domingo, 3 de abril de 2016

A Bélgica é um Estado falhado ou um microcosmos da União Europeia?



OPINIÃO
A Bélgica é um Estado falhado ou um microcosmos da União Europeia?
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 02/04/2016 - PÚBLICO

A Bélgica não é um Estado falhado, apesar das debilidades que agora se tornaram evidentes. É um microcosmos da União Europeia. Mimetiza as suas virtudes e os seus defeitos.

1. Na confluência da Europa latina e germânica, a Bélgica moderna tem uma história fugaz quando comparada com a portuguesa. Como Estado soberano, resulta dos desenvolvimentos da reorganização política ocorrida após as guerras napoleónicas. Inicialmente, por decisão tomada no Congresso de Viena (1814-1815), ficou sob domínio dos Países Baixos (Holanda). Mais tarde, a insurreição de Bruxelas, em 1830, motivada por clivagens culturais, linguísticas e religiosas, e por interesses de influência da França, levou à independência. O novo Estado emergiu sob primazia cultural e política francófona, ou seja, da Valónia. A outra grande região constitutiva — a Flandres —, foi-lhe subordinada. Em 1831, as grandes potências europeias — Grã-Bretanha, França, Áustria, Prússia e Rússia — acordaram em garantir a neutralidade e integridade do território. Na época, foram as possíveis ambições de domínio francês que determinaram a neutralidade. Isto não evitou que fosse arrastado para as violentíssimas confrontações europeias do século XX.

2. A Bélgica não é a Suíça. Ao contrário dos Alpes, o seu território, largamente plano, é geograficamente propício às invasões militares. A neutralidade mostrou-se impossível face à profunda rivalidade entre a Alemanha e a França, a qual cresceu desde a unificação germânica de 1871. Primeiro, foi a invasão da Alemanha imperial de Guilherme II. Os campos da Flandres foram um atoleiro para milhões de soldados, incluindo portugueses, entre 1914-1918. Mais tarde, foi a Alemanha de Hitler a invadir e ocupar o território. Após a II Guerra Mundial — e a reconciliação franco-alemã —, surgiu como um dos Estados fundadores das Comunidades. Pela sua geografia e história, marcadas pelos trágicos conflitos entre os seus vizinhos poderosos, tem tudo a ganhar com a integração europeia. Não por acaso, a Bélgica é tradicionalmente um dos Estados onde há mais sentimentos de europeísmo pró-federalistas.

3. A Bélgica é um Estado falhado? Após os atentados terroristas de 13/N em Paris e 22/M em Bruxelas, a imagem que fica ao leitor da imprensa internacional é essencialmente essa. Num extenso artigo recentemente publicado na revista alemã Der Spiegel, pode ler-se o seguinte: “São cerca de quatro quilómetros do Parlamento Europeu ao chamado núcleo jihadista de Molenbeek, mas não há praticamente nenhuma conexão diária entre a Europa e o bairro problemático. No quarteirão europeu, as leis são escritas para um continente inteiro, enquanto os jihadistas, nas proximidades, planeiam formas de combater a Europa e destruir a sua liberdade e valores.” A Bélgica é um Estado que, “de forma optimista, colocou em conjunto regiões que não tinham uma história comum: a Flandres, a Valónia francófona e a Bélgica oriental”, onde se fala alemão. “É uma construção que tem agora um Sul pobre, o qual carece de apoio, e um Norte rico, onde as queixas sobem, cada vez mais, de tom. É um princípio familiar. Chama-se Europa”. No mesmo tom cáustico, o artigo continua a descrever a forma de funcionamento da região de Bruxelas. “Com uma população de 1,1 milhões, não é particularmente grande. Infelizmente, essa população é dividida em dezanove municípios. Seis distritos policiais são responsáveis pela segurança [...] A capital belga é na Flandres mas a maioria das pessoas não fala francês, de modo que quase ninguém se sente verdadeiramente responsável […]”. No meio deste labirinto administrativo, “os jihadistas foram capazes de recrutar novos membros, sem serem detectados pelas autoridades. A Bélgica é o país onde, per capita, mais pessoas foram lutar para a guerra da Síria.” (Ver “Postcard from a Failed State? Attacks Cast Light on Belgium's State Crisis” in Spiegel Online International, 25/03/16).

4. Até um passado recente, a imagem era essencialmente benigna. Um Estado próspero em termos económicos, atractivamente multicultural, onde flamengos e valões coexistiam pacificamente, com três línguas oficiais e uma capital das mais cosmopolitas da Europa. Em Bruxelas, símbolos nacionais como o atomium, o Manneken Pis e a Grand Place fundem-se com os imponentes edifícios de arquitectura contemporânea das instituições europeias. O Berlaymont, sede da Comissão Europeia, o Espace Léopold onde funciona o Parlamento Europeu, quando reúne em Bruxelas. A Bélgica emergia como um modelo para a própria União Europeia. O seu modelo consensual, inclusivo das diferentes comunidades culturais-linguísticas na governação central e regional, era elogiado face à lógica maioritária, pelos teorizadores da democracia contemporânea. (Ver, entre outros, Arend Lijphart, “As Democracias Contemporâneas”, trad. port., Gradiva, 1989). As boas democracias, as democracias do futuro seriam multiculturais, inclusivas e consensuais como a da Bélgica. O que aconteceu para que a imagem da Bélgica passasse, em relativamente pouco tempo, de um caso de sucesso, de modelo para a construção europeia, a Estado falhado?

