Trump
e a imprensa num jogo do gato e do rato
Para
os media, o maior risco é o activismo anti-Trump fazer perder o
sentido da informação equilibrada. É essa a armadilha. Não é
certo que a imprensa não se deixe cair nela.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES
1 de Fevereiro de
2017, 12:42
1. Donald Trump faz
as manchetes dos media. Todos os dias há uma torrente de notícias
sobre Trump, sejam assuntos com substância política ou fait-divers.
É notícia pelo que disse, pelo que não disse, pelo que fez, pelo
que pretende fazer, ou não fazer, por quem nomeou ou por quem
demitiu. É assim desde a eleição de 8/11/2016. Com pouco mais de
uma semana no poder, é-nos é servida, diariamente, uma boa dose de
Trump: muros na fronteira com o México, gasodutos que atropelam
preocupações ambientais, uso de "fogo contra fogo"
(leia-se de técnicas de tortura dos que terão praticado, ou
conspirado para praticar, actos de terror) e veto à entrada de
refugiados e migrantes de alguns países islâmicos. Esta presença
constante, sempre envolta em polémica e contestação, é má para
Trump? Descredibiliza-o e limita-lhe a margem de manobra política,
podendo levar ao afastamento ou impeachment, tal como ocorreu com
Nixon? (Parece ser este o objectivo último dos seus opositores mais
acérrimos.) A resposta, à primeira vista, sugere essa
possibilidade: numa semana, segundo uma sondagem da Gallup, a taxa de
desaprovação ultrapassou simbolicamente os 50% — um record para
um presidente estreante, que nem sequer teve, ou quis ter, estado de
graça. Mas o caso está longe de ser linear. Trump não é um
político convencional e tem pouco a perder. Atropelar a maioria das
convenções e valores das elites cosmopolitas é a sua estratégia
de poder.
2. A enxurrada de
ordens executivas nos primeiros dias no cargo de Presidente dos EUA
provocou grande consternação e indignação nos media e na maioria
da opinião pública, pelo menos daquela que é conhecida. Não foi
um acaso. Tudo indica que houve uma intenção de choque deliberada.
Assinou múltiplas ordens executivas todas bem publicitadas (algumas
com um ar atabalhoado, seja por falta de preparação adequada ou
para criar deliberadamente confusão e polémica). Quis logo pôr em
prática as promessas da campanha eleitoral. Para os muitos críticos,
fez coisas condenáveis, hediondas mesmo. (Na versão mais simpática
é um amador no cargo que pensa que está a gerir empresas). Para os
seus apoiantes, Trump é um homem de palavra e não os abandona. Ao
contrário dos políticos de establishment — cuja crítica usual do
cidadão é que fazem promessas e não as cumprem —, Trump
apresenta-se com uma espécie de herói anti-establishment. Não só
cumpre como vinga os “deploráveis” — a América ordeira e
“silenciosa” que os media não representam, ou só representam de
forma distorcida. Não serão mais ridicularizados e condenados a
priori, pelos seus valores e visão do mundo. Agora detêm o poder e
têm quem os defenda. Mais: o seu programa é mesmo para pôr em
prática. A vida política deixará de ser dominada por uma elite
moralmente corrupta e sem patriotismo. Os seus valores serão
trucidados.
3. Trump podia ter
adoptado um estilo mais próximo de um republicano conservador
convencional. Várias das medidas que promulgou, com grande estrondo
mediático, são medidas clássicas do Partido Republicano no poder.
É o caso do corte de financiamento a programas de assistência
internacional que incluam o aborto. Ironicamente, é também o caso
muro com o México. Nem sequer é uma ideia original de Trump. Existe
já, de uma forma ou de outra, em partes significativas da fronteira
Sul. A grande diferença é que, no passado — quer, com os
democratas, quer com os republicanos —, era um assunto tratado com
discrição, fora do olhar da opinião pública. Trump deu-lhe a
maior visibilidade possível, reiterando a intenção de o construir
com uma retórica agressiva: “o México irá pagar o muro”. A
generalidade da imprensa vê aí uma afronta constante aos valores de
uma boa sociedade, aos mexicanos e a si própria. Mas Trump parece
achar que pode ganhar com isso. Com a sua base de apoio permanente
sob ataque, espera mantê-la galvanizada e a cerrar fileiras em torno
de si. Para além disso, provocar escândalo e estar sujeito a
sobre-exposição mediática parecem agradar-lhe. Não é apenas uma
questão de ego e da sua obsessão de ser o centro das atenções. É
mais do que isso. O efeito da sua contínua presença nos media,
ainda que quase sempre pela negativa, poderá levar a um quadro
mental colectivo de saturação que gere uma sensação de
“normalidade”. Chegando a esse ponto, poderá ser visto como um
novo estilo “carismático” de fazer política. Abominável para
uns, heróico para outros.
