OPINIÃO
A
nossa casa ainda é a Europa
TERESA DE SOUSA
10/04/2016 - PÚBLICO
Sem
tabus nem falsas ilusões, precisamos de debater a sério o nosso
lugar num mundo que mudou profundamente desde que regressámos à
Europa.
1. É difícil que
passe um dia sem que haja uma má notícia sobre a Europa ou, por
outras palavras, mais uma prova de que as coisas podem vir a correr
muito mal, caso os seus líderes não compreendam rapidamente que é
absolutamente necessário travar esta descida ao abismo antes que
seja tarde demais. A última foi o referendo holandês sobre o acordo
de associação da União Europeia com a Ucrânia, que por sinal já
está provisoriamente em funções. Não era vinculativo. Votou pouca
gente. Ganhou folgadamente o não. E, como era óbvio, o
primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, não se pode dar ao luxo de
encolher os ombros, sob pena de ser acusado de ignorar o significado
político desta rejeição.
Jean-Claude Juncker
disse que estava triste e acrescentou que se tratava de uma
catástrofe. Este referendo, independentemente do seu resultado,
significa uma machadada na política de vizinhança europeia, cada
vez mais essencial para contrariar a desestabilização crescente nas
suas fronteiras a leste e a sul, incentivando a democracia e o
desenvolvimento. Trata-se de uma dimensão fundamental da segurança
europeia e, se a moda pega, Juncker passa mesmo a ter razão. O que
se passa na Holanda, passa-se noutros países europeus. A questão
dos imigrantes foi ocupando cada vez mais espaço na sua agenda
politica, alimentando a ascensão de um partido populista e xenófobo,
que rejeita a presença de grandes comunidades islâmicas
concentradas nas suas grandes cidades ou, mais recentemente, os
polacos que vêm trabalhar para as estufas. A questão-chave, lá
como em muitos outros países da União, é o descrédito da Europa
aos olhos das opiniões públicas, que se manifesta com este ou com
outros pretextos. Esta pequena introdução apenas serve para colocar
a questão da nossa política europeia (que é interna) e da nossa
política externa, que serão duramente postas à prova nos próximos
tempos. Com um risco maior: a tentação de virar as costas à
Europa, voltando à velha ilusão de que o mar alto está sempre à
nossa disposição.
2. O chefe da
Diplomacia portuguesa e o primeiro-ministro definiram as três
prioridades estratégicas da nossa inserção internacional a partir
dos mesmos princípios que resultaram da democratização e da
europeização do país: primeiro a Europa, depois a Aliança
Atlântica e, por fim, a comunidade de países que falam a língua
portuguesa e com os quais partilhamos uma parte da nossa História. A
ordem dos factores não é arbitrária. O PSD não se afasta muito
desta trilogia, mesmo que tenha reduzido a política externa à
diplomacia económica e a política europeia ao cumprimento das
exigências da Alemanha. Independentemente das questões económicas
e sem lhes retirar importância, os dois partidos comungam uma ideia
fundamental: não há alternativa à nossa opção europeia. Fora
dela não temos a mínima chance num mundo em profunda turbulência
onde a ordem liberal está em perda e a relação de forças volta a
imperar. Ambos têm consciência de que, se as coisas correrem mal na
Europa, todos perderão mas serão os países mais pequenos e
periféricos a pagar o preço mais alto. O ministro dos Negócios
Estrangeiros resumiu esta ideia com uma expressão feliz: “O
interesse de Portugal é a própria construção europeia”. Mas as
palavras não chegam, sobretudo em tempos de profunda crise, como
aqueles que vivemos.
A grande mudança
europeia pode resumir-se, talvez, numa ideia: a Europa viveu até à
queda do Muro e nos primeiros anos da reunificação no verdadeiro
“fim da Histórica”, acreditando que a geopolítica estava morta
e enterrada. A História voltou, a geografia também. A resposta a
este regresso é um desafio gigantesco. Repetir o discurso do passado
não é mais possível, abrindo as portas a alternativas que
verdadeiramente não o são.
