama-se Cólera e Tempo e foi editado pela Relógio D’Água). A teoria de Sloterdijk é a de que os partidos políticos podem ser vistos como instituições modernas equivalentes às bolsas primitivas de acumulação da cólera. As questões políticas e os políticos são hoje objectos preferenciais dos impulsos timóticos que atravessam não só as redes sociais mas também o jornalismo político, sobretudo aquele que, sob a forma do comentário existe em estado de proliferação. Assim, a cena política que daqui resulta é aquilo que hoje mais se aproxima do teatro dionisíaco ateniense. O subtítulo do livro de Sloterdijk diz-nos que é um “ensaio político-psicológico”. Na verdade, só uma psicopolitologia é capaz de uma análise da timótica política, para a qual os chamados politólogos não têm instrumentos. Ora, um crítico da política cultural, por mais pertinentes e violentas que sejam as suas críticas, jamais teriam a força para destituir um ministro se ele não estivesse já fragilizado à partida e se ele não cometesse a imprudência de lhes responder de uma maneira que desencadeia uma dessas reacções timóticas que se apoderam do espaço público. Por isso é que não podemos ver aqui um triunfo do jornalismo. Na sua forma ideal, o jornal sempre foi e continua a ser um órgão de formação colectiva de uma opinião pública racional, exactamente o contrário dos impulsos timóticos que governam hoje a vida pública

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