OPINIÃO
A
Bélgica é um Estado falhado ou um microcosmos da União Europeia?
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 02/04/2016 - PÚBLICO
A
Bélgica não é um Estado falhado, apesar das debilidades que agora
se tornaram evidentes. É um microcosmos da União Europeia. Mimetiza
as suas virtudes e os seus defeitos.
1. Na confluência
da Europa latina e germânica, a Bélgica moderna tem uma história
fugaz quando comparada com a portuguesa. Como Estado soberano,
resulta dos desenvolvimentos da reorganização política ocorrida
após as guerras napoleónicas. Inicialmente, por decisão tomada no
Congresso de Viena (1814-1815), ficou sob domínio dos Países Baixos
(Holanda). Mais tarde, a insurreição de Bruxelas, em 1830, motivada
por clivagens culturais, linguísticas e religiosas, e por interesses
de influência da França, levou à independência. O novo Estado
emergiu sob primazia cultural e política francófona, ou seja, da
Valónia. A outra grande região constitutiva — a Flandres —,
foi-lhe subordinada. Em 1831, as grandes potências europeias —
Grã-Bretanha, França, Áustria, Prússia e Rússia — acordaram em
garantir a neutralidade e integridade do território. Na época,
foram as possíveis ambições de domínio francês que determinaram
a neutralidade. Isto não evitou que fosse arrastado para as
violentíssimas confrontações europeias do século XX.
2. A Bélgica não é
a Suíça. Ao contrário dos Alpes, o seu território, largamente
plano, é geograficamente propício às invasões militares. A
neutralidade mostrou-se impossível face à profunda rivalidade entre
a Alemanha e a França, a qual cresceu desde a unificação germânica
de 1871. Primeiro, foi a invasão da Alemanha imperial de Guilherme
II. Os campos da Flandres foram um atoleiro para milhões de
soldados, incluindo portugueses, entre 1914-1918. Mais tarde, foi a
Alemanha de Hitler a invadir e ocupar o território. Após a II
Guerra Mundial — e a reconciliação franco-alemã —, surgiu como
um dos Estados fundadores das Comunidades. Pela sua geografia e
história, marcadas pelos trágicos conflitos entre os seus vizinhos
poderosos, tem tudo a ganhar com a integração europeia. Não por
acaso, a Bélgica é tradicionalmente um dos Estados onde há mais
sentimentos de europeísmo pró-federalistas.
3. A Bélgica é um
Estado falhado? Após os atentados terroristas de 13/N em Paris e
22/M em Bruxelas, a imagem que fica ao leitor da imprensa
internacional é essencialmente essa. Num extenso artigo recentemente
publicado na revista alemã Der Spiegel, pode ler-se o seguinte: “São
cerca de quatro quilómetros do Parlamento Europeu ao chamado núcleo
jihadista de Molenbeek, mas não há praticamente nenhuma conexão
diária entre a Europa e o bairro problemático. No quarteirão
europeu, as leis são escritas para um continente inteiro, enquanto
os jihadistas, nas proximidades, planeiam formas de combater a Europa
e destruir a sua liberdade e valores.” A Bélgica é um Estado que,
“de forma optimista, colocou em conjunto regiões que não tinham
uma história comum: a Flandres, a Valónia francófona e a Bélgica
oriental”, onde se fala alemão. “É uma construção que tem
agora um Sul pobre, o qual carece de apoio, e um Norte rico, onde as
queixas sobem, cada vez mais, de tom. É um princípio familiar.
Chama-se Europa”. No mesmo tom cáustico, o artigo continua a
descrever a forma de funcionamento da região de Bruxelas. “Com uma
população de 1,1 milhões, não é particularmente grande.
Infelizmente, essa população é dividida em dezanove municípios.
Seis distritos policiais são responsáveis pela segurança [...] A
capital belga é na Flandres mas a maioria das pessoas não fala
francês, de modo que quase ninguém se sente verdadeiramente
responsável […]”. No meio deste labirinto administrativo, “os
jihadistas foram capazes de recrutar novos membros, sem serem
detectados pelas autoridades. A Bélgica é o país onde, per capita,
mais pessoas foram lutar para a guerra da Síria.” (Ver “Postcard
from a Failed State? Attacks Cast Light on Belgium's State Crisis”
in Spiegel Online International, 25/03/16).
4. Até um passado
recente, a imagem era essencialmente benigna. Um Estado próspero em
termos económicos, atractivamente multicultural, onde flamengos e
valões coexistiam pacificamente, com três línguas oficiais e uma
capital das mais cosmopolitas da Europa. Em Bruxelas, símbolos
nacionais como o atomium, o Manneken Pis e a Grand Place fundem-se
com os imponentes edifícios de arquitectura contemporânea das
instituições europeias. O Berlaymont, sede da Comissão Europeia, o
Espace Léopold onde funciona o Parlamento Europeu, quando reúne em
Bruxelas. A Bélgica emergia como um modelo para a própria União
Europeia. O seu modelo consensual, inclusivo das diferentes
comunidades culturais-linguísticas na governação central e
regional, era elogiado face à lógica maioritária, pelos
teorizadores da democracia contemporânea. (Ver, entre outros, Arend
Lijphart, “As Democracias Contemporâneas”, trad. port., Gradiva,
1989). As boas democracias, as democracias do futuro seriam
multiculturais, inclusivas e consensuais como a da Bélgica. O que
aconteceu para que a imagem da Bélgica passasse, em relativamente
pouco tempo, de um caso de sucesso, de modelo para a construção
europeia, a Estado falhado?