Que Europa
preferimos? Uma Europa aberta ao mundo e virada para o Atlântico,
onde o Reino Unido é indispensável para equilibrar a centralidade
da potência continental e a própria relação entre a Alemanha e a
França. As alianças obrigam-nos a olhar com frieza para os nossos
parceiros. Basta lembrar alguns factos. O antigo primeiro-ministro
espanhol José Luis Zapatero provou, logo no início da crise da
dívida, a sua “solidariedade” socialista e ibérica, cancelando
as cimeiras previstas com um país alvo de resgate. “A Espanha não
é Portugal”. Mas Portugal fez exactamente o mesmo à Grécia nas
negociações do terceiro resgate. “Portugal não é a Grécia”.
A Irlanda também já disse que não era Portugal ou a Grécia. Temos
também de equacionar a nossa relação com a Alemanha, o país cada
vez mais hegemónico, num quadro em que a nossa valorização
europeia passa pelo Atlântico e o que interessa aos alemães é o
espaço dos seus vizinhos de Centro e de Leste e, no médio prazo, a
Rússia. Também esta frente se exige flexibilidade e lucidez.
3. A segunda questão
fundamental diz respeito ao nosso lugar na comunidade transatlântica,
a nível bilateral (acordo de defesa) e na NATO. Uma avaliação
realista das relações com os EUA mostra que já tiveram melhores
dias, por razões que resultam das mudanças na estratégia de
segurança dos EUA depois da Guerra Fria, mas também de más
decisões nacionais. Falamos muito do passado e muito pouco do
futuro. Temos de reflectir sobre qual é a melhor forma de voltarmos
a ser vistos como um aliado fiável. Porque não vale a pena ter
ilusões: seja qual for o Presidente, Bush ou Obama, a diplomacia
americana é absolutamente pragmática. Reduzir tudo às Lajes é a
pior das respostas. Até porque Washington já se virou para a
Espanha (uma novidade histórica) com a escolha da Base de Rota, e os
espanhóis, com todo o seu antiamericanismo, colocaram na mesa aquilo
que os EUA precisavam. Estivemos no Afeganistão, é verdade, com
tropas capazes de combater sem caveats, coisa que os americanos muito
apreciam. Mas, se compararmos a nossa contribuição com a de outros
países europeus como a Dinamarca, a Holanda ou a própria Bélgica,
fazemos má figura. Não estamos na aliança militar contra o Daesh.
A desculpa da crise só vale para os últimos anos. A Parceria
Transatlântica para o Comércio e o Investimento (TTIP) abriu-nos
uma segunda oportunidade para não falharmos de novo a globalização
e para a valorização da nossa geografia, a meio de um Atlântico
que tenta manter a unidade entre as suas margens. O Governo é
favorável ao TTIP. O problema é que se multiplicam os sinais de que
a janela para os acordos de livre comércio começa a fechar-se,
incluindo nos Estados Unidos.
4. Falta a terceira
dimensão. Ninguém põe em causa os laços históricos que nos ligam
aos nossos parceiros da CPLP, nem sequer que a língua é uma
“pátria” comum. A questão é saber qual é o nosso papel nessa
comunidade que reúne um colosso como o Brasil e um candidato a
potência africana, como Angola, que sofre hoje brutalmente a sua
total dependência do petróleo. A Guiné Equatorial não significa
apenas a entrada de um torcionário. Fragiliza o argumento da língua
e ignora a dimensão dos Direitos Humanos. Depois, a ideia de uma
expansão da Aliança Atlântica para o Sul, com muitos adeptos por
cá, não colhe grande entusiasmo. O Brasil não quer partilhar o seu
estatuto de potência dominante no Atlântico Sul e não gosta da
NATO, que vê como uma aliança do passado, quando o Norte dominava o
mundo. Mas faz todos os anos, fora dos holofotes, um grande exercício
conjunto com a Marinha americana.
Sem tabus nem falsas
ilusões, precisamos de debater a sério o nosso lugar num mundo que
mudou profundamente desde que regressámos à Europa. Sem perdemos de
vista que a Europa é a nossa casa, mesmo que mude a mobília e
reparta de maneira diferente as assoalhadas.
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