OPINIÃO
Crítica
e violência – breve arqueologia das bofetadas
ANTÓNIO GUERREIRO
10/04/2016 - PÚBLICO
A
crítica implica muitas vezes alguma violência legítima, mas
distingue-se do ataque. No entanto, as convenções do discurso
crítico mudam historicamente, e o que era admissível numa época
deixa depois de o ser.
O acto crítico que
se exerce na esfera pública por pessoas com responsabilidades
públicas pode prescindir de conceitos, mas supõe uma história e
uma retórica. As bofetadas de João Soares são um tópico, um
lugar-comum dos preceitos retóricos de uma crítica que teve o seu
auge na segunda metade do século XIX, que se transformou em
violência verbal nas vanguardas do início do século XX, mas que
declinou – como todo o confronto polémico no meio cultural,
literário e artístico – no último meio século.
O modelo é
evidentemente a crítica literária. Ela foi desde o início um campo
de batalha. Foi assim que Baudelaire decretou a urgência “contra a
canalha” e utilizou a metáfora da esgrima. A luta, o duelo, o
corpo-a-corpo estão sempre presentes na sua imaginação. E Proust,
em 1897, convocou um feroz crítico, Jean Lorrain, para um duelo,
depois de este ter evocado num artigo a homossexualidade do escritor.
A violência era naturalmente constitutiva da actividade crítica e
podia mesmo cruzar-se com o ódio. Baudelaire insistiu até na
necessidade de economizar os seus ódios, de não os desbaratar, de
os administrar com uma racionalidade táctica: o ódio é um tesouro,
“um veneno mais caro do que o dos Borgia”, para ser usado com
parcimónia. A ideia de crítica baseia-se na referência à
instância da Razão (visa um universal), mas a “crítica venenosa”
anula essa referência e dirige-se ad hominem, à pessoa que se torna
um alvo abominado, objecto de uma profunda aversão. Este tipo de
crítica mata o pensamento, mas desencadeia o discurso. Por isso
exerce uma tão grande atracção. Veja-se o que Almada Negreiros fez
a Júlio Dantas.
No campo da crítica,
os duelos são hoje uma reminiscência metafórica, mas no século
XIX foram uma prática e muito comum: os autores desafiavam os seus
críticos para a luta ou a esgrima
Em todos os campos
da actividade cultural e artística esta conflitualidade diminuiu
drasticamente na segunda metade do século XX e os códigos da boa
conduta crítica são hoje outros. A violência quase se retirou.
Aquilo que em tempos seria quase inócuo é hoje visto como um gesto
ofensivo. A crítica, nas várias disciplinas artísticas,
interiorizou sobretudo uma interdição: nada deve ser dito que
ultrapasse as fronteiras da obra e atinja uma zona pessoal, a pessoa
do escritor ou do artista. E isto foi acompanhado por uma
domesticação do espírito crítico, que mal tem um deslize fica
logo sujeito a uma suspeita de agressividade ou mesmo de
ressentimento.
João Soares reagiu
ao crítico Augusto M. Seabra, dirigindo as suas palavras ad hominem
e recorrendo a um tópico retórico, o das bofetadas. A sua reacção
leva-nos a estabelecer uma diferença entre ser criticado e ser
atacado. Ele dirá que reagiu a ataques, sejam eles evidentes ou
dissimulados. O problema é que essa distinção nem sempre é fácil
de fazer, e sabemos muito bem como há quem não consiga ver outra
coisa em qualquer crítica que lhe é dirigida senão um ataque. E se
essa confusão, mal se usa um tom mais severo, está muitas vezes
presente na crítica literária e artística, a crítica a um
ministro e a um político dificilmente escapa a esta ambiguidade.
Porque, neste caso, o que é objecto de crítica é um ethos, uma
acção que pode não se objectivar numa obra, mas apenas em
intenções veladas ou manifestas. Um político e um ministro não
são autores, como são os escritores e os artistas (a não ser nos
sonhos delirantes dos dirigentes dos regimes totalitários). A “obra”
deles é o que resulta das suas decisões colectivas, dos seus
discursos, dos efeitos que produzem por se situarem no lugar por
excelência da performatividade. Um autor tende para o anonimato, um
ministro está sempre apanhado na lógica da pessoalização. Daí
que possamos dizer sem grandes preocupações que um ministro foi
muito atacado (no sentido de “muito criticado”), mas não dizemos
que um escritor foi atacado, numa circunstância em que um livro seu
tenha sido criticado com severidade ou mesmo violência.
Nas últimas décadas
surgiu e proliferou em Portugal um género de discurso a que chamamos
geralmente “comentário político”. Há-os de várias espécies,
e de um modo geral ele passou também a cumprir a função do
entretenimento. É uma maneira de dar um carácter agónico à
política e vê-la como um jogo ou uma representação com
características de espectáculo, que o novo regime mediático
potencializa. O resultado, bem visível, é que os políticos
passaram a ser objecto de uma nomeação e sujeitos a uma
visibilidade muito mais agressivas, mais imediatas e mais frequentes.
