Com
a queda de Renzi a Itália regressa ao “ano zero”
Renzi
não percebeu, tal como David Cameron, que um ano depois da promessa
do referendo o clima político-social pode ter mudado radicalmente.
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
6 de Dezembro de
2016, 6:54
Matteo Renzi somou
vitórias sobre vitórias para perder a partida decisiva. São
impressionantes os números da sua derrota no referendo: 19 pontos
percentuais. Era, até há um ano, o político mais popular de
Itália, com taxas de aprovação superiores a 60%. Foi ele quem
escolheu o terreno do referendo para fazer passar “a reforma das
reformas” e personalizou a consulta para obter uma investidura
popular. Queria demolir o anquilosado sistema político italiano.
No domingo, assumiu
pessoalmente a derrota, sem bodes expiatórios. Mas disse aos
colaboradores: “Não acreditava que [os outros dirigentes
partidários] me odiassem tanto.” Foi vencido por uma coligação
de “todos contra Renzi”. O seu projecto era uma ameaça para
quase todos os adversários.
A perplexidade que
este desfecho possa suscitar foi ontem sublinhada no La Repubblica.
“Jamais um governo tinha feito tantas reformas em tão pouco tempo,
pouco mais de mil dias. Jamais um primeiro-ministro, desde 1948,
tinha feito o seu partido superar o tecto dos 40% [nas eleições
europeias de 2014]. Mas a categórica derrota de Matteo Renzi no
referendo não é explicável sem o seu terceiro termo: jamais um
homem político conseguiu fazer nascer tão rapidamente um sentimento
transversal, profundo e multicolor, da extrema-direita à
extrema-esquerda, um sentimento que acabou por partir em dois o seu
próprio partido: o anti-renzismo.”
Renzi emergiu como
figura nacional em 2010 — era então presidente de Florença — ao
propor “mandar para a sucata” uma geração inteira dos
dirigentes do Partido Democrático (PD), se a esquerda se quisesse
livrar de Berlusconi. Exigia o rejuvenescimento da política.
Conquistou a liderança do PD nas primárias de Dezembro de 2013 e,
dois meses depois, assumiu pessoalmente a chefia do Governo, sem ter
vencido eleições.
Erros
O activismo do jovem
primeiro--ministro agradou aos italianos. Cultivava a velocidade e
fazia dos obstáculos oportunidades. Personalizou a política e o
partido. Bateu-se por um executivo forte, daí a necessidade de pôr
termo ao bicameralismo perfeito e mudar as competências do Senado.
Cometeu entretanto
um duplo erro. Ao ligar ao referendo o seu destino político,
incentivou a união dos adversários. Ao elaborar uma lei eleitoral
(Italicum) destinada a garantir ao partido vencedor uma maioria
absoluta — produto de uma negociação com Berlusconi —, criou
uma armadilha para si mesmo. A decadência de Berlusconi e a ascensão
do Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, ao papel de segundo partido
mudaram o tabuleiro. Chegou-se ao inimaginável cenário do “todos
contra Renzi”, o que permitiria a Grillo bater o PD numa segunda
volta das legislativas. Seria uma oportunidade dourada, e única,
para se desfazerem do primeiro-ministro, num clima de caos.
Teria Renzi outro
meio de realizar o seu projecto? Ou desistia, pela falta da maioria
dos dois terços no Senado, após a ruptura do acordo por parte de
Berlusconi, ou restava o referendo. Na altura, a revisão
constitucional tinha a aprovação da grande maioria dos italianos.
Mas não percebeu, tal como David Cameron, que um ano depois da
promessa do referendo o clima político-social pode ter mudado
radicalmente.
Renzi não foi
derrotado por um projecto alternativo. O referendo suscitou uma
coligação tipo “albergue espanhol”: a minoria de esquerda do
PD, a extrema-esquerda, intelectuais e juristas que denunciavam a
reforma como antecâmara da “ditadura”, a esquerda sindical
furiosa com a nova lei laboral, a Força Itália, de Berlusconi, e a
Liga Norte, de Matteo Salvini. E, como ponta-de-lança, os Cinco
Estrelas. Renzi e as reformas foram derrotados pelo velho mas
refinado establishment político.
Maurizio Molinari,
director do La Stampa, chama a atenção para a outra face da moeda,
o voto de protesto contra o Governo, já patente nas últimas
eleições locais. “Votaram ‘não’ as famílias das classes
médias descontentes, sem esperança de prosperidade e bem-estar para
filhos e netos. Votaram os jovens sem trabalho, votaram os operários
que se sentem ameaçados pelos imigrantes ou os empregados a quem o
salário não chega.” O país permaneceu insensível não só às
promessas, como às próprias realizações do Governo. Compara este
voto com o que se passou no “Brexit” ou na eleição de Donald
Trump.
O Il Sole 24 Ore
acrescenta um elemento psicológico. “Não foi uma derrota de
Renzi, mas a recusa de uma reforma mal conduzida. Renzi não devia
fazer chantagem sobre os italianos. Inovar é bom, mas é outra
coisa.”
Uma derrota
tangencial deixaria a Renzi larga margem de manobra. Um desastre
desta dimensão não apenas força a demissão do primeiro-ministro,
como debilita a sua posição dentro do partido. Os seus adversários
no PD jogam a sua sobrevivência política e a possibilidade de serem
candidatos nas eleições de 2018. A guerra no PD não vai ser bonita
de se ver.
Não haverá
eleições sem nova lei eleitoral — a haver, votar-se-ia para o
Senado com uma e para os deputados com outra. A política geral está
sob efeito de uma tempestade perfeita. A “frente do não” não
existe politicamente, não tem líder, nem coerência e depressa as
suas várias componentes vão entrar em guerra entre si. Que reformas
poderão ainda ser feitas?
Conclui na
L’Espresso o jornalista Marco Damilano: “Devia ser, nos planos de
Renzi, o dia de nascença da Terceira República, com um referendo de
estilo gaullista. Chegou, ao contrário, o ano zero.”
jafernandes@publico.pt
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