4. Estamos perante
um perigoso jogo político do gato e do rato. A imprensa procura
apanhar Trump em falso e descredibilizá-lo o mais possível, levando
à sua queda. Provavelmente, tenta reeditar o seu épico momento de
glória, quando a revelação escândalo Watergate, nos anos 1970. Na
altura, levou à demissão de outro presidente republicano: Richard
Nixon — que ficou politicamente encurralado devido ao provável
afastamento do cargo por impeachment. Trump, por sua vez, quer
condicionar e descredibilizar, o mais possível, a imprensa. Vê-a
como principal força de oposição (o “partido dos media”), e
não o Partido Democrata, que ainda não se recompôs da derrota de
Hillary Clinton em 8/11/2016 e está à deriva, sem liderança. Como
já referido, as provocações diárias são uma peça dessa
estratégia. Levar a imprensa a uma sobre-reacção às suas
declarações e medidas — sobretudo nesta fase inicial —, que
permita criar a ideia de mau perder, de um julgamento precipitado, de
total perda de neutralidade e de sentido de informação. O alvo
preferencial são os media liberais, no sentido político do termo,
ou seja, tidos como progressistas (CNN, New York Times, Time,
Washington Post, Huffington Post, etc.). Usualmente são vistos pelo
seu eleitorado com a suspeição de serem pró-democratas. Com o
confronto permanente, a suspeição adensa-se. Para os media, o maior
risco é o activismo anti-Trump fazer perder o sentido da informação
equilibrada, de levar à saturação e perda de credibilidade no
público em geral. É essa a armadilha. Não é certo que a imprensa
não se deixe cair nela.
5. Aqui entra uma
outra faceta da questão. A da relação de amor-ódio da imprensa
com a Internet e as redes sociais. Na imprensa dos últimos meses as
redes sociais e a Internet foram fustigadas e vilipendiadas como
estando uma origem da pós-verdade na política e tendo aberto
caminho a Trump para o poder. Mas há pouco tempo atrás eram objecto
de elogios generalizados. Durante a primeira campanha eleitoral que
levou Barack Obama ao poder, em 2008, eram idolatradas. Eram meios de
progresso, de empoderamento dos cidadãos, de formação e difusão
de ideias de uma boa sociedade. Esta versão optimisticamente ingénua
continuava em 2011, com a “Primavera árabe”: o Twitter e o
Facebook eram instrumentos que derrubavam ditadores. Depois surgiu
Julian Assange e as revelações dos WikiLeaks: um ícone da
liberdade de imprensa e transparência tinha aparecido. Tudo isto até
Trump ganhar as eleições de 8/11/2016: aí passaram a ser a fonte
de todos os males. Mas, agora, com a onda de protestos anti-Trump a
ser convocadas pelas redes socais, e a mobilizar gente para a
contestação, voltaram a ser boas. Estas mudanças abruptas de
percepção sobre a Internet e a redes sociais — ao sabor dos
resultados das acções políticas —, não beneficiam a imagem dos
media junto do público. Alimentam os argumentos dos seus
detractores, que os acusam de não estarem interessados em fornecer
uma informação objectiva e equilibrada, mas em promover a sua
agenda política e visão do mundo.
6. Por último, o
jogo do gato e do rato entre Trump e os media norte-americanos tem
antecedentes que deveriam levar a reflectir profundamente sobre como
chegamos até aqui. Nos anos 1980, com o livro The Art of the Deal /
A Arte da Negociação (1987), teve o seu primeiro grande momento de
notoriedade mediática. Assinado em parceria com o jornalista Tony
Schwartz — aparentemente, o seu "escritor fantasma" —,
ajudou a criar o mito de um negociador imbatível e homem de negócios
que torna o sonho americano realidade. Agora Schwartz fez mea culpa.
Terá criado um Frankenstein. Na última década, o programa de Mark
Burnett, The Apprentice / O Aprendiz, da NBC, reforçou imagem e
popularidade de Trump. Ironicamente, apesar de os media e o show
business estarem geralmente próximos do Partido Democrata, são os
republicanos que mais beneficiam da "sociedade do espectáculo".
Primeiro foi Reagan — um antigo actor de filmes de Hollywood —
que foi governador da Califórnia e Presidente dos EUA. Depois foi
Schwarzenegger, outro actor de Hollywood, a chegar ao cargo de
governador da Califórnia (agora substitui Trump no programa The
Apprentice). Quanto a este último, a sua ascensão ao poder continua
a deixar muitos incrédulos e sem perceber como foi possível. É bom
que percebam: Trump como político não seria possível sem o Trump
empresário do “sonho americano” e do entretenimento que os media
criaram.
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