As
faces ocultas do caso do dr. Núncio
De
uma vez por todas, o país tem de acabar com os donos disto tudo, tem
de extinguir os foros privilegiados que os políticos não só
cultivam como se esmeram em esconder de todos os outros.
Manuel Carvalho
1 de Março de 2017,
6:38
O ex-secretário de
Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio deu, por estes dias, aos
partidos da esquerda, uma prenda de valor político inestimável:
veio oferecer-lhes uma base factual e sólida na qual poderão daqui
para a frente sustentar as suas teses de que a direita é um clube
selecto que protege os contribuintes afortunados ao mesmo tempo que
suga até ao tutano os pobres e os remediados. A luta de classes que,
na sua essência doutrinária, continua a animar o Bloco e o Partido
Comunista encontrou no estranho caso de Paulo Núncio um creme que se
vai colar à pele do PSD e do CDS por muito tempo. É por isso que os
danos causados pelo ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não
se reparam com a assunção de responsabilidades políticas. A prazo,
o anátema do partido dos ricos autenticado pelo indicador de Paulo
Núncio vai contaminar a credibilidade de Assunção Cristas, de
Maria Luís Albuquerque e de Pedro Passos Coelho – que, nesta
história, parece mais vítima do que algoz. As marcas são tão
indeléveis que só o tempo longo ou uma mudança de liderança as
conseguirão extirpar.
O que sabemos que
aconteceu às comunicações dos bancos sobre transferências de
capital para offshores ainda tem zonas cinzentas, mas, no essencial,
podemos avaliar desde já o que aconteceu. E o que aconteceu não é
apenas inaceitável do ponto de vista político; é igualmente
desprezível do ponto de vista ético e eventualmente condenável do
ponto de vista legal. Paulo Núncio é um jurista qualificado em
questões fiscais e sabia perfeitamente que havia uma directiva
europeia transposta em 2008 para a legislação nacional que o
obrigava, e ao seu Governo, a acompanhar e a publicar estatísticas
sobre transferências para os offshores. Deliberada e
conscientemente, não o fez, mesmo que, para o efeito, tenha sido
alertado pelo director-geral do fisco. E não o fez por uma de duas
razões: ou porque queria encobrir dados, o que nos leva para uma
estirpe de suspeição altamente perigosa; ou porque queria apenas
poupar o Governo às consequências políticas de uma informação
explosiva – enquanto se cortavam salários e aumentavam impostos à
classe média, os privilegiados sangravam o capital do país para o
estrangeiro.
Em qualquer dos
casos, Paulo Núncio dificilmente terá direito a salvar-se nesta
história com a mera acusação de que foi apenas incompetente,
negligente ou politicamente inepto. Ninguém acredita nestas
possibilidades e, se alguém acreditava, o ex-director-geral do fisco
Azevedo Pereira tratou de acabar com a ilusão. O que torna o seu
caso feio e grave é precisamente a mais que provável
intencionalidade com que meteu as declarações sobre as
transferências na gaveta. Não podemos (nem devemos) acusá-lo de
ter tido qualquer responsabilidade no extravio das tais 20
declarações que assinalavam o êxodo para o exterior de quase dez
mil milhões de euros. Mas podemos (e devemos) acusá-lo de ter
fomentado na administração tributária um caldo de cultura de
sonegação e opacidade, através do qual a expatriação de enormes
quantidades de dinheiro não merecia mais do que o rabisco de um
displicente “visto” no canto superior de um qualquer despacho.
Com ou sem
explicações, o “caso offshores” vai-se transformar no “caso
Núncio” e, por efeito de mancha de óleo, o Governo anterior
ficará em causa. Com o PS confortavelmente instalado a antever as
cenas dos próximos capítulos, o Bloco e o PCP não precisam de se
esforçar para que a nuvem da suspeição cause danos na
credibilidade da oposição. O Bloco limita-se a acusações de
“negligência” ou a “silêncios ensurdecedores” e evita a
menção de dolo ou de dolo eventual porque sabe que não é preciso
gastar trunfos. Desde que deixaram o poder, os partidos do anterior
Governo estavam a ser fustigados por terem varrido o lixo da banca
para debaixo do tapete, estavam a ser politicamente exauridos por
terem apregoado a inevitabilidade da sua receita económica quando
toda a gente está a perceber que a realidade não é bem assim,
estavam a ser alvejados por prenunciar o regresso de um diabo que
ninguém vê, foram apontados como autores de uma estratégia de
empobrecimento que teve como alvo funcionários públicos ou os
pensionistas; mas nunca tinha havido um facto que, aos olhos do
cidadão comum, tornasse essas acusações tão verosímeis como o
“caso Núncio”.
O PSD e o CDS bem
podem agora apregoar que foi o seu Governo que dilatou o prazo de
prescrição de crimes fiscais associados à peste dos offshores de
quatro para 12 anos, que impôs a progressividade nos cortes
salariais e nos impostos, que aumentou as pensões do regime
não-contributivo, que atacou as PPP, que impôs impostos
extraordinários a grandes empresas e a grandes fortunas; no
essencial, só os seus mais devotos fiéis os vão ouvir. Porque,
contrariando todas essas narrativas, houve um secretário de Estado
que acabou por conceder aos titulares de contas offshore um estatuto
de inaceitável imunidade fiscal; houve um ministério que impediu o
fisco de analisar a origem e o destino de uma enorme sangria de
capital num tempo em que o país desesperava com falta de dinheiro
para investir ou para manter as suas funções básicas de soberania
e responsabilidade social.
Acreditar que o
“caso Núncio” vai ficar apenas na esfera do ex-secretário de
Estado é, por isso, uma ilusão. Maria Luís Albuquerque será o
próximo alvo, ou porque sabia e foi cúmplice ou não sabia e foi
incompetente. E, subindo na hierarquia, nem Passos nem Assunção
Cristas escapam ilesos. Mesmo que todas as transferências fossem
legais, mesmo que o fisco não tenha a haver um único cêntimo, o
veneno da suspeita sobrepor-se-á às causas que a oposição abrir
nos próximos tempos, por muito justas que sejam. A nova comissão
parlamentar de inquérito sobre a Caixa já estava moribunda (já
todos sabemos que Centeno faltou à verdade e que o comportamento do
Governo na tentativa de branqueamento da sua negociata com António
Domingues foi uma vergonha) e com o “caso Núncio” tornou-se uma
bizarria. Durante meses, PSD e CDS estarão diminuídos, mesmo que se
juntem à argumentação da esquerda na procura de toda a verdade.
Na política,
parecer é muitas vezes tão importante como ser e a cristalização
da ideia de que o mesmo Estado que expulsou famílias das suas casas
por dívidas ao fisco tapou deliberadamente os olhos a transferências
de milhares de milhões de euros para paraísos fiscais é
arrasadora. De uma vez por todas, o país tem de acabar com os donos
disto tudo, tem de extinguir os foros privilegiados que os políticos
não só cultivam como se esmeram em esconder de todos os outros.
Há-de passar muito tempo até que numa discussão política o PSD e
o CDS deixem de ouvir: “Ai sim? E então os dez mil milhões que
fugiram para os offshores?...” Pode ser que aprendam.
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