5. Um corrosivo artigo da edição europeia da revista Politico (ver Tim King, “Belgium is a failed state. Brussels’ nest of radicalism is just one of the failings of a divided, dysfunctional country”, 19/11/15), ajuda a perceber o que germina há várias décadas, passando despercebido, ou sendo convenientemente ignorado. O texto discute as origens da irrupção da Bélgica como centro dos islamistas-jihadistas na Europa. Nessa cadeia complexa e difusa, as raízes são traçadas a partir do capitalismo industrial e do seu declínio. As indústrias do carvão e do aço — não por acaso, a integração europeia começou por uma Comunidade Europeia do Carvão e do Aço —, eram essenciais nesse capitalismo industrial, do qual grandes empresas tiraram enormes lucros. Estavam situadas essencialmente na Valónia. “Foram essas indústrias pesadas que impulsionaram as primeiras vagas de migrações económicas para a Bélgica. As empresas foram à bacia do Mediterrâneo — Norte de África, bem como a Itália — procurar migrantes para as minas de carvão e produção de aço. A substancial população muçulmana, incluindo a de Molenbeek, tem origem em migrações oriundas da Argélia, Marrocos e Tunísia [e Turquia]. No entanto, a desindustrialização deixou áreas de pobreza e deterioração urbana no que havia sido o motor económico do país — a cintura do carvão, de Mons a Liège via Charleroi.” Quer dizer, as indústrias pesadas do carvão e do aço alimentaram o antagonismo entre a Valónia e a Flandres, nomeadamente ao nível da repartição dos encargos financeiros do Estado. Mais: externalizaram para a sociedade os custos do desemprego e da integração dos trabalhadores migrantes e suas famílias. Hoje continuam a sentir-se as consequências.

6. Molenbeek não é um caso isolado da externalização capitalista de custos para a sociedade. Nem de falhanço de políticas multiculturais supostamente integradoras. Vilvoorde, localizada na periferia de Bruxelas, mostra similares problemas. A cidade recebeu, orgulhosamente, a primeira fábrica da Renault fora de França, nos anos 1930. Durante décadas, a fábrica era elogiada pela elevada qualidade da sua produção e dedicação dos seus trabalhadores. Com a globalização, foi reduzindo a produção e encerrou em 1997. Os trabalhadores passaram a ser uma mão-de-obra cara, com excesso de regalias sociais, um fardo para o capitalismo industrial global, cada vez mais desumanizado. Perderam-se cerca de 3.500 postos de trabalho, deixando um rasto de desemprego, pobreza e exclusão social. Para além de inúmeros protestos, a grave degradação do tecido social envolvente deu origem a um filme contestatário: “Fermeture de l'usine Renault à Vilvoorde”, de Jan Bucquoy et Nathalie Sartiaux (1998). Hoje, continua nas notícias pelas piores razões. O grupo radical islamista radical, Sharia4Belgium, tem estado particularmente activo em Vilvoorde e outras cidades em declínio industrial, no recrutamento de jovens de gueto para a guerra da Síria. (Ver “How Belgium Became a Jihadist-Recruiting Hub” in Wall Street Journal, 28/09/2014).

7. A Bélgica não é um Estado falhado, apesar das debilidades que agora se tornaram evidentes. É um microcosmos da União Europeia. Mimetiza as suas virtudes e os seus defeitos. No seu melhor, é uma sociedade próspera, democrática, aberta, de coexistência multicultural e cosmopolita. No seu melhor, é ainda uma democracia plural, que procura ser o mais inclusiva possível, decidir por consenso, respeitar as minorias. No seu pior, é uma teia labiríntica de organismo burocráticos, de bloqueios por falta de consenso, de disputas por razões linguísticas / culturais / nacionais. No seu pior, encerra, também, um multiculturalismo de gueto — que muitos preferem ignorar ou iludir —, o qual coexiste em paralelo com o multiculturalismo cosmopolita. A qualificação é deliberadamente paradoxal. Trata-se, não de um bom multiculturalismo, que pressupõe abertura ao outro e interacção cultural de ambas as partes, mas de um acantonamento de diferentes grupos culturais (daí o multi), em guetos monoculturais fechados, largamente excluídos, ou auto-excluídos, da sociedade dominante (daí o gueto). Evidencia as virtudes, debilidades e falhanços do modelo multicultural. Mostra como capitalismo externaliza para a sociedade os custos e retira para si os lucros. Tal como o centro cosmopolita de Bruxelas, os guetos de Molenbeek e Vilvoorde têm múltiplas réplicas europeias. Ambos são produto da Europa que se construiu no último meio século. Até agora recusávamos ver essa outra realidade. Resta saber qual vai prevalecer.


Investigador

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