5. Um corrosivo
artigo da edição europeia da revista Politico (ver Tim King,
“Belgium is a failed state. Brussels’ nest of radicalism is just
one of the failings of a divided, dysfunctional country”,
19/11/15), ajuda a perceber o que germina há várias décadas,
passando despercebido, ou sendo convenientemente ignorado. O texto
discute as origens da irrupção da Bélgica como centro dos
islamistas-jihadistas na Europa. Nessa cadeia complexa e difusa, as
raízes são traçadas a partir do capitalismo industrial e do seu
declínio. As indústrias do carvão e do aço — não por acaso, a
integração europeia começou por uma Comunidade Europeia do Carvão
e do Aço —, eram essenciais nesse capitalismo industrial, do qual
grandes empresas tiraram enormes lucros. Estavam situadas
essencialmente na Valónia. “Foram essas indústrias pesadas que
impulsionaram as primeiras vagas de migrações económicas para a
Bélgica. As empresas foram à bacia do Mediterrâneo — Norte de
África, bem como a Itália — procurar migrantes para as minas de
carvão e produção de aço. A substancial população muçulmana,
incluindo a de Molenbeek, tem origem em migrações oriundas da
Argélia, Marrocos e Tunísia [e Turquia]. No entanto, a
desindustrialização deixou áreas de pobreza e deterioração
urbana no que havia sido o motor económico do país — a cintura do
carvão, de Mons a Liège via Charleroi.” Quer dizer, as indústrias
pesadas do carvão e do aço alimentaram o antagonismo entre a
Valónia e a Flandres, nomeadamente ao nível da repartição dos
encargos financeiros do Estado. Mais: externalizaram para a sociedade
os custos do desemprego e da integração dos trabalhadores migrantes
e suas famílias. Hoje continuam a sentir-se as consequências.
6. Molenbeek não é
um caso isolado da externalização capitalista de custos para a
sociedade. Nem de falhanço de políticas multiculturais supostamente
integradoras. Vilvoorde, localizada na periferia de Bruxelas, mostra
similares problemas. A cidade recebeu, orgulhosamente, a primeira
fábrica da Renault fora de França, nos anos 1930. Durante décadas,
a fábrica era elogiada pela elevada qualidade da sua produção e
dedicação dos seus trabalhadores. Com a globalização, foi
reduzindo a produção e encerrou em 1997. Os trabalhadores passaram
a ser uma mão-de-obra cara, com excesso de regalias sociais, um
fardo para o capitalismo industrial global, cada vez mais
desumanizado. Perderam-se cerca de 3.500 postos de trabalho, deixando
um rasto de desemprego, pobreza e exclusão social. Para além de
inúmeros protestos, a grave degradação do tecido social envolvente
deu origem a um filme contestatário: “Fermeture de l'usine Renault
à Vilvoorde”, de Jan Bucquoy et Nathalie Sartiaux (1998). Hoje,
continua nas notícias pelas piores razões. O grupo radical
islamista radical, Sharia4Belgium, tem estado particularmente activo
em Vilvoorde e outras cidades em declínio industrial, no
recrutamento de jovens de gueto para a guerra da Síria. (Ver “How
Belgium Became a Jihadist-Recruiting Hub” in Wall Street Journal,
28/09/2014).
7. A Bélgica não é
um Estado falhado, apesar das debilidades que agora se tornaram
evidentes. É um microcosmos da União Europeia. Mimetiza as suas
virtudes e os seus defeitos. No seu melhor, é uma sociedade
próspera, democrática, aberta, de coexistência multicultural e
cosmopolita. No seu melhor, é ainda uma democracia plural, que
procura ser o mais inclusiva possível, decidir por consenso,
respeitar as minorias. No seu pior, é uma teia labiríntica de
organismo burocráticos, de bloqueios por falta de consenso, de
disputas por razões linguísticas / culturais / nacionais. No seu
pior, encerra, também, um multiculturalismo de gueto — que muitos
preferem ignorar ou iludir —, o qual coexiste em paralelo com o
multiculturalismo cosmopolita. A qualificação é deliberadamente
paradoxal. Trata-se, não de um bom multiculturalismo, que pressupõe
abertura ao outro e interacção cultural de ambas as partes, mas de
um acantonamento de diferentes grupos culturais (daí o multi), em
guetos monoculturais fechados, largamente excluídos, ou
auto-excluídos, da sociedade dominante (daí o gueto). Evidencia as
virtudes, debilidades e falhanços do modelo multicultural. Mostra
como capitalismo externaliza para a sociedade os custos e retira para
si os lucros. Tal como o centro cosmopolita de Bruxelas, os guetos de
Molenbeek e Vilvoorde têm múltiplas réplicas europeias. Ambos são
produto da Europa que se construiu no último meio século. Até
agora recusávamos ver essa outra realidade. Resta saber qual vai
prevalecer.
Investigador
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