Essa é uma das razões (mas não certamente a única) pelas quais,
numa altura em que o Estado tem muito menos sentido do que outrora,
haja um constante apelo ao “sentido de Estado”. João Soares caiu
nesta armadilha: foi apanhado a quebrar as convenções, as regras da
bienséance que dão pelo nome de “sentido de Estado” (que muita
gente parece achar que são regras co-naturais ao exercício da
função de ministro). Não foi o primeiro a cair por uma
transgressão deste tipo. E sabemos hoje, porque já são muitas as
lições, que um ministro pode aguentar-se no poder apesar de uma
forte contestação política e até quando impendem sobre ele
suspeitas de ilegalidades ou crimes, mas não resiste quando tem um
gesto ou uma palavra, por inócuos que sejam, que não se adequam aos
códigos não escritos do “sentido de Estado” (suscitando
reacções que fazem um uso imoderado de um estilo hiperbólico:
“insustentável”, “intolerável”, “inacreditável”,
“indesculpável”, etc.).
Mas Augusto M.
Seabra não é um comentador político. Para além de crítico de
música e de cinema, as suas incursões na área política são muito
mais especializadas do que a dos comentadores e colunistas: ele tem
feito com alguma assiduidade crítica da política cultural (seja a
dos sucessivos governos, seja a das instituições culturais). A
crítica da política cultural não é a mesma coisa que crítica da
cultura. Esta última é uma “disciplina” que também já teve o
seu tempo e declinou quando a alta cultura e a cultura de massas
começaram a não se diferenciar, quando se atenuou a crítica
ideológica da cultura. A cultura como campo de batalha não se
extinguiu, mas as mais fortes determinações da guerra perene
passaram para o campo da política cultural. Daí que um crítico
consagrado a essa área tenha uma acção muito mais poderosa do que
aquilo que resta de uma crítica da cultura. É no domínio da
política cultural que têm estado em jogo as grandes tensões, os
grandes conflitos, as posições irredutíveis. A política cultural
e as discussões em torno dela sobrepõem-se à cultura e até a
rasuram. Já Vasco Pulido Valente, também visado nas ameaças
retóricas de João Soares, é um colunista que se ocupa da política
de um modo generalista. Ele é, aliás, o exemplo maior, na imprensa
portuguesa, do colunista para quem a diferença entre a crítica
subordinada à instância universal da Razão e a crítica ad hominem
não se distinguem. E fez disso uma marca de “estilo” – o
estilo anacrónico do século XIX. Aquilo que noutros seria
intolerável, nele tornou-se um adorno: não faz mal porque é
sistemático e os leitores (excepto João Soares) já aprenderam a
ignorar ou a relativizar. Ele deixou de ser visto como um crítico
terrorista (o tema do “terror” foi muito importante na crítica
francesa antes da Segunda Guerra) e é lido de um modo geral como uma
criança insolente. Divertido para uns, irritante para outros.
Mas este episódio
que levou à demissão de João Soares não é apenas eloquente
quanto ao modo de funcionamento das regras do campo político e da
sua convivência com a crítica. Ele diz-nos também muito acerca
daquilo que hoje ainda pode ser recebido como “violência
intelectual” e sobre o que é uma violência do discurso. O acto
crítico pode assim ser analisado sob o ângulo da violência
legítima. Violência ilegítima seria então aquela em que a
crítica, sem razão para tal, visa a pessoa e não a sua obra ou a
sua acção política e entra numa forma tóxica de malevolência.
Mas a demissão de
João Soares não deve ser apenas analisada do ponto de vista dos
efeitos da actividade crítica e da relação com ela que o
criticado, enquanto ministro, manifesta publicamente. Os jornais e as
chamadas “redes sociais” (e tem cada vez menos sentido opor os
primeiros às segundas) funcionam hoje como centros de captação e
formação de ondas colectivas de força timótica. A palavra grega
thymos designa o órgão de onde nascem os impulsos, as excitações,
as afecções mais inflamadas. O filósofo alemão Peter Sloterdijk
escreveu um tratado precisamente sobre a situação timótica da
nossa época (na tradução portuguesa chama-se Cólera e Tempo e foi
editado pela Relógio D’Água). A teoria de Sloterdijk é a de que
os partidos políticos podem ser vistos como instituições modernas
equivalentes às bolsas primitivas de acumulação da cólera. As
questões políticas e os políticos são hoje objectos preferenciais
dos impulsos timóticos que atravessam não só as redes sociais mas
também o jornalismo político, sobretudo aquele que, sob a forma do
comentário existe em estado de proliferação. Assim, a cena
política que daqui resulta é aquilo que hoje mais se aproxima do
teatro dionisíaco ateniense. O subtítulo do livro de Sloterdijk
diz-nos que é um “ensaio político-psicológico”. Na verdade, só
uma psicopolitologia é capaz de uma análise da timótica política,
para a qual os chamados politólogos não têm instrumentos. Ora, um
crítico da política cultural, por mais pertinentes e violentas que
sejam as suas críticas, jamais teriam a força para destituir um
ministro se ele não estivesse já fragilizado à partida e se ele
não cometesse a imprudência de lhes responder de uma maneira que
desencadeia uma dessas reacções timóticas que se apoderam do
espaço público. Por isso é que não podemos ver aqui um triunfo do
jornalismo. Na sua forma ideal, o jornal sempre foi e continua a ser
um órgão de formação colectiva de uma opinião pública racional,
exactamente o contrário dos impulsos timóticos que governam hoje a
vida